• Nenhum resultado encontrado

Bárbara – Se eu amar a pessoa, eu vou querer compartilhar inclusive da AIDS dela

6. CENÁRIO INTERPESSOAL – Construindo as relações

6.2. Bárbara – Se eu amar a pessoa, eu vou querer compartilhar inclusive da AIDS dela

Bárbara é uma comerciante aposentada de 58 anos, natural do interior do Estado de São Paulo. Ela se define como transexual e já realizou a cirurgia de redesignação sexual há cinco anos, fora do Brasil. Ela se coloca como lésbica, pois só se relaciona com mulheres. Ela já foi casada e tem dois filhos biológicos. Contudo, atualmente se autodenomina assexuada e não está engajada em nenhum relacionamento afetivo.

Ao iniciarmos nossa conversa, Bárbara logo me mostra os cenários culturais que compõem seu roteiro sexual ao expressar o estranhamento em relação à sua orientação homossexual. “É difícil de explicar e é difícil de entender” o fato de uma mulher transexual se relacionar com outras mulheres e, ainda por cima, uma transexual já submetida à redesignação sexual. O cenário cultural, como já apontado anteriormente, coloca a transexual na busca de se tornar uma “mulher de verdade”, ou seja, uma mulher heterossexual. Uma transexual que passa pela cirurgia para continuar se relacionando com mulheres é um ser abjeto (Bento, 2011).

Ao falar de seu casamento, ela novamente evoca os cenários culturais de seus roteiros para justificar sua “tentativa de fuga da minha condição transexual, uma inaceitação da minha condição. Eu imaginava que com o casamento eu pudesse... Superar essa...”, assim como, também faz uso dos cenários para classificar seu primeiro relacionamento como “normal”, pois o mesmo estava dentro da heteronormatividade.

Entretanto, Bárbara aponta para a questão de que, quando buscava uma explicação para sua condição e as peculiaridades dessa, ela não era feliz. Sendo assim, enquanto ela tentava assimilar e dinamizar os cenários culturais com os roteiros intrapsíquicos ela não conseguia ajustar sua conduta e formar um novo roteiro. Ela só encontrou a felicidade quando deixou de tentar, formando um roteiro que mantinha essas duas instâncias separadas:

Existe uma coisa que, enquanto eu queria entender, eu não era feliz. Chegou uma hora que eu falei: “seja o que Deus quiser, não quero entender”. Eu queroooo é seguir a minha intuição por que... Contrariar a tua intuição, aquilo que vem de dentro que é o complicado. Fazer diferente pra ser igual!? Não, não quero ser igual. Quero me satisfazer... Satisfazer meu/ a minha intuição. Então, me relaciono com mulheres. Nunca me relacionei com masculino.

Quando relata seus relacionamentos pós-operação, ela afirma que todas as mulheres com quem esteve sabiam de sua condição transexual, declarando que essa informação é aberta à todos. Tal fato pode estar conectado a ideia, presente em seus cenários culturais, de que uma vez realizada a cirurgia a condição dentro do gênero feminino é garantida e, portanto, pode ser divulgada.

Bárbara aponta um fator importante para a esfera interpessoal de seus roteiros. Ela declara que o fato de estar ficando mais velha a deixa mais exigente, mas seletiva em relação às pessoas com quem se relaciona. O fator idade, além de realizar mudanças nos roteiros interpessoais, também é colocado como um elementos dos cenários culturais, posto que é fato presente na vida de todo mundo:

Não sei se a gente, à medida que o tempo passa, a gente se torna mais exigente. Isso é uma realidade. À medida que o tempo passa você torna mais seletiva, mais exigente... Então... Você começa a colocar condições pra esse relacionamento, aí... Difícil, entendeu? Porque o relacionamento tem que ser muito espontâneo, um relacionamento bom, duradouro, tem que ser espontâneo. Quando você começa a colocar condições... Não é mais espontâneo, então por isso que não dura. Quer dizer, hoje não dá pra eu imaginar uma pessoa que não tenha a mesma leitura da vida, o entendimento que eu... Entendeu? Isso dificulta o relacionamento. A liberdade. Às vezes a pessoa... Tem filho, então isso já tira a liberdade de você viajar, de você... Então isso torna-se um... Um problema também, um empecilho.

Além disso, a “energia de vida” também é trazida como outro elemento que interfere nos roteiros interpessoais, essa energia de sempre estar buscando se renovar e aprender e, com isso, talvez criar novos roteiros.

