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3.3 Uma analogia das danças serpentinas com Alwin Nikolais e Hélio Oiticica:

3.3.1 Alwin Nikolais

Nikolais é um dos artistas norte-americanos que, dentro da história da dança moderna cênica ocidental, influencia a transição entre a dança moderna e a dança pós-moderna, ao lado de Cunningham. Segundo Cavrell (2015), ambos artistas se diferenciam da geração de coreógrafas anterior, que tinham a expressividade de emoções ainda em vigor, e que tinham uma centralidade de figuras humanas.

Assim, ao mesmo tempo que liderava suas próprias criações dando os contornos e acabamentos ao trabalho, Nikolais tinha como uma de suas bases de pensamento a descentralidade, fazendo um “[…] tratamento democrático da luz, som, figurino e corpos” (CAVRELL, 2015, p. 164), buscando um abrandamento de uma hierarquia vertical que colocava o ser humano no topo e no centro das danças, proporcionando uma horizontalidade de importâncias, em que o ser humano não era protagonista a todo momento. Esse tratamento cênico do ser humano fora da centralidade, quase como uma objetificação, era decorrente possivelmente da relação

de Nikolais com teatros de marionetes, que “[…] tinha um lugar na história pessoal de Nik [Nikolais], pois ele fora um operador de marionetes, entretendo crianças em Hartford, Connecticut, antes de se tornar coreógrafo” (JOWITT apud CAVRELL, 2015, p. 167).

Algumas das semelhanças de Nikolais com Loïe Fuller traçadas por Cavrell (2015) relacionam-se por exemplo às construções de imagens em cena e à ilusões decorrentes não da dança em si, mas das combinações entre dança, figurinos e iluminações. Cavrell pontua que “Assim como Fuller, ele [Alwin Nikolais] era um paisagista e oferecia ilusões altamente complexas” (CAVRELL, 2015, p. 170). A semelhança entre os dois se dava tanto na busca da criação artística pela prática e observação, que refletia não apenas nas danças em cena, mas por exemplo, nas descobertas pessoais de iluminação – cada um à sua maneira, Fuller colorindo suas danças com vidros coloridos, como os vistos pela artista em Notre Dame (FULLER, 1913, p. 63), e Nikolais a partir de embalagens de pirulitos (CAVRELL, 2015, p. 168). Cavrell aponta em seu livro, “Dando Corpo à história” (2015), que essa relação Fuller-Nikolais, se dava não apenas nas similaridades, mas em aspectos específicos das similaridades, que também divergiam:

Suas imