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2. AS TRADIÇÕES POPULARES NA ARENA GLOBAL

3.3. REINTERPRETAÇÕES E RECONFIGURAÇÕES DA MEMÓRIA

Parece claro o papel preponderante que o passado e a memória desempenham nas sociedades actuais. Não estranhemos, portanto, que pareça paradoxal o facto de este fenómeno acontecer numa sociedade cuja configuração cultural actual privilegia o efémero e um desejo de gratificação imediata no presente (Fortuna, 1997). Para este autor, «perante a superficialização ou eventual perda das suas raízes identitárias, os indivíduos procuram no passado e na memória... compensação para a correspondente e desconcertante ambivalência de valores» (p. 233). Trata-se de uma paixão, que marca a modernidade, este culto ‘moderno e profano’ do amor por todos os vestígios e relíquias do passado, que consagra a memória como o desiderato da prática cultural (Urfalino, 1998). Para Fentress e Wickham (1994), a memória está sujeita à lei do mercado, à lei da oferta e da procura. Por isso, há que providenciar e fornecer memórias adequadas; e estas deverão corresponder a necessidades sentidas. Na verdade, como refere Rioux (1998b), «a memória sempre foi imperiosa e provocadora. Mas hoje ela desnuda e trespassa mais do que nunca. Causa também arrepios, jogando alternadamente com a nostalgia e a inquietação» (pp. 307-308). O autor, numa atitude crítica e humorística, sobretudo em relação à historiografia francesa, considera este aparato de recordação memorial como uma ‘retromania’, como um «consumo de massas de uma sopa com verduras do passado» (p. 310). Este processo denota, segundo ele, um

olhar com complacência e ternura para as supostas harmonias de outros tempos. Tudo foi pretexto para o passadismo, o lazer e o hobby, o bilhete-postal e os vestidos da avó, a genealogia de amador e as animações campestres com foice. (p. 310)

Na pós-modernidade, os processos de reconfiguração da memória parecem viver de uma certa recuperação e apropriação colectiva de velhas textualizações etnográficas. Ao invés da simples actividade comemorativa ritual este processo é, hoje, suportado também por influências dos media e das pressões turístico-económicas sobre o folclore em geral. A busca da diferenciação cultural como base da promoção turística – e da agressiva mercadorização cultural que lhe subjaz – obriga a uma intervenção mais cuidada e ponderosa de um conjunto de novos agentes do poder regional ou autárquico (P. Raposo, 2003). Esses agentes sabem-no,

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melhor do que ninguém, que a celebração do património e da memória assume hoje, mais do que nunca, uma forma de memória colectiva. Trata-se de um acto partilhado por todos, indivíduos ou grupos, quer sejam locais, quer estejam distanciados no espaço (Fortuna, 1997). Para isso, para que o património e a memória desempenhem um papel activo no processo de destradicionalização, não basta que se reconheça a sua valorização e a necessidade de conservação; é preciso recriá-lo, torná-lo apetecível, dá-lo ao consumo. No fundo, esta instrumentalização patrimonialista acaba por alterar o posicionamento dos sujeitos entre si e no contacto cultural. A memória torna-se um ‘objecto histórico’, um objecto de consumo especial, «já que o seu valor de uso não tem equivalente de troca, o que os aproxima dos bens de luxo, cuja avaliação, apropriação e consumo são meramente subjectivos, simbólicos e posicionais» (p. 237). Repare-se que muitas vezes não há acordo sobre o que se pode entender por marca relevante do passado ou por memória a preservar. A designação de grande acontecimento ou de facto memorial a celebrar, muitas vezes é feita por elementos exteriores à comunidade, sobretudo na sociedade camponesa.

