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Alice – Bom, eu posso me considerar uma vitoriosa, né?

6. CENÁRIO INTERPESSOAL – Construindo as relações

6.5. Alice – Bom, eu posso me considerar uma vitoriosa, né?

Alice tem 34 anos e atualmente trabalha como profissional do sexo. Ela já tentou fazer a cirurgia de redesignação sexual, mas por acontecimentos que ocorreram em sua vida, a cirurgia não pode ser feita. Alice passou por todo o processo necessário para conseguir o laudo atestando sua “disforia de gênero”. Contudo, quando ela se preparava para realizar a cirurgia, sua irmã teve um problema de saúde grave e precisou de um transplante de rim. Ela foi a doadora, mas a falta de um rim acarretou problemas para a sua saúde, fato que hoje a impede de realizar a cirurgia. Ela legitima seu espaço como transexual, mesmo sem a cirurgia, narrando toda sua trajetória junto a equipe do hospital e enfatizando como foi rápido seu diagnóstico, além de trazer o laudo do médico para a entrevista. Atualmente, ela diz não desejar mais a realização da cirurgia e, talvez por essa razão, precise legitimar ainda mais seu lugar na categoria de transexual. No entanto, em sua fala ainda percebemos a esperança de um dia poder realizar tal procedimento:

Quando saiu o laudo, que foi exigido o laudo [...] já acusou, você tá entendendo? A minha identidade... Já foi acusado já. Quer dizer... Isso foi em 2001. Quando foi 2002... Quer dizer, foi muito rápido o teste final com a psicóloga... Até porque ela usou o próprio teste que foi feito... Então, foi muito rápido a minha finalização. [...] Assim, por ser assim, em caráter experimental, eu fui a única que foi muito rápido em tudo (risos).

Bom, se um dia eu não conseguir fazer a minha cirurgia, pelo menos um pedaço meu foi pra um corpo feminino (risos). E, eu não sei... Eu acredito muito na medicina, Rafael... A esperança é a última que morre por que... Enquanto a medicina avança a cada cinco minutos, a nossa lei tá parada lá em mil novecentos e bolinha. Não é verdade?

Ela é natural de uma cidade do interior de São Paulo, mas já se mudou bastante e até viajou para a Europa com um de seus parceiros. Um fator importante para ser apontado na história de Alice é o fato de ela ter sido diagnosticada com depressão e síndrome do pânico, sendo medicada para o tratamento dessas doenças. Quando questionada sobre seus relacionamentos amorosos, ela foi citando os nomes de todos os homens com quem namorou e, intercalado entre eles, apareciam as histórias trágicas de sua vida. Ela cita um motorista de ônibus pelo qual se apaixonou, mas não dá mais detalhe nenhum; dois rapazes com quem teve relacionamentos, já falecidos, e pelos poucos detalhes dados, pareceram ser relacionamentos conturbados onde ela se dividia entre os dois, que também se dividiam entre outras pessoas além dela; aos 14 anos, um rapaz inclusive a pediu em casamento, mas ela não quis continuar a relação, apesar de atualmente até se arrepender do fato, contudo não explica a causa da atitude tomada; um homem que a levou para a Europa e com o qual terminou o namoro por intromissão de seus irmãos; e por último, um outro rapaz com quem chegou a morar junto, alugando até uma casa no nome dos dois, mas posteriormente veio a terminar a relação, por conta dos irmãos.

Entre a narração desses vários relacionamentos, Alice coloca em seu discurso a frase “eu fui muito quieta”, dando a entender que ela é uma pessoa tímida e não atirada. Tal frase nos faz pensar em um cenário cultural evocado pela colaboradora, colocando a mulher como uma pessoa tímida e submissa. Ao trazer isso para seu roteiro, ela auxilia na legitimação de sua condição feminina ao afirmar ter comportamentos de uma “mulher de verdade”. Ainda durante a narração de seus namoros, conta suas tragédias familiares ou situações acontecidas na mesma época dos relacionamentos, mas sem muita ligação com os mesmos. Ela relata as histórias (dos relacionamentos e das tragédias) como se o entrevistador já conhecesse os

detalhes das mesmas. Isso torna seu discurso confuso e cheio de falhas, impossíveis de serem preenchidas devido a rapidez com a qual ela muda de assunto:

