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Emília – Eu não quero ter a genitália masculina, isso me incomoda muito

6. CENÁRIO INTERPESSOAL – Construindo as relações

6.13. Emília – Eu não quero ter a genitália masculina, isso me incomoda muito

Emília é uma jovem de 20 anos, originária da cidade de São Paulo e trabalha como operadora de telemarketing. Ela se classifica como transexual e homossexual, por sentir atração por homens, e afirma querer fazer a cirurgia de redesignação sexual, posto que essa “vai me trazer mais conforto” pelo fato de que com a genitália feminina ela não vai mais se “sentir estranha” e vai ser quem é. Nesse início da narrativa de Emília, podemos notar a presença maciça do cenário cultural do discurso médico. Como trazido por Bento (2006; 2008) e por Benedetti (2005), as transexuais apreendem o discurso médico que diz como elas devem ser para alcançarem um laudo que garantirá a cirurgia. Elas reproduzem esse discurso e abusam de algumas palavras-chave em suas falas para convencer não só os médicos, mas a qualquer um que a sua condição é uma “doença” cujo tratamento é a cirurgia.

A colaboradora parece ter esse discurso muito bem decorado e logo já se afirma como uma mulher de verdade (não promíscua) e uma pessoa assexuada (característica de uma

“transexual verdadeira”), dizendo que não é “de sair com vários caras”. Podemos pensar que, ao retirar-se do papel de promíscua, também a se diferencia de uma travesti, cuja figura no cenário cultural brasileiro é ligada a promiscuidade e prostituição.

No tocante aos seus relacionamentos, Emília diz que já tentou se relacionar com mulheres no início da adolescência, mas não sentiu atração nenhuma. Seu primeiro e único namoro foi com um amigo de infância reencontrado quando ela tinha 15 anos de idade e ele 18. Foi com ele também sua primeira experiência sexual, um ano depois. Ela diz que o rapaz sempre a tratou bem, apesar de não a chamar pelo nome feminino (fato influenciado também pela rejeição da família dela a sua condição transexual), e que se “mostrou pra ele” iniciando um relacionamento engrenado pelo fato deles já se conhecerem e nutrirem afeto um pelo outro:

Eu... Mais ou menos a gente já se conhecia desde pequenininho. Depois ele foi embora e com meus 15 anos ele tinha voltado. Ele tinha voltado e... Eu meio que me mostrei pra ele, tipo... Faz muito tempo que eu não conhecia ele e eu conheci muito melhor... E a gente não terminou, só que eu vim embora pra cá e ele ficou. Em questão da relação, eu acho que a gente [-] afetiva, sabe? A gente já se conhecer... Ter um pouco mais de convívio.

Aqui Emília demonstra o outro cenário cultural que rege seu discurso: o ideal de amor romântico. Sua única relação tem diversos elementos correlacionados a esse cenário como o amor de infância, o reencontro, a cumplicidade de casal e o sentimento de afeto inicial que permite ao amor florescer. Além disso, ela relata que a história dos dois não terminou e eles só não estão juntos pelo fato dela ter se mudado da cidade onde vivia. A colaboradora mostra outro elemento muito presente no discurso do amor romântico, a saber, o sentimento que nunca chega ao fim, mesmo quando os parceiros estão separados. Apesar dela não afirmar com toda a certeza se eles ainda estariam juntos caso ela não tivesse se mudado, a colaboradora constrói sua narrativa a fim de nos dar a ideia de um sentimento intacto entre os dois e se algum dia a vida prover seu reencontro, eles ainda se amarão, assim como a história novelesca que Agnes relatou.

A respeito de sua primeira relação sexual, Emília relata que não foi completa, pois ela a parou na metade. Em um momento houve a penetração anal (não houve sexo oral), mas nenhum dos dois alcançou o orgasmo, pois a colaboradora se sentiu incomodada e percebeu que faltava algo. Ela não sabe se foi bom ou ruim porque travou no meio do ato e só sentiu um grande incômodo a partir daquele instante e que o namorado foi muito compreensivo com sua situação:

Teve carícias, beijos e tudo mais... A gente chegou a fazer penetração, só que meio que... Tipo... Eu não sei explicar, por que... Não é por causa da penetração que a gente teve. A questão é que eu me incomodo com a minha parte da frente, entendeu? A questão é que eu olho pra ele e me vejo e não me sinto diferente. Não é assim que eu quero me ver.

O fato de a relação ter ocorrido três dias antes dela se mudar parece uma grande coincidência. Entretanto, se levarmos em consideração que a colaboradora afirma sempre ter imaginado sua primeira vez ocorrendo após a realização da sua cirurgia e, quando pensava que ela poderia acontecer antes do procedimento não a queria, podemos pensar que esse ato sexual tenha sido premeditado. Ao se permitir ter uma relação sexual com o namorado, já sabendo de sua partida, Emília cria essa última e mais íntima aproximação com o namorado e assim experimenta o ato sexual, fato capaz de manchar seu tão perfeito enquadramento no cenário cultural médico e ameaçar sua posição como uma “transexual verdadeira”. Realizar o ato e partir logo em seguida, permite a ela não ter mais a tentação de repetir a ação e assim sair do seu quadrado classificatório perfeito.

Tanto podemos pensar assim que, após o ocorrido, Emília afirma que não quis nem ficar com outro homem, nem mesmo quando o vizinho deu em cima dela descaradamente, deixando bem claras suas intenções ao convida-la para sua casa enquanto estava sozinho, vestindo apenas uma cueca e ao colocar a mão dela sobre sua genitália. Os dois discursos no qual baseia seu roteiro entram em cena nesse momento para justificar tal atitude. Em primeiro lugar, a colaboradora afirma não conseguir ter contato consigo mesma, muito menos com outra pessoa, o que sustenta o discurso médico da transexual como um ser assexuado e com grande aversão a genitália e, em segundo lugar, ela diz que não consegue se envolver sexualmente com uma pessoa antes de terem uma ligação afetiva, reafirmando o ideal de amor romântico.

Quando a entrevista entra no assunto sexo, Emília repassa a primeira pergunta de volta para o entrevistador, questionando-o a respeito do que era o sexo para ele. Quando o entrevistador a interroga, querendo saber o motivo de sua pergunta, a colaboradora diz que só sabendo a opinião do entrevistador é possível a ela “saber o que eu posso dizer”. Aqui podemos observar a estratégia de Emília para não correr o risco de sair de seu papel. Pegando a definição do entrevistador, uma pessoa estudiosa da transexualidade e representante da comunidade científica e dos profissionais de saúde, ela poderia delimitar também sua resposta para não demonstrar nenhuma característica ou elementos que pudessem ser interpretados

como não pertencentes a condição transexual ou feminina. No momento em que lhe é negada essa ferramenta, Emília acaba se voltando para os discursos vistos como seguros e define o sexo como amor.

O prazer, por sua vez, é definido como “estar confortável”, termo utilizado inúmeras vezes durante toda a conversa, e ela não consegue definir a importância do sexo em sua vida ou algum elemento que não pode faltar para ela no sexo. Neste ponto, uma vez mais a colaboradora se apoia no discurso da transexual como assexuada, não conseguindo definir nada relacionado ao sexo. Tanto é assim que, quando questionada se sentiu prazer com a relação anal ou achava que isso só viria a partir da penetração vaginal, ela afirma “não tenho muita... Importância pra isso não”.

Toda a conversa sobre sexo segue no mesmo esquema durante o resto da entrevista, aparecendo aqui e ali o discurso médico ou o discurso do amor romântico. Baseada no cenário médico, Emília relata ter ficado de shorts durante a relação sexual com o namorado e sentiu- se culpada após ter se masturbado pela primeira e única vez em sua vida. Ela também diz que o homem ideal só “seria homem” e, para isso, deveria tratá-la como mulher. Para as mudanças que deseja para sua vida sexual é taxativa:

Eu acho que tem que fazer logo a cirurgia, né? Eu acho que é um impasse enorme. Eu não quero e só penso... Tipo, têm homens que se veste como mulher, é travesti ou... Também se veste como mulher, homossexuais... Eu não quero ser, tipo a... “O meu homem” também... Não, eu quero ser visto como uma mulher... Sabe? Quero “essa é minha esposa”. Entendeu? A relação sexual, eu não quero ter a genitália masculina, isso me incomoda muito. Eu quero ver meu parceiro e meu parceiro me ver... Entendeu? Então, eu acho que é o que mais me incomoda.

Baseando-se no cenário do amor, a colaboradora coloca que as preliminares são importantes para demonstrar carinho e não deixar o ato ser “apenas sexo”. Ainda diz que não frequentaria lugares voltados ao sexo ou teria qualquer prática tida como não convencional pelo fato desses não permitirem uma ligação afetiva antes de se envolver em atividade sexual ou sairiam do conceito amoroso. Emília afirma ter fantasias sexuais. No entanto, quando ela a relata em detalhes, mais parece um encontro romântico, em um lugar só para o casal e longe de tudo com um piquenique na mata. O elemento do sexo só é incluído na situação quando o entrevistador a questiona sobre a presença do mesmo.

Como já apontado, podemos vislumbrar que o roteiro de Emília é dominado pelo cenário cultural do discurso médico, focando nas características de uma “transexual verdadeira”, seguido de perto pelo discurso do ideal de amor romântico, também auxiliando a

colaboradora a legitimar seu lugar como mulher. Tais cenário são tão presentes que o nível interpessoal foca-se no convencimento dos outros de que ela se encaixa nos padrões médicos da transexualidade e o nível intrapsíquico fica camuflado:

Bem, eu pensei bem feminino mesmo, que ele me tratasse como mulher, que me visse como mulher, que ele me chamasse como mulher, sabe? Que ele me olhasse também e eu não sentisse incômodo, que ele ficasse fascinado, sabe? Que eu pudesse respirar fundo... Sabe? Sem nenhum incômodo. E que ele olhasse pra mim e visse que me amasse de verdade. Que me chamasse de Emília e não de Emílio.

Na parte da entrevista em que ela fala sobre sua única experiência sexual, no entanto, Emília profere a seguinte frase: “essa segunda vez também foi em casa”, dando a entender que o ato sexual aconteceu mais de uma vez. Se isso foi uma confusão da parte dela ao detalhar a experiência, uma má interpretação nossa ou um ato falho revelando algo que ela buscava esconder não se pode concluir, posto que essa fala não foi melhor explorada na entrevista por passar despercebida em meio a sua narrativa. Tal fato só nos mostra o quanto os cenários culturais nos quais são baseados seus roteiros estão realmente bem alicerçados.