Esta apropriação de velhas tradições e memórias está sujeita, como é evidente, a uma selectividade dos agentes, quer sejam populares ou eruditos. Estes procuram escolher os elementos patrimoniais com maior referência identitária, tanto territorial, como cultural, de entre uma panóplia de possíveis referentes. Quer assumindo uma forma crítica a reconfigurações passadas, quer mostrando-se como recriações mais ‘autênticas’, a memória não deixa de encontrar raízes num tronco comum que mais não é do que uma perspectiva ‘patrimonialista’ da memória (Costa, 1999a). Esta visão privilegia elementos locais e regionais, relativos a tradições da cultura oral e rural, mas também não esquece outros elementos relacionados com valores arquitecturais, patrimoniais e ambientais. É uma lógica cultural intensiva sobre a identidade local. Mas esta visão coincide com outra: a visão modernista que, por sua conta, aposta na mercadorização e na empresarialização cultural, a qual, numa lógica extensiva, aposta na competitividade nacional ou transnacional (Fortuna, 1997). Contudo, estas duas visões e imagens não podem ser vistas como opostas. Pelo contrário, «articulam-se entre si e justapõem-se, o que proporciona o hibridismo... que surge ao mesmo tempo como consciência adquirida do passado, investimento no presente e perspectiva de futuro» (p. 235).

Nas sociedades ocidentais este frenesim do ‘retro’ transformou tudo em património: a exumação, a colecção, o vestígio e o arquivo consubstancializaram o investimento patrimonial da ‘retromania’. As nostalgias do passado, agora estimuladas pelos estados – desencantados e vazios de ideologia –, reabilitaram, exibiram, estudaram e promoveram o património como regresso ao passado seguro (Rioux, 1998b). Contudo, para o autor, esta

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«lógica do ‘tudo ou nada’ arruína amplamente o esforço pedagógico colectivo da memória, que podia reduzir esta sede de património. Porque esta superabundância de signos não possui referências, as reapropriações à superfície social, por demais esboroada, esmigalham a lembrança...» (p. 329).

Para Costa (1999a), é «característico das representações sociais patrimonialistas – tanto nas versões extremas como nas híbridas ou mitigadas – não se darem conta das operações de selecção por elas próprias praticadas» (p. 34). A selectividade de quem reconfigura a memória, ou a tradição, toma sempre como base uma ideia de ‘autêntico’ – na verdade algo mais autêntico do que qualquer outra coisa –, cujo carácter lhe é atribuído por uma certa ‘genuinidade’. No fim de contas, estaríamos perante uma diferenciação de marcas, proveniente de uma distinção social dos agentes na sua estratégia para demarcar espaços de poder. Como se processa, então, este desfasamento entre o discurso sobre as memórias presentes que se pretende reconfigurar, comparativamente àquelas que marcaram o passado de uma vívida anterior geração? O mesmo autor, em estudo sobre sociedades de bairro, dá conta de três aspectos fundamentais:

i) Uma tendência para reconstruir as memórias pessoais, colocando o enfoque no período de maior valorização lúdico-afectiva, como o é o período juvenil, em detrimento de posteriores ciclos de vida.

ii) Uma certa diferenciação entre estrutura e quotidiano da memória; quer dizer, se as práticas culturais atravessam toda a rede social, ao longo do tempo, no seu dia-a-dia mudam muito os espaços de maior valorização da memória social.

iii) Uma característica discursiva que mostra um conjunto de tácticas interaccionais, quer esteja patente nas disputas entre elementos da comunidade, a propósito de méritos entre locais e gerações, quer seja com o objectivo de contrariar imagens negativas da própria comunidade perante interlocutores exógenos.

No seu estudo sobre a memória social, Fentress e Wickham (1994) mostram como os indivíduos corrigem as suas memórias pessoais de modo a conjugá-las com uma interpretação mais geral, mesmo que esta esteja errada. Muitas vezes, é o suporte da coerência da memória social guardada que permite «superar e disfarçar contradições gritantes entre memória e realidade» (p. 56).

Como já vimos atrás, «a objectivação do património e da memória é um corolário da simultaneidade temporal... como estratégia da sua revalorização competitiva» (Fortuna, 1997, p. 238). Neste processo, dois elementos se coadunam desordenada e hibridamente em simultâneo: o passado patrimonial e o presente e o futuro modernista. Esta objectivação, sobretudo nas sociedades e comunidades rurais, é, muitas vezes, patenteada no folclore e em

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particular na expressão mais corrente dos chamados ‘ranchos (ou grupos) folclóricos’. Em estudos sobre os processos de folclorização em Portugal, Branco (2003) – entre outros autores – mostra como é o grupo folclórico que representa esse hibridismo de passado/futuro, na modernidade. A produção da memória colectiva, nas aldeias, faz-se sobretudo a partir do trabalho de ensaio e representação literal e simbólica do grupo. Quando actua, o grupo representa a memória e comemora a fonte mais remota e primordial da sua fundação. Memórias pessoais e sociais cruzam-se, assim, neste espaço de comemoração ritual e num tempo de reconfiguração reencenada do passado no presente. Mais a norte, Silva (1994) refere também a centralidade desta codificação cultural, expressa nas recriações colectivas do folclore local.