Teve o (nome) que veio a óbito. Teve o (nome) também que... Houve um acidente com ele... Eu acho que ele usava eu porque tinha pessoas lá em (cidade), eu e a (nome), acho que ele... Sabe? Ele não... Ele não resolvia qual das duas ele queria. Aí ele foi embora, sofreu um acidente... Infelizmente foi os dois que eu procurei, sabe, a hora que eu cheguei em (cidade) o... O (nome) eu vi/ eu cheguei em (cidade) no dia, no domingo a noite, na segunda eu já tava com o (nome), a noite conversando, na sexta- feira eu já tava com o (nome), sabe? Sempre foi os dois que eu tenho, que sempre tive muito afeto, que sempre acompanhou, que sabe tudo da minha trajetória até do hospital, de tudo... Dentro dos transplantes... Até mesmo na Europa eles escreviam pra mim... Você tá entendendo?

E: aí a relação de vocês terminou por qual razão?

C: Briga. Sempre por causa dos meus irmãos. Que aí ele falou pra mim: “não vai ligar pra sua irmã agora”, eu falei: “eu vou ligar pra minha irmã”... Por que... Até então eu não entendo, sabe? Porque a minha irmã (nome), até então, quando ela marcou o casamento, a gente tinha o carro, mas até então ele tinha um outro carro mais discreto que a gente pegava, saía a noite e a gente sempre procurava sempre lugar assim porque a gente deitava, ficava olhando as estrelas, sempre lugar afastado... Nisso o telefone tocou, minha irmã falou: “você vai no casamento?”, eu falei: “vou”... Sabe? E ele acabou dando um presente pro meu irmão, tudo e... Acabou não indo... E... Sempre assim, sabe? Sempre os meus irmãos na frente... No decorrer da entrevista, o assunto sexo entrou mais em evidência. Quando questionada à respeito do significo de sexo para ela, Alice inicialmente não soube formular uma resposta, pedindo ao entrevistador que se “expressasse mais”, não antes de relatar mais um “momento difícil” da sua vida atual que é a espera por uma cirurgia para a retirada dos testículos. A pergunta foi colocada a ela com mais detalhes e ela então disse haver diferentes caminhos para o sexo, mas o sexo verdadeiro seria o do verdadeiro amor e este ela ainda não havia conseguido alcançar, pois para ela fora “sempre paixão”.

Aqui podemos observar o mesmo movimento das demais colaboradoras até aqui citadas em relação ao cenário cultural do ideal de amor romântico, trazendo consigo o melhor sexo de todos e, ao mesmo tempo, sendo este quase impossível de ser alcançado. Alice ainda define o sexo como trabalho, encerrando sua importância apenas nesse aspecto. Todavia, ela também aponta a necessidade de colocar amor em todo o trabalho realizado e diz colocar o amor na sua profissão atual. Ela, ao contrário das demais, acaba unindo o sexo aos sentimentos, mesmo não sendo de uma maneira direta, precisa e intencional. Ainda coloca

que a parcela de amor ligada à profissão está no fato desta ter proporcionado a ela formas de sair de situações difíceis em sua vida.

Ao falar sobre suas práticas sexuais, Alice, assim como as demais, foca-se mais na relação anal, deixando de lado os outros tipos de relação e só mencionando-os quando questionada diretamente. Assim como as outras, em especial as outras trabalhadoras como profissionais do sexo, ela diz buscar pelo uso do preservativo na maior parte do tempo. Entretanto, quando se trata de relações com os namorados, a camisinha é a primeira coisa a ser deixada de lado. O foco no sexo anal por ela relatado atualmente é grande, pois ela narra que por conta de um acidente em uma relação sexual devido a um cliente com um pênis de medidas fora do comum, ela ficou com o ânus machucado e, por isso, precisa se utilizar de um truque para impedir que os clientes a penetrem:

Não seria enganar e sim um truque pra que... Que me ensinaram. Quer dizer... Eu... Procuro... Comprimir bem o ânus. Então, e a pessoa/ e eu já falo pra ele: “eu sou muito apertada”. Bom, depois você vai tirar um resumo da gravação. Aí fala: “ah eu não acredito”, “eu sou apertada”, mas aquilo eu vou morrendo de medo, porque se eu não conseguir comprimir muito e entrar... Nossa... Aí, sabe, eu uso muito gel também. Porque escorrega, vai acabar escorregando, até que o cliente desiste.

Apesar de sua conduta ser compreensível, afinal de contas sem trabalhar ela não tem como se sustentar, podemos notar em seu discurso uma omissão sobre o que acontece após o cliente desistir de penetra-la. As demais práticas não são nem sequer citadas. Ainda nesse foco, Alice relata que com os clientes ela faz papel ativo na relação, trabalhando muito seu psicológico, afinal “cliente é cliente” e não vê problema em se mostrar nua para eles. No entanto, com os namorados a situação muda de contexto. Com eles, ela “jamais” fez papel de ativa e só passou a se mostrar nua sem tanta vergonha quando um dos seus parceiros trabalhou nela o conceito de que qualquer acontecimento ocorrido entre quatro paredes, fica lá dentro.

Com isso, ela novamente busca legitimar seu lugar no universo feminino, trazendo assim como as outras colaboradoras, a imagem dos namorados como “homens de verdade” e qualquer saída do ideal feminino como algo necessário para sobreviver e que não se pode ser evitado. Alice parece ir ainda mais longe quando aponta que alguns clientes já quiseram algo além de apenas sexo, passando inclusive uma noite inteira em sua companhia ou, ainda, alguns a contrataram apenas como alguém para conversar. Ao colocar tais casos em evidência, a colaboradora parece querer se retirar desse universo “sujo” do sexo, trazendo elementos de carinho e amor para suas relações com os clientes, unindo novamente o sexo e o

sentimento. Esse discurso não só auxilia na legitimação de seu ser feminino, como também se encaixa perfeitamente nas narrativas de uma “verdadeira” transexual esperadas pelos profissionais do campo médico, o que a deixaria à um passo de conseguir a cirurgia (Bento, 2006). Quando Alice fala sobre masturbação, ela deixa isso bem claro:

E: Você tem costume de se masturbar? C: Não.

E: Nem quando era mais nova, início da adolescência?

C: Ah sim, eu me masturbava, mas assim, depois eu ficava com peso na consciência. Muito grande.

No resto da entrevista, ela ainda busca mais e mais legitimar seu pertencimento ao gênero feminino, seja ao falar sobre sua prática favorita, se referindo a posição chamada de “frango assado” na qual um parceiro fica de frente para o outro enquanto acontece a penetração anal e pode ser considerada a posição mais próxima de um intercurso vaginal; seja ao definir sua fantasia não realizada, de fazer sexo com um bombeiro, umas das fantasias bastante presentes no universo feminino. Apesar disso, Alice acaba saindo um pouco desse lugar de legitimação ao relatar fantasias já realizadas e que se encontram fora do campo do usual (como fazer sexo em um serviço funerário) ou sua ida à um dark room. Contudo, novamente ela retorna o mais rápido possível ao seu lugar feminino, definindo a experiência no dark room como engraçada, dizendo que não pagaria nunca por sexo e não se interessa por pornografia em nenhum grau (ambos comportamentos tidos como mais masculinos).

Podemos ver no roteiro de Alice a presença de discursos culturais de diversas origens, mas em especial do campo médico. Contudo, tais discursos estão tão intrincados com o nível intrapsíquico que fica difícil separá-los. Além disso, vemos a colaboradora buscando a todo o momento legitimar sua feminilidade e tendo esse aspecto como algo extremamente forte em seu roteiro, assim como o foco nos acontecimentos difíceis da sua vida. Em diversos períodos da entrevista, ela deixou de responder a pergunta feita para entrar em detalhes de uma situação pela qual havia passado ou para introduzir uma nova. Seu estado depressivo parece ter sido inserido em seu roteiro com um papel de destaque, fazendo-a ter na ponta da língua seu repertório de tragédias pessoais, colocando-a também em um lugar de vitimização onde, por sua vez, evoca o cenário cultural da mulher vítima e frágil, ajudando-a mais uma vez a legitimar seu espaço como exclusivamente feminino.