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Amélia – Sexo pra mim é aquela coisa sem sentimento total

6. CENÁRIO INTERPESSOAL – Construindo as relações

6.8. Amélia – Sexo pra mim é aquela coisa sem sentimento total

Amélia tem 19 anos e trabalha como profissional do sexo em uma cidade do interior do estado de São Paulo, apesar de ser de origem mineira. Ela se define como travesti e diz não pensar em fazer a cirurgia de redesignação sexual, pois para ela “nasceu comigo, morreu comigo”. Ela também se autoidentifica como “eclética” quando se trata de sua orientação sexual. A colaboradora coloca que sente “atração mesmo por homens”, se colocando depois na categoria de homossexual, mas afirma gostar de experimentar de tudo para poder falar sobre, ver se é bom e saciar sua curiosidade a respeito do assunto. Na “hora do fogo” ela é “bi, hétero e gay”.

A participante diz sentir atração somente por homens, mas, diferentemente das demais, pontua que já “catou algumas mulheres” e gostou da experiência, mas afirma também não haver sentido nenhum afeto por elas. Neste quesito ela se compara as demais colaboradoras, pois também divide o sexo e o sentimento dentro dos seus roteiros interpessoais.

Esse aspecto fica extremamente claro em sua entrevista. Ao ser questionada a respeito de seus relacionamentos, ela relata nunca ter namorado seriamente, somente “amores platônicos”, pois ela sente que os homens só querem usá-la, “aproveitar a carne no momento, enquanto está fresca e depois, a hora que a carne apodrecer, já não quer saber”. Esses pensamentos e percepções só aparecem em sua cabeça quando ela está sozinha ou quando vai dormir, de acordo com ela. Com essa frase, Amélia se coloca no papel de objeto sexual dos homens. De acordo com a colaboradora, esse fato está ligado a sua profissão, considerando existirem, ainda de acordo com ela, clientes desejosos de simplesmente “desceu a roupa, virou, gozou, acabou”. Por se colocar nesse papel, ela deixa de ter o valor de um indivíduo e, portanto, não vê a possibilidade de ser alvo de uma relação interpessoal bilateral, além de colocar o homem em uma espécie de papel superior, de alguém capaz de usá-la como objeto, evocando também um cenário cultural de gênero e de colocar o sexo no lugar de algo “sujo”.

Somente quando sua fala traz o foco para ela mesma, é que a situação de ser usada parece se inverte em algum grau, mantendo, contudo, o foco unilateral. Quando questionada sobre o que não pode faltar no sexo, Amélia responde que ela tem de gozar, pois se isso acontecer com o cliente e não com ela mesma, causa um sensação de “fiquei pra trás”:

Eu preciso gozar. É isso. Se eu não gozar, parece que ele sentiu prazer e eu fiquei pra trás. Aí... É onde eu volto naquela questão de eu ser usada, já que eu tô sendo usada mesmo, também preciso aproveitar um pouco. Aí é onde eu preciso gozar, eu quero gozar, dependendo de qualquer forma que seja, se eu tô sendo ativa ou passiva.

A mesma visão desse roteiro interpessoal unilateral aparece quando ela vai definir o sexo: “Sexo pra mim é aquela coisa sem sentimento total”. Todavia, ela parece repensar sua colocação e logo depois inclui o fato de tal afirmação ser proveniente de sua experiência profissional, ou seja, na rua o sexo é sem sentimento, mas não é sempre assim. Mesmo não tendo nenhuma experiência com relacionamentos, ela traz, assim como as outras entrevistadas, a presença do amor dentro da relação e o cenário cultural do amor romântico. Contudo, esse ideal de amor não faz parte de seu roteiro atual, mas sim do seu roteiro da adolescência e do roteiro pensado para o futuro. Amélia relata que quando adolescente imaginava suas relações sexuais iguais as acontecidas nos filmes, com beijos e abraços, mas na realidade elas aconteciam de outra forma. Suas primeiras experiências sexuais aconteceram por volta dos seus 12 anos de idade e começaram com a prática de sexo oral por parte dela em colegas da escola ou vizinhos, até a relação de penetração acontecer com um vizinho e com