Regressando a Rioux (1998b) – e num contexto francês, mas que se pode deslocalizar para o nosso – veremos como todo este bucolismo da história e do memorialismo rural caiu num bucolismo anedótico, nos finais da década de 80 do século passado. Uma nostalgia massificada, enquadrada pela ‘beleza do morto’ que, de acordo com Revel e outros (1990), encara o ‘exotismo’ do interior rural com um olhar que objectiviza e idealiza uma realidade que afinal é oprimida. Para os autores, esta ‘rusticofilia’ «é também o reverso de um medo: o da cidade perigosa e geradora de corrupção porque as hierarquias tradicionais aí se baseiam» (p. 52). Então, nada como regressar à pureza original do campo e ao ‘bom selvagem’ rural, onde se conservavam as virtudes e os valores primaciais e redentores da humanidade. Para Rioux (1998b), foram os media e a tecnologia que acertaram as últimas machadadas num processo de deterioração da memória social, que já vinha sofrendo choques sucessivos e que era cada vez mais ‘acotovelada’ pela irrupção e imposição de um tempo social descontínuo, sem medida; pela amplidão da informação disponível e acessada; pela ausência de uma transmissão atenta e enquadrada no âmbito de um quadro cultural. Ou, ainda, pela perda de um trabalho educativo sobre os guardiães das memórias passadas, como afirma Iturra (1990a). E é assim que o culto do passado é trocado pela angústia do presente e que a memória colectiva é substituída por outras formas individualistas ou ‘tribalizadas’ de comunidade (Rioux, 1998b).

A memória, hoje, está assim numa encruzilhada evidente. Se a explosão da ‘febre comemorativa’ foi uma resposta às angústias do presente que perturbam as recordações do passado, parece difícil a manutenção deste permanente regresso. Os impactos sociais contemporâneos são demasiado fortes: a geração dos avós deixou a casa de família e vive no lar, quebrando o vínculo da transmissão; a obsessão da casa própria afastou-nos do parentesco e da vizinhança e tornou periférico o que antes era central; o turismo, esse, consome inexoravelmente as memórias disponíveis (Rioux, 1998b). Por isso se entende o que pensa

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este autor, quando afirma: «lugares de memória devastados ou abandonados, intermediários culturais postos de lado ou mudos, valores fraccionados e sujeitos à impermeabilidade de uma geração para outra, poderes contestados, centralização denunciada e pedagogias diversas maltratadas, tudo confirma a desarticulação da memória antiga» (p. 326). Também a crise económica – particularmente a industrial – deu o seu contributo para o chamado ‘efeito- memória’. Para o autor, este efeito não é mais do que um trabalho social patente nos seguintes aspectos:

i) uma etnologização sem fim que transforma o património em operador social, sem o contraditar com o contexto de crise económica;

ii) uma musealização de imagem e de espectáculo assente no júbilo de uma repetição permanente sempre igual a si mesma;

iii) uma encenação de objectos e de costumes, uma teatralização dos restos da memória parados no tempo; uma memória petrificada que não tem capacidade de esquecer, cansada e débil na sua reabilitação.

Para Rioux (1998b), tudo isto «nada prova que possa um dia ultrapassar o risco deste diálogo mórbido. Porque, afinal, ‘o efeito-património’ volta-se contra ele próprio e exibe a sua contradição: sem querer nada esquecer, já não se pode recordar» (p. 330).

Por fim, será interessante verificar que, e de acordo com o autor que vimos seguindo, ao mesmo tempo que o afrouxamento ideológico e conceptual originou o ‘passadismo’ da memória, o imperativo da mundialização, «no entusiasmo de uma forte concorrência europeia, provoca também o impulso de uma memória mais construída e mais categórica...» (p. 330).

CAPÍTULO 4

ALGUMAS PERSPECTIVAS ACTUAIS

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4. ALGUMAS PERSPECTIVAS ACTUAIS SOBRE O DESENVOLVIMENTO