Os roteiros sexuais de Bárbara, no entanto, parecem ter um foco maior no nível dos cenários culturais, posto que ela novamente traz desses, elementos por meio dos discursos médicos-psi, justificando e legitimando sua conduta de não colocar o sexo como o principal elemento de seus roteiros. Todavia, o nível dos cenários culturais se torna muito dinâmico com o nível intrapsíquico à medida que ela assimila para seus roteiros o discurso médico-psi, passando a se sentir “normal” por não necessitar do sexo após a explicação “científica”. Essa ênfase dos cenários culturais se mostra inclusive quando ela questiona o pesquisador para saber sua opinião sobre a visão exposta por ela. O entrevistador, como representante da classe científica, portadora do conhecimento, talvez sirva como mais um elemento validador para esse caminho de roteirização.

Bárbara, assim como Silvia, também demostra uma separação entre o sexo e os sentimentos. Porém, ela demonstra uma possibilidade de que em seu roteiro tais elementos podem ser vistos juntos:

Sexo pra mim é uma forma reprodutiva. Agora, é uma forma também de afetividade, manifestar a afetividade? Sem dúvida sim. Agora, ela não é a única e nem a mais importante, a meu ver.

Na verdade, essa junção é o que ela busca formar em seu roteiro. Procura harmonizar seu script e possuir os mesmos elementos nos três níveis juntando o amor, elemento presente para ela no nível intrapsíquico e o sexo, elemento do nível cultural, no nível interpessoal, até agora possuidor apenas do sexo, fator que os “outros” separam do amor:

A energia da cumplicidade faz falta no sexo. Talvez seja uma coisa pouco notada, as pessoas se focam muito no prazer físico, no orgasmo, mas o sexo, a relação sexual, acima de tudo, ela tem que ter uma energia.

Ela também nos dá a entender que uma relação, para possuir a reciprocidade no nível interpessoal, terá de conter tanto o sexo quanto o amor, mas em maior grau o amor, para que a mesma possa ocorrer. Contudo, ela ainda vai mais longe e divide não só amor e sexo como também o sexo e o prazer:

A relação sexual virou sinônimo de prazer. Será que ela é sempre? Tenho dúvidas... Muitos casais fazem por obrigação. Aquilo que é espontâneo, que te deixa feliz, que te agrada, que te satisfaz... É forma de prazer. Às vezes é comum a gente dizer: “nossa, isso quase me leva ao orgasmo de tão feliz que eu tô. É quase um orgasmo”, você já não ouviu tantas vezes isso? Esse quase orgasmo é que o orgasmo se tornou sinônimo

de realização do prazer, é o ápice do prazer, né? Então tem muitas coisas “orgásmicas” que não necessariamente são relações sexuais.

E une o prazer ao sentimento de amor. Por essa razão, relata que em nenhuma de suas experiências sexuais, tidas por ela como “tudo igual” pelo fato de nenhuma ter tido a junção de amor e sexo, sentiu prazer. O prazer é ligado ao amor e demonstrado não só no ato sexual, mas sim na afetividade pré e pós-relação, fator também apontado como importante por Silvia:

Então é normal as pessoas mais idosas viverem a busca de um urologista porque elas não têm mais ereção... E elas acham que a vida acabou? Para com isso! Vai procurar nas inúmeras oportunidades que a vida te oferece de ser feliz. Namorar, dançar, não necessariamente... Beijar na boca, porque não? Isso é uma forma de prazer, de trazer... Uma satisfação incrível. Muitas vezes/ muita gente diz que às vezes é melhor o... [...] As preliminares muitas vezes são melhores... Do que o sexo em si.

[...] todas as pessoas precisam de um amante e de repente esse amante é o seu hobby, é o seu lazer, é o seu cachorro, é o seu... Enfim, aquilo que você escolhe como prazeroso, a sua terapia ocupacional, isso é o que você, tudo o que te faz amar é o seu amante.

Para Bárbara, uma busca desenfreada por sexo pode indicar uma busca por amor, sentimento até então não encontrado. Busca essa que parece leva-la a inúmeras ressignificações e reelaborações para a criação de um novo roteiro. Um exemplo dessas reelaborações surge quando falamos sobre suas relações sexuais pós-cirurgia. Ela descreve a ato como mais afetivo, mais essencial, quase como se retirasse o ato do campo do sexual e o trouxesse para o campo do sentimento. Pensando nesse sentido, podemos supor que o fato de não haver mais a “relação de penetração”, o conceito de ato sexual como é conhecido, no qual um indivíduo penetra e o outro é penetrado, passa a não existir mais como parte de seu roteiro. Como não existe mais o sexo, só resta o amor. Isso também é reforçado quando ela se utiliza de uma metáfora para definir as preliminares e a importância delas:

Vamos pensar na viagem: Você se prepara o ano todo pra uma viagem... No dia seguinte você tá voltando da viagem... Entendeu? Então, eu ainda fico na viagem, ainda no preparativo, naquela coisa... E... E de saber que eu quero tá sempre... De passagem. Não chegando, não ficando, não voltando. Isso aí, pra mim, é o final. E o final é sempre triste... [...] Então, nós estamos sempre na expectativa, sempre esperançosos... De que algo melhor vai acontecer. Quando você... Termina você fala: “meu Deus, aconteceu ou não aconteceu? Já passou?”. Vem a decepção muitas vezes, na grande maioria das vezes. Então, eu tô sempre no sonho, na viagem, na busca...

Ao se colocar como alguém que está sempre em preparação de algo, sempre de passagem, ela reforça a ideia de não poder mais alcançar o final, já que a penetração não existe. Não se pode mais alcançar o sexo, então resta o amor ou, pelo menos, a busca por ele. Isso também influencia seus roteiros interpessoais, sendo que se o importante é a busca e a passagem, nunca vai se querer alcançar o final, ou seja, um relacionamento propriamente dito, acabando por torná-lo ainda mais impossível de ser alcançado, o que pode apontar uma possível razão para uma fase assexuada. Esse afastamento do sexo presente hoje em seu roteiro sexual se mostra também quando ela é questionada sobre sua primeira vez. Ela relata que não se lembra, pois foi há muito tempo (ela tinha 13 anos) e só ocorreu o que ela define como “convencional”, no caso, a penetração vaginal. O sexo para ela hoje é visto como produto de prateleira, como moeda de troca.

Assim como o ato sexual e as preliminares, a masturbação também parece retirada do campo sexual. Ela passa a ser um “autoafeto”, um carinho que a pessoa precisa se dar. Da mesma forma, fantasias e fetiches são colocados como pertencentes ao universo infantojuvenil, período da vida no qual brincadeiras com o faz-de-conta acontecem. Ao trazer esse universo para sua narrativa sobre suas fantasias e fetiches ela infantiliza o assunto e, de certa maneira, retira-o do campo do sexual:

Ah, sempre tem as fantasias... Sempre tem. Fantasia sim, essa é gostosa. Ah, aliás, isso é comum, você brinca de faz de conta desde a infância, né? Quem que nunca brincou de Mulher Maravilha, de Batman e Robin, de... Sabe? Mocinho, bandido... Isso é fantasiar, nossa vida é uma fantasia. E eu acho que isso é ser criança, fantasiar é ser criança. Então... O meu perfil é assim, é de criança, é de... Uma pessoa até imatura eu diria com relação a fantasias... Por que não? Isso sim. Isso é muito bom, isso é parte da vida.

No relato de Bárbara podemos notar a presença de diversos cenários culturais. Uma das possíveis razões para isso é colocada por ela mesma:

Foi representar. Foi representar. Em função da cultura, em função do conservadorismo, tudo se cobrava que as coisas fossem daquela maneira. Então, você meio que representa pra satisfazer ao... A sociedade, a família... Você representa. Chega um dia que você fala: “não, não aguento mais representar”. Acho que ninguém consegue viver em cima do palco uma vida inteira, um dia você fala: “não, quero descer, quero ser eu. Chega de representar”. Então, foi exatamente isso que aconteceu comigo, foi representação uma vida inteira.

A existência de tantos cenários para a construção de um roteiro, assim como a divisão de amor, sexo e prazer acabam por causar uma mistura e a sobreposição de ideias, criando um roteiro confuso. Ao falar sobre o prazer, Bárbara coloca conceitos tidos culturalmente referentes ao amor como ligados ao sexo e vice-versa:

Que o prazer que as pessoas conhecem é o prazer do orgasmo. E pra eu chamar de orgasmo falta muita coisa. Falta exatamente essa energia e essa energia foi o que eu nunca encontrei. Então, por isso me tornei até aversa mesmo, eu diria que hoje eu não vejo motivo pra se ter relação sexual, acho até muito estranho. O que é que as pessoas buscam com isso? Mas buscam assim, a todo instante, incessantemente, cada vez mais... Fazem disso loucuras, suicidam, se matam... Por conta do sexo. Eu não consegui descobrir. Depois de tanto procurar... Não achei esse prazer na relação sexual... Como as pessoas colocam, eu não consegui. Porque eu não encontrei essa energia, essa coisa que... Eu sempre busquei. Sei lá, pode parecer uma loucura, mas, ué, eu sinto assim. Entendeu? E por essa razão tanto... Você vê tantas... Mentiras. Casamentos mentirosos, relações mentirosas... Você vê tanta... Hipocrisia em tudo isso. Entendeu? Em nome... Do machismo, em nome do conservadorismo, em nome da IGREja que determina que as pessoas se relacionem... Casamento... Eu nunca entendi muito bem essa coisa não. Nunca entendi

