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4. ALGUMAS PERSPECTIVAS ACTUAIS SOBRE O DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO

4.2. PERSPECTIVA HISTÓRICA DO DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO

Como vimos atrás, a comunidade local parece ser o espaço mais adequado a uma intervenção de cariz social. Em geral, o desenvolvimento comunitário é visto como uma das formas de acção que se desenrola num espaço concreto e específico. E isso acontece porque é na comunidade que se encontram os actores sociais que podem desencadear processos de acção para o desenvolvimento social (Diéguez & Guardiola Albert, 2000). De qualquer modo, parece-nos que antes de avançarmos para o conceito e as características do desenvolvimento comunitário interessa abordar o que significa o termo desenvolvimento e como ele se relaciona com o desenvolvimento comunitário.

Esteva (1999) mostra como o conceito de desenvolvimento é recente. Em 1949, nos Estados Unidos da América do pós-guerra, o presidente Truman apresenta o desenvolvimento como um ‘emblema’ que pode iniciar uma época nova: a era do desenvolvimento. Este tempo marcou o início de um processo de demarcação entre os países desenvolvidos e os países subdesenvolvidos. Um tempo de inversão de identidades maioritárias e minoritárias nos

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campos do desenvolvimento económico e da qualidade de vida. A partir daí o tema desenvolvimento passou a determinar a tentativa de cada país fugir das condições indignas conotadas com o subdesenvolvimento. Como refere o autor, o desenvolvimento alude «discreta ou inadvertidamente à era da hegemonia americana» (p. 6). Nos dias de hoje cerca de dois terços das pessoas no mundo estão colocados neste espaço de subdesenvolvimento, marcado por mecanismos de discriminação e de subjugação. O peso do impacto semântico da expressão desenvolvimento é tão grande que ela está patente em muitas expressões compostas, como iremos ver de seguida, e a sua força é incomparável com qualquer outro conceito. Sistematizando a história do conceito de desenvolvimento, o autor refere-o como uma imagem de continuidade do passado. Portanto um mito que, para além de conservador, seria também reaccionário. Por exemplo Barreix (1998) considera desenvolvimento um ‘mito’ já velho, cuja moda se impôs no mundo e cuja mania se desenvolveu de modo a colar-se a muitas formas de trabalho social. Para ele, esta visão ‘desenvolvimentista’ pode implicar mecanismos de controlo e de manipulação social que o estado interpõe nos processos sociais.

Prosseguindo, e de novo com Esteva (1999), podemos ver que desenvolvimento descreve o processo pelo qual qualquer objecto ou organismo se realiza absolutamente, um pouco como se desenvolvem os seres vivos no campo da biologia. O que parece evidente é que para muita gente o desenvolvimento significa um processo de mudanças económicas provenientes da industrialização, de mudanças sociais que resultaram na urbanização, e de mecanismos de adopção de um moderno estilo de vida e de novas atitudes (Midgley, 1999). Na verdade, as prescrições do desenvolvimento económico no século XX obtiveram resultados assinaláveis que excederam largamente o último milénio. E isto é verdade tanto para os países do Ocidente industrializado como para os países do chamado Terceiro Mundo. Contudo, Midgley mostra que as décadas que se seguiram ao segundo conflito mundial, viram arrefecer este dinamismo ou até mesmo retroceder no caminho do desenvolvimento. Muitos relatórios têm vindo a mostrar que a pobreza aumentou em muitos países do Terceiro Mundo, particularmente na África e na América Latina, e que mesmo em muitos países industrializados a proporção de pessoas pobres tem crescido. Muitas das experiências provenientes do modelo de desenvolvimento económico dominante nos últimos anos foram criticadas, sobretudo pelos ‘teóricos da dependência’. Estes mostraram que os programas de desenvolvimento norte-americano originavam pobreza e não eram mais do que um mecanismo de colonização e de exploração capitalista a nível nacional e internacional. Para estes críticos, o subdesenvolvimento era apenas e tão só uma criação do desenvolvimento (Esteva, 1999). O desenvolvimento parece não ser mais do que um ‘desenvolvimento distorcido’, como lhe chama Midgley (1999). Ele está presente, como vimos, nos países

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industrializados, nos quais não conseguiu erradicar a pobreza nem permitiu que se alcançasse melhores níveis de vida. E nos países do Terceiro Mundo, nos quais permitiu o aumento da pobreza, ou, quando aconteceu alguma prosperidade, fê-lo à custa da exploração dos recursos naturais. Esteva (1999) refere-se a um documento da Conferência das Nações Unidas, de 1976, que mostra que o desenvolvimento não iria conseguir eliminar a fome e a pobreza no mundo mas que, pelo contrário, iriam aumentar os níveis de ‘absoluta pobreza’ de um quinto para, provavelmente, dois quintos da população mundial.

Outra das questões significativas para Midgley é as condições deploráveis de opressão da mulher, causadas por um modelo industrializado e de exploração de recursos. Para o autor, o ‘desenvolvimento distorcido’ existe nas sociedades porque «o desenvolvimento económico não é acompanhado por um concomitante nível de desenvolvimento social» (p. 4). Na verdade, o modelo assentou sempre num domínio colonial que legitimava a exploração de recursos mineiros e agrícolas, através de programas designados de desenvolvimento económico das colónias, baseados na ideia de que estas deveriam ter direito ao seu progresso. Tanto os administradores coloniais como os líderes nacionalistas faziam acreditar que o desenvolvimento económico possibilitava a transformação das colónias em países modernos e prósperos. Depois das independências, muitos foram os líderes dos novos países que mimetizaram este tipo de planeamento e de desenvolvimento económico (Midgley, 1999). Para Esteva (1999) este ‘desenvolvimento’ não passou de uma «dramática e grotesca metamorfose» que, das mãos de Truman para os primeiros promotores, se reduziu claramente a ‘crescimento económico’ (p. 12).

Para contrariar estas visões distorcidas e ineficazes do ‘desenvolvimento’, acabaram por surgir algumas aproximações sociais mais evidentes. Por exemplo, os peritos da Unesco promoveram o conceito de desenvolvimento endógeno, que pretendia trazer uma via mais específica a cada país. Esta tese sustentava a ideia de que o desenvolvimento não poderia ser uma imitação, pura e simples, entre países diferentes. Em vez de uma imitação mecanicista das sociedades industrializadas, cada programa de desenvolvimento deveria considerar as especificidades de cada nação. Também nos anos 80, a partir do chamado relatório Brundtland, surge o conceito de ‘desenvolvimento sustentável’. Nesse relatório propunha-se um tipo de desenvolvimento que respeitasse os recursos no presente, como forma de potenciar o desenvolvimento das gerações futuras. Esta ideia do ‘nosso futuro comum’ acabou por ser encarada como uma estratégia para sustentar o desenvolvimento corrente e não como uma forma de suporte de florescimento da diversidade natural e social (Esteva, 1999). A propósito, podemos referir as teorias propostas por Hettne (1990, citado em Payne, 2002) de eco- desenvolvimento e de etno-desenvolvimento. A primeira é muito semelhante ao

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desenvolvimento sustentável, pois aposta nas pessoas e nas suas necessidades locais, sem abusar dos recursos naturais; a segunda reconhece que o desenvolvimento não pode assentar no estado-nação, nem em pequenos grupos, que normalmente conflituam pelos recursos e pelo poder.

Nos anos 90 do passado século, as Nações Unidas trouxeram o conceito de desenvolvimento humano, a partir dos importantes relatórios que começaram a publicar em 1990, sob a égide do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). No primeiro relatório, dizia-se que o desenvolvimento humano era um processo e um nível de aquisição. Como processo, significaria um alargamento das escolhas humanas relevantes e, como nível de aquisição, uma comparação com as escolhas padronizadas já existentes nalguns países. Para os autores do relatório o desenvolvimento humano é apresentado como uma comparação internacional do nível de privação, o qual determinaria as diferenças entre o país mais desenvolvido e os restantes (Esteva, 1999). Midgley (1999) refere que o conceito de desenvolvimento humano não é mais do que outra forma de se chamar desenvolvimento social. E acrescenta que os autores do relatório provavelmente não quiseram usar o termo ‘social’ devido ao facto de este ter sido denegrido durante longo tempo. A partir de 1995, e de acordo com Midgley, a ideia de desenvolvimento comunitário volta a ser colocada na agenda global, depois de um período de grande negligência.

Ao contrário do conceito de comunidade que, como vimos, já tem alguns séculos, o conceito de desenvolvimento comunitário é muito recente. Terá pouco mais de meio século, pois surgiu no contexto sócio-político do pós-guerra. O primeiro relatório que pretende questionar o modelo do desenvolvimento – acusado de crescimento económico –, bem como trazer elementos sobre a situação social, data de 1952. O relatório das Nações Unidas, a que nos referimos, traça uma descrição das condições sociais de existência e dos programas que deveriam cumprir a melhoria das condições de vida de muitos países. É a partir desta data que a expressão desenvolvimento social (entendido aqui por nós na acepção de desenvolvimento comunitário) começa a surgir com regularidade. Primeiro, ainda sem uma definição precisa, quase sempre como uma forma de desenvolvimento económico e como substituto da ideia estática de situação social (Esteva, 1999). Aqui começa o balanço entre o económico e o social na análise da situação social no mundo, até que ambos os termos se começam a integrar nos programas de desenvolvimento da ONU. De facto, depois do pequeno período de aparente crescimento e recuperação do pós-guerra, os anos 60 mostram que a esperança no crescimento económico começa a decair, motivada pelo aumento de várias desigualdades sociais. Por isso, é natural que o desenvolvimento comunitário comece a ser visto «parcialmente como pré-condição para o crescimento económico e parcialmente como uma

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justificação moral para ele e os sacrifícios que implicava» (Unrisd, 1960, citado em Esteva, p. 13). Também em 1970, o presidente do Banco Mundial vem reconhecer que, na primeira década de desenvolvimento das Nações Unidas (1960-1970), o crescimento económico não trouxe um satisfatório progresso em desenvolvimento e que na próxima década isso deveria mudar. E Midgley apresenta exemplos de como o mundo poderia olhar este problema com outros olhos.

Na Europa Central e na Escandinávia, alguns países detinham um balanço muito positivo entre desenvolvimento económico e alto nível de vida, exactamente porque, para além de uma crescente melhoria económica, empenharam muitos esforços no desenvolvimento comunitário. A verdade é que a aposta no desenvolvimento comunitário tinha tido origem nos processos de intervenção comunitária realizados em muitos países colonizados pelas potências europeias desde o século XIX (Payne, 2002). Os países colonizados desempenharam um importante papel neste processo. Midgley (1999) mostra como o conceito de desenvolvimento comunitário surge e se vai afirmando a partir das políticas de bem-estar das administrações coloniais, nos anos 40 e 50 do século XX. Como refere Mayo (1975) a motivação económica foi decisiva nas políticas de desenvolvimento comunitário levadas a cabo nas colónias, onde se transformaram numa verdadeira ideologia. As colónias representavam um manancial de recursos naturais aparentemente inesgotável e que era muito importante para os países dominantes. Por conseguinte, estes países levaram a cabo uma política de legitimação do trabalho local como forma de afirmação económica e política, usando para o efeito uma subtileza política de voluntariado e ajuda local sob a capa do desenvolvimento comunitário. Dessa forma o desenvolvimento do emprego e da economia local era apenas aparente, pois representava um meio de exploração cujo resultado era o desenvolvimento da potência colonial. Ao apontar o exemplo inglês, Mayo (1994) refere o desenvolvimento comunitário como uma forma de desenvolver as instituições e o poder político coloniais antes das auto-determinações desses países. Esta política continha interesses de poderio político e económico com vista a um futuro estratégico cada vez menos dependente da legitimação militar. O desenvolvimento comunitário implanta-se num quadro de modernização, no qual as teorias de desenvolvimento ganharam peso, originando uma mudança de paradigma. Esse paradigma dominante tentava mostrar que os países colonizados e os do Terceiro Mundo deveriam seguir o modelo de desenvolvimento dos países ocidentais, baseado na industrialização, devendo, para isso, estabelecer mudanças culturais como pré- requisitos para o almejado crescimento económico (Mayo, 2000).

Como refere Payne (2002), nos países não ocidentais o desenvolvimento comunitário passou a ser a principal forma de intervenção social, enquanto nos países ocidentais este tipo

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de trabalho é muitas vezes periférico às principais áreas de acção. O modelo do desenvolvimento comunitário acabou por ser adoptado para a maioria dos países em vias de desenvolvimento, o que permitiu ganhos de prestígio político para os países colonizadores. Foi por essa razão, que as políticas de desenvolvimento nas colónias ganharam uma imagem que foi criticada como sendo ‘paternalista’, por pretender legitimar um sistema de relações assimétricas, disfarçado de democrático. Como consequência, nos países colonizados, foram procuradas formas alternativas de desenvolvimento comunitário de que é exemplo a chamada participação comunitária (Mayo, 1994).

Para os países participantes no segundo conflito mundial o desenvolvimento comunitário representava uma forma de resolver graves problemas económicos resultantes da guerra, criando para o efeito um mercado capitalista livre em todo o mundo. E, para além disso, ao mesmo tempo que se encorajavam políticas desenvolvimentistas nas colónias, desencorajavam-se algumas atitudes radicais de contestação ao modelo, através da aparente participação voluntária dos nativos neste processo. Entretanto, nos países do Primeiro Mundo, onde se integravam os países colonizadores, o problema da pobreza originava o aparecimento das ideias do desenvolvimento das comunidades com vista ao corte do ciclo da pobreza. Na altura, começaram a surgir movimentos de desenvolvimento comunitário de auto-ajuda e de ajuda às famílias mais carenciadas. No entanto, esta política vem a ser criticada, acusada de constituir uma forma alienadora da participação dos cidadãos, enquanto ‘psicoterapia’ que não atacava os verdadeiros problemas estruturais das pessoas. Para Mayo (1975), parece ser evidente a prova de que o desenvolvimento comunitário se foi construindo como uma estratégia repressiva e conservadora para resolver os problemas sociais, políticos e económicos dos países capitalistas. E que essa estratégia foi usada, de forma muito atractiva, pelos governos e agências de desenvolvimento, tanto nos países seus colonizados como junto dos sectores mais empobrecidos e minoritários dos seus próprios países.

Neste processo de surgimento e afirmação do desenvolvimento comunitário, cabe um papel decisivo à ONU. Dando continuidade à política colonial inglesa, as Nações Unidas, de acordo com o artigo 55 da sua Carta, desenvolveram uma acção que visava a melhoria das condições de vida, o pleno emprego e o progresso social, a partir dos anos 50. Mas já nos anos 60, depois de ter dedicado programas aos cuidados da infância e ao apoio social às famílias, se percebe que a erradicação da pobreza não passava de uma miragem distante e que esta deveria ser o principal alvo dos programas subsequentes. E, como já vimos, nos fins dos anos 70, torna-se evidente que os programas da ONU e das várias agências internacionais só poderiam ter êxito se ligassem ao crescimento económico o tão falado desenvolvimento social (Midgley, 1999).

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Está na altura de vermos o que significa desenvolvimento comunitário.