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CAPÍTULO 1 A (dupla) entrada em campo e as

1.5. Repensando a “entrada”

Pensando retrospectivamente, ou melhor, “escrevendo”, na distância confortável do “estando aqui”, percebo que a atitude dos funcionários da Olaria foi fundamental para que os jovens estabelecessem uma relação de confiança comigo. Há de se ter em mente também a situação de privação de liberdade dos internos de Lanzarote - o que exacerba a desconfiança contínua que os jovens

85 sentem -, meu posicionamento frente aos jovens, as características e momentos políticos dos dois contextos institucionais e outros fatores que ainda não consigo vislumbrar. Além disso, minha posição, nestes dois contextos, acabava sendo sempre ambígua, não era uma jovem, mas também não era uma funcionária, não tinha mais intimidade nem com educadores nem com coordenadores, não era mais próxima de nenhum grupo de jovens em particular. Em Lanzarote, como vimos, a ambigüidade da minha posição foi entendida como a ambigüidade do P2, impossibilitando minha permanência da instituição. Na Olaria, esta ambigüidade me posicionou em uma espécie de “não lugar”, que, com o tempo, foi assimilado por todos como a definição do lugar do antropólogo. Por isso acabava sempre sabendo, ouvindo, vendo, ao mesmo tempo, menos e mais que todos. Circulava entre pedaços de segredos, sendo “sondada” constantemente por todos por informações. Com o tempo, na Olaria, estabeleci uma relação com todos na qual sabiam que eu não compartilhava informações, o que não significa que não me perguntavam, mas aceitavam, com mais facilidade, meu silêncio. Mas antes de encerrar este capítulo, gostaria de me deter um pouco sobre o “medo” e as conseqüências de minha atitude “sem medo” frente aos jovens.

Durante meu trabalho de campo no CIP de Itajaí, os jovens comentavam constantemente o fato de eu não ter medo deles. Depois de alguns meses em campo, todas as vezes que um novo interno chegava, uma das primeiras coisas a dizerem sobre mim era que eu não tinha medo deles e que ficava o dia todo ali “de boa”. Ressaltar que eu não tinha medo era um modo de me elogiar, de elucidar para o novo interno que eu era uma boa pessoa, alguém confiável. Com o tempo, percebi que não ter medo deles naquele espaço era algo raro. O fato de eu não ter medo me colocava num lugar diverso, e isso era recebido como algo positivo. Ao chegar em Lanzarote, nem ao menos questionei como o fato de eu não sentir ou demonstrar medo seria entendido pelos jovens. Contudo, para eles, este seria um ponto importante para me classificar, só que não do modo como eu imaginava. Minha reação ao “teste do medo” teve consequências diferentes, em lugares e momentos diferentes.

Também na Olaria e no CIP fui testada em relação ao medo, mas, nestas ocasiões, não demonstrar medo foi entendido pelos jovens como um sinal de que eu não os via exclusivamente como uma figura

86 caricaturada de “bandidos”. Já em Lanzarote, isso lhes dá, juntamente com outros fatores, subsídios para me classificar como P2. Por algum tempo, me torturei e culpei, pensando ser, minha atitude de não ter medo, a responsável pela “expulsão” do campo. Contudo, no momento da análise dos dados e na escrita, percebi que as consequências de minha “estratégia” (não muito consciente) de não demonstrar medo, não eram uma questão de ”certo” ou “errado”. Afinal, qualquer experiência em campo, independente de quais sejam seus desdobramentos, nos revela algo sobre os processos relacionais e significados dos sujeitos da pesquisa (Emerson, 1995). Além disso, durante uma de minhas orientações, entendi que essa (dupla) experiência com o teste do medo

demonstrava de modo emblemático a discussão que proponho(mos)51

nesta dissertação: que podemos elucidar, a partir dos dados etnográficos, alguns dos múltiplos fatores presentes nas interações e avaliações dos jovens, mas devemos entender estes fatores como um “campo de possibilidades”, nunca como fatores causais. Podemos dizer que o medo, que os jovens sabem que inspiram em alguns de seus interlocutores, é um dos “marcos” de suas interações. E afirmar o medo como um “marco” é entender que ele é acionado e interpretado situacional e relacionalmente.

Entre outras coisas, a (dupla) entrada em campo permitiu ver que os jovens realmente sabem que a imagem de “bandido” causa medo em alguns daqueles com quem convivem. Contudo, elucidar este fato no momento da análise não resolve todas as questões, mas abre um campo de possibilidades. Em determinadas ocasiões, eles acionam esta imagem para conseguir o que querem, tentando provocar o medo de seu interlocutor. Em outras, sentem-se ofendidos, brabos, discriminados ou inferiorizados, por serem vistos como tal, ou como na minha experiência, acionam a imagem para, a partir da reação do “outro”,

51 Penso que uma dissertação, mais do que um trabalho individual, é um trabalho que tangencia a co-autoria. Principalmente quando pensamos na relação entre o mestrando e seu orientador. As longas discussões durante as sessões de orientação ajudam a criar um texto que é, certamente, resultado desse diálogo, e não um processo solitário de criação. Além disso, sabemos que, mesmo nosso “olhar” e “ouvir” em campo (Cardoso de Oliveira, 2006) é orientado por um “diálogo oculto” (Crapanzano, 1991) com as teorias e autores da disciplina. A isto acrescentam-se os debates em sala de aula com colegas e professores, as conversas informais com colegas e amigos antropólogos, e o resultado é um texto permeado de vozes. Contudo, apesar de minha gratidão a todos aqueles que foram parte deste processo, não espero me eximir da plena responsabilidade quanto ao produto final.

87 determinar a relação que estabelecerão com ele(a), sendo que a mesma reação pode, em diferentes contextos, evocar interpretações diversas. Tendo isso em mente, peço desde já desculpas ao leitor, pois expressões como “em determinadas circunstâncias”, “nessa situação”, “neste contexto”, serão repetidas inúmeras vezes durante o texto. Faço isso para marcar ao leitor e a mim mesma a necessidade constante de lembrar que as interações não são “determinadas” pelas categorias e marcos que identifico ao longo da análise. Pois as avaliações e interpretações que os sujeitos fazem são contingentes, dependem do “contexto”, que é a própria interação.

Muitas vezes, ouvi dos jovens que eles têm que “ficar ligados” sempre, porque, a qualquer momento, “tudo pode acontecer”. É preciso estar sempre em movimento, atentamente observando o que está acontecendo, procurando se situar nas múltiplas dimensões da interação, pois não há certezas. Ficar parado, acreditar que se sabe exatamente o que está acontecendo, sem estar atento aos detalhes do momento específico, é “vacilo”, porque, o que foi ontem, não o é necessariamente hoje, as circunstâncias, os sujeitos, as interações podem mudar a qualquer momento. Assim, em minha análise, como na vida de meus interlocutores, não há certezas. Procuro estar sempre atenta ao detalhes de cada interação, aos seus múltiplos níveis, num movimento constante entre um contexto e outro. Mas, ao mesmo tempo, tanto aqui, na análise, quanto nas vidas dos jovens, certas coisas são manipuladas como se fossem certas. Não espero resolver esta aparente contradição entre certezas e incertezas. O que espero oferecer ao leitor é um relato etnográfico que nos ajude a refletir sobre elas.

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