Como apontado anteriormente, para Bárbara o sexo é um produto já comprado por ela mesma, não só pagando por um programa como também “a pessoa que chama uma namorada, uma pessoa, uma amiga pra... Olha, um jantar... Ele tá pagando. Entendeu? Ele tá pagando. Uma viagem, ele tá pagando. O casamento é uma forma. E sai caro”. Nesse “comércio sexual”, o exterior é repleto de detalhes sedutores, atraentes e convidativos, mas o que ela busca é o interior que, até o momento só se mostrou vazio. Nessa linha de raciocínio, Bárbara acaba por conferir ao sexo características comumente atribuídas ao amor pelos cenários culturais:

Sexo pra mim tem que ser uma coisa muito sublime junto com a... A essência... A alma...

No mesmo comércio, práticas não convencionais como o sexo a três e lugares voltados ao sexo como cinemas pornôs e dark room são retirados da esfera do humano, da esfera do racional e embutidos no instinto animal, afinal de contas “Como é que você divide seu amor pra duas pessoas?” ou “Você esperaria encontrar um grande amor nessas situações?”.

O preservativo atualmente é relatado como não utilizado, posto que não existe a penetração e, por isso, não haveria a necessidade do uso. Além disso, o preservativo é apresentado como mais um dos componentes auxiliares na divisão amor e sexo, pois para

Bárbara “você usa o preservativo por medo”, por não conhecer a pessoa. Ela relata nunca ter tido nenhuma DST e que realiza exames regularmente pelo fato de ser doadora de sangue. Contudo, para ela, se o amor romântico, vencedor de todos os obstáculos, estiver presente (cenário cultural) ela iria querer compartilhar até mesmo da AIDS da parceira.

Podemos notar que Bárbara assimila diversos cenários culturais, em especial os provenientes das áreas médico-psi, não somente para legitimar sua feminilidade, mas principalmente para pensar e reinterpretar o papel do sexo em sua vida, dando vazão ao seu nível intrapsíquico e criando assim um novo roteiro que inclui a busca do amor romântico, tido como impossível de alcançar, ao invés de apenas usufruir o oferecido nas vitrines desse “comércio”:

Talvez as pessoas não saibam o que elas querem. Ou imagina que o que elas querem é alguma coisa impossível: “Não, já que é impossível eu vou... Eu não tenho isso aqui, então eu vou comer isso mesmo...”. Acho que é mais ou menos por aí. Ou eu vou me satisfazer com o pouco que eu encontro... E eu como sou uma pessoa mais exigente mais... Analista da, das... Da mente humana. Eu estudo muito essa coisa, eu leio muito sobre essa/ a mente humana, o que vai pela mente humana. Entendeu? Então, eu procuro entender melhor esse tipo de coisa. E aceitar também. E até a pensar que... As pessoas são, realmente, muito superficiais em se falando de sexo. Muito, muito, muito...

Além disso, Bárbara, no início de sua vida, buscou se enquadrar ao máximo no discurso heteronormativo, lutando inclusive contra si mesma para suprir as expectativas da família e da sociedade. Com isso, ela criou para si um roteiro no qual os elementos masculinos ganhavam destaque à força. Quando ela viu a oportunidade de abraçar sua condição, se assumindo como transexual e realizando a cirurgia, seu roteiro teve de ser repensado. Contudo, diversos elementos do roteiro anterior, por conta da sociedade e especialmente dos filhos, tiveram de ser mantidos, além de alguns fatores do seu modo de ser, como o fato de gostar de se relacionar com mulheres, não se encaixam na visão dela tão bem no roteiro de uma transexual. Por essa razão, vemos Bárbara criando um roteiro intermediário, que fica na passagem, deslocando os elementos de seus contextos e focando em algo tido como muito difícil de encontrar, senão impossível. Para justificar sua nova conduta, ela faz como sempre fez e se volta aos cenários culturais, dessa vez por meio dos discursos médico- psi, acrescentando novos elementos, como o envelhecimento que, como apontado por D. Santos (2012), traz modificações para os roteiros, buscando criar subsídios para se manter nesse roteiro e sua busca.