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1. UMA VISÃO INTERPRETATIVA DAS CULTURAS

1.2. ALTA CULTURA, CULTURA POPULAR E CULTURA DE MASSAS

A visão de Certeau vem criar uma diferença de análise, ao deixar a problemática que vigorava a partir das divisões sociais de classe, trazendo para a luz do dia a ‘cultura do vulgar’. Para M. L. Santos (1988), esta perspectiva teórica de Certeau representa uma nova

praxis que junta «numa mesma concepção de cultura dinâmica e actuante tanto a cultura

popular como a cultura de massas» (p. 692). Vista a partir das práticas do quotidiano, a cultura passa a ser uma ‘cultura no plural’. Nesta nova conjuntura, «é dado ênfase às tácticas dos consumidores de signos que manobram com as estratégias dos produtores de sentidos…» (Valade, 1995, p. 467). Os saberes ‘menores’ – normalmente fora do discurso sobre a cultura, mas providos de prática – são a reserva de ‘procedimentos’ tácticos dos praticantes de cultura, os consumidores do quotidiano. Um espaço aberto para práticas culturais, de sentido emancipatório e inovador (M. L. Santos, 1988).

O reconhecimento da génese de campos culturais diversos, com especificações e dinâmicas próprias, «estilhaça, na prática, a unidade a que se referia, idealmente, o conceito antropológico de cultura» (Silva, 1994, p. 34). Parece ser interessante, introduzir aqui a concepção construtivista de Berger e Luckmann (1999 [1966]), a propósito da sua posição sobre o papel da divisão social do trabalho e da consequente especialização segmentada, que cria ‘subuniversos’ próprios de significação grupal e social. Segundo eles, «nas sociedades industriais avançadas… a competição pluralista entre subuniversos de significação de todas as espécies concebíveis torna-se a situação normal» (p. 95). Estes subuniversos tornam-se fechados para o exterior e sustentáveis. Portanto, ritualizados para os iniciados, perspectiva «relacionada com os interesses sociais concretos do grupo que a sustenta» (p. 96). Esta perspectiva de uma certa desestruturação cultural futura, como resultado das sociedades pós- industrializadas, é também colocada por Fernandes (1999). Diz o autor que se assiste a uma certa dessacralização da cultura e a uma ‘profanidade’ das sociedades e, assim, «o monolitismo cultural cede o seu lugar a um pluralismo mais ou menos generalizado, em que se combinam núcleos matriciais diferentes», os quais têm dificuldade em combinar-se de forma integrada (p. 15).

Por influência da visão marxista, a que a teoria dos campos, de Bourdieu, também deu um estímulo nada despiciendo, a cultura é lida, muitas vezes, como resultado de confrontos simbólico-culturais provenientes das posições de classe. Uma hierarquização, ou classificação, entre classes permitia a explicação das desigualdades originárias das representações e das práticas culturais, em presença nas sociedades. Se as produções simbólicas são o resultado dos confrontos simbólicos em terreno de luta social, as

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interpretações das suas representações são, ao mesmo tempo, classificações sociais que as determinam (Silva, 1994). Dumazedier (1979), por exemplo, fala dos desequilíbrios permanentes visíveis entre estratos sociais, entre espaços geográficos, nas relações de trabalho, entre outros aspectos. Também Sirvent (1999) fala de uma opção de investigação por uma ‘cultura internalizada’ proveniente de incorporações de classe no quotidiano das práticas sociais e culturais de determinado grupo social, sem distorcer dinâmicas e complexidades inerentes à perspectiva. Esta ideia parte do pressuposto de que «quando os sectores populares internalizam uma imagem académica da cultura própria da classe dominante incorporam também um modelo de relações de classe dentro do mundo» (p. 109). Uma hierarquia social pode determinar, por consequência, uma hierarquia cultural. Na «realidade, o que existe são grupos sociais, que mantêm entre si relações de dominação e de subordinação» (Cuche, 1999, p. 104). Para Costa (1999a), este domínio da alta cultura não parece tão óbvio, já que a sua relação privilegiada surge em primazia com o sistema de ensino e não com a classe dominante.