um primo no mesmo período. Todas essas práticas não incluíam afeto ou carinho, pois os rapazes, no auge de seus hormônios da adolescência queriam mesmo era “ir direto ao ponto”. No seu futuro, Amélia almeja estar fora das ruas e vivendo uma relação de “casal hétero” com “brigas, ciúmes e amor”, sendo este último algo que ela ainda “não sei o que é”. Nesse momento, a colaboradora realça o amor romântico propriamente dito e apontado por Oltramari (2009) como o amor nunca correspondido, que permanece sendo buscado; o amor ligado à dor e ao sofrimento, e a necessidade de transpô-los para, à partir daí, alcançar o amor. Esse sentimento aparece por ser algo com o qual ela diz ainda não ter contato e pelo fato dela enumerar as características de uma relação “hétero” iniciando pelas brigas e pelo ciúme, para só então citar o amor como elemento presente.

Como dito anteriormente, seu roteiro atual parece não possuir como fator esse cenário cultural do amor, visto que ela nega o desejo de se relacionar com alguém ainda. Ela afirma não gostar de compromissos e de ser uma pessoa que gosta de alguém durante cinco vezes:

Não tenho essas coisas de compromisso não. Às vezes, caí numa ilusão de achar que eu tô gostando da pessoa... Só que... É que nem eu falo pra muitos eu sou um tipo de pessoa que gosta durante cinco vezes. A primeira... É o fato de conhecer, a segunda é maravilhosa, a terceira você já vai por ir, a quarta você já não quer, a quinta você já dá um basta, você já não quer saber.

Sua questão com relacionamentos parece estar muito ligada ao sentimento de se sentir usada pelos homens, mas também a aparência física dos mesmos, mostrando novamente a dicotomia sexo x sentimento. Ao definir o prazer como a aparência física e seu homem ideal como alguém bonito e inteligente, ela coloca a parcela sexual do seu relacionamento. Ao acrescentar ao seu parceiro ideal as características de compreensivo e que não a faça se sentir usada, ela mostra o lado sentimental. Ela parece ter dificuldades em conectar os dois lados no mundo real, para assim buscar um relacionamento, só alcançado tal façanha no campo do ideal. Seu foco atual aparenta ser somente o sexo, provavelmente por conta de sua profissão, e afirma que sem o sexo “ia faltar uma parte de mim”.

Um elemento bastante presente em sua narrativa é o cenário cultural que define rótulos e categorias. Ela se determina como travesti, pois “não tenho a mínima vontade de ser transexual porque eu gosto de gozar”. Amélia coloca aqui o discurso médico definidor da transexual como alguém assexuado e, em um nível subentendido, a ideia de que transexuais são as pessoas que realizam a cirurgia. Além disso, e em especial, a colaboradora traz a cultura popular que contêm a ideia de que transexuais operadas não sentem mais prazer. Ela

não deixa de fora os discursos sobre travestis. Ao falar sobre seu início no mundo da prostituição, Amélia relata que vendia trufas para sua mãe e ao voltar para casa aceitava carona e o dinheiro em troca de serviços sexuais de alguns estranhos, pois quando eles a viam na rua logo presumiam que ela fazia programa, em razão de que para travestis “ou é salão ou é rua”.

A colaboradora também coloca que não teve uma fase gay em sua vida, ou seja, não teve relações com homens em uma condição masculina, pois começou a se travestir aos 12 anos de idade. Essa fase gay que uma travesti pode ter também é mencionada por outras participantes. Amélia justifica a falta dessa fase pelo fato dela ter tido, nesse momento da vida, amizades com travestis e não com gays e por sua vontade de ser mulher, fato colaborador na legitimação de sua condição na travestilidade:

Virei travesti já, passei já a conviver... Porque, eu falo também que não tive aquela época de homossexual, de gay, de andar normal como um homem... Porque também, eu acho um pouco, que eu não tive a convivência com gays, eu tive convivência com travesti. Eu fiz amizade com travesti primeiro. Aí eu via... Eu já tinha vontade de ser mulher. Aí eu via elas com aqueles cabelos compridos ou... Aparência afeminada, as roupas... Foi aonde me deu mais inspiração pra querer ser.

Amélia, em suas falas, abrange diversas semelhanças com as demais colaboradoras até aqui citadas, em especial as que dividem com ela o ofício de profissional do sexo. Ela, assim como Renata, coloca o cliente como uma pessoa carente e acrescenta em seu roteiro interpessoal o elemento da sedução para fisgá-lo, produzindo a sensação de uma relação com caráter bilateral. Ela deixa esse fato ainda mais claro quando afirma que só tem preliminares com o cliente quando quer “amarrar” o indivíduo e fazê-lo voltar a procurar os seus serviços:

A gente que vive como profissional do sexo, da mesma forma que a gente gosta de ser elogiada, eles também procura a gente por conta disso, eles querem ser um pouco agradado ou/ tem até aqueles que, realmente, vão só pra transar.

E: Você costuma ter preliminares com os clientes?

C: Quando eu tô com a intensão de amarrar o cliente pra fazer ele voltar, eu começo nas preliminares.

E: Senão...? C: Senão não. [...]

E: E o que o homem tem que ter pra você querer prender ele como cliente? C: Dinheiro (risos).

E: Os que pagam mais?

C: É. [...] Eu falei do dinheiro pra amarra cliente, mas também tem aqueles que me encanta, que às vezes... Paga até uma mixaria, mas pra eu poder pegar e ficar com

ele, eu fico até, se for preciso, a noitada inteira... De preliminares... De beijos,

abraços... Carícias, eu sentindo o calor do corpo dele, ele sentindo o meu... Tem esses também assim. Aí eu faço bastante preliminar.

Outros elementos que Amélia têm em comum com as demais colaboradoras são trazidos na área das práticas sexuais. Assim como a maior parte das profissionais do sexo entrevistadas, a colaboradora não tem como hábito a prática da masturbação pelo fato de já “gozar muito” enquanto trabalha. Ela também se coloca contra o ato de pagar por sexo, pelo fato dela estar em uma fase de sua vida capaz de “catar qualquer homem que quiser”, mas, diferentemente das demais, se coloca disposta a pagar em um futuro no qual estará velha. A participante também relata ser comum ela assistir a filmes pornôs no motel enquanto faz um programa e que o tipo de filme mais atraente para ela são os com temática gay, tendo em vista que o de homens com travestis “ela faz o que elas fazem”. O uso do preservativo também segue o mesmo padrão das demais: um uso descontínuo no sexo oral, um uso mais conciso, ainda com falhas, no sexo anal, e a não utilização da camisinha quando o sexo é com o namorado. No caso dela, esse namoro é substituído por um rapaz com o qual ela se “deu bem”.

O dark room é tido como um local não direcionado a ela e, por essa razão, Amélia só entra nele “para brincar”. Neste caso, a brincadeira consiste em colocar a luz produzida pelo celular na cara das pessoas que estão lá dentro ou levar algum homem para lá e depois sair, deixando-o sozinho. A colaboradora, assim como Alice, também apresenta algumas fantasias sexuais não convencionais, como fazer sexo embaixo d’água ou de ponta cabeça. Podemos olhar para saída do usual como consequência de sua profissão, capaz de proporcionar experiências sexuais na maioria classificadas como não convencionais, de uma maneira até corriqueira, como no caso de sexo com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, prática essa onde Amélia já esteve com seis homens ao mesmo tempo. Dessa forma, sua imaginação pode ultrapassar todos os limites e criar as mais variadas e inusitadas fantasias.

Podemos observar que no roteiro sexual da colaboradora existem os cenários culturais de gênero e, com maior presença, os de rótulos e categorias. O discurso do ideal de amor também se faz sentir como elemento presente, porém em roteiros não utilizados no momento atual. Na fase contemporânea de sua vida, Amélia parece ter dificuldades em unir o sexo aos sentimentos sob qualquer forma, talvez muito influenciada por sua profissão, focada somente no sexo, fato que acaba por prejudicar seu nível interpessoal composto de relação unilaterais. A sedução é um elemento presente e utilizado como ferramenta de trabalho.