As novas abordagens sociológicas da cultura têm retirado à cultura cultivada, (também chamada de erudita ou de alta cultura) a imagem predominante e exclusiva da cultura como objecto totalizante, ou como paradigma dominante (M. L. Santos, 1988), muito por obra do subsistema da cultura de massas que exerce uma pressão significativa no seio da dicotomia erudito-popular (Fernandes, 1999). Uma pressão estabelecida, sobretudo, a partir do pós- guerra e pensada para disputar o papel desempenhado pela alta cultura como sujeito da produção maciça de bens e de práticas culturais (B. S. Santos, 1997). Por conseguinte, é muito comum, ainda, a noção tripartida de cultura, no conjunto das suas três componentes: a grande cultura; a cultura popular; e a cultura de massas. Esta tricotomia tem sido o marco de referência das principais abordagens culturais, que pugnam por uma visão hierarquizada e estanque dos tipos culturais. Em texto muito conhecido na área, M. L. Santos (1988) estabelece um conjunto de reflexões que constituem segundo ela «vias para superar a aludida concepção etnocêntrica e compartimentada da cultura e possibilitar uma análise das relações entre as diversas culturas existentes numa sociedade» (p. 690). No entanto Silva (1994) continua a achar que do ponto de vista da análise do reconhecimento das culturas nas «sociedades contemporâneas, é útil a partição tricotómica, entre a cultura cultivada, a cultura de massas e de entretenimento, e a cultura popular» (p. 35). Abordagens posteriores têm clarificado as mesclas, articulações e negociações evidentes no campo das práticas culturais no espaço social. Isto independentemente das desigualdades na produção, acesso, ou fruição patentes nos grupos sociais em presença (Fernandes, 1999; M. L. Santos, 1988; Silva, 1994; Silva & Santos, 1995).

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A abordagem histórica e/ou sociológica das desigualdades sociais tem colocado, quase sempre, a cultura erudita e a cultura popular em confronto quase maniqueísta, diríamos. Uma divisão que trouxe, agarrada a si, determinados ‘corolários metodológicos’ (Chartier, 2002). Segundo B. S. Santos (1997), essa dicotomia é «o núcleo central do ideário modernista» (p. 168). Uma modernidade que assenta na alta cultura a sua imagem de ‘cultura-sujeito’ e na cultura popular a imagem de uma ‘cultura-objecto’. Fernandes (1999) é claro neste propósito separador. Diz ele que se pode distinguir duas culturas: a superior, ou de elite, e a popular. A primeira é mais elevada na sua afirmação de conteúdo, nos âmbitos da verdade e da beleza; mas a sua dimensão especulativa em torno do ideal também a afasta do mundo real. A cultura popular é a obra directa dos povos, é a que emana da sua vida quotidiana e como tal é aceite e assimilada, pois «trata-se de uma cultura vivida». Para conhecer esta cultura, é preciso «aprender a sensibilidade e a mentalidade desses meios sociais, as suas crenças, as suas ideias e os seus hábitos mentais» (p. 22). Mais à frente o autor confirma, a propósito da estética popular, que apesar da homogeneização cultural provocada pela cultura de massa, continua a manter-se a «diferença entre cultura popular e cultura erudita» (p. 309). Como se entre elas apenas existisse conflitualidade e contralegitimidade e não também pluralismo e entrosamento (M. L. Santos, 1988).

Ao debruçarem-se sobre esta problemática, os estudos têm confirmado que esta oposição é mais teórica do que real (Chartier, 2002; J. T. Lopes, 2004; Silva, 1994). Essa oposição, segundo Silva e Santos (1995), não representa, de todo, as dinâmicas de dominação consentida como táctica, as acções de exclusão e de segmentação, ou as práticas de integração e de modelação. Ou, ainda, a coexistência, o «desdobramento e o entrecruzamento de modos de cultura» nas sociedades contemporâneas (Costa, 1999a, p. 176). Para M. L. Santos (1988) a relação entre as duas tradições culturais (às quais chama pequena e grande tradição) sempre foram bilaterais e bidireccionais. Apesar de assimétricas, «as trocas culturais entre uma e outra parecem ter sido relativamente fáceis anteriormente à centralização do poder político e do poder religioso na Europa Moderna» (p. 694). Segundo a autora, o jogo cultural entre as duas áreas culturais consubstancia as seguintes características:

i) existência de intercâmbio cultural entre as duas tradições; ii) intercâmbio em termos de troca desigual;

iii) utilização de jogos tácticos da pequena tradição em relação à grande tradição; iv) variedade das culturas populares.

Apesar de tudo, a autora considera cada vez mais difíceis os simples exercícios de classificação cultural baseados na tipologia apresentada, em parte por causa da crescente pressão da mercadorização cultural nos vários campos sociais. E isso merece que se considere

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o seu apelo: «para o entendimento dos jogos de dominação e resistência simbólica se vão exigindo esquemas interpretativos cada vez mais abertos e flexíveis» (M. L. Santos, 1988, p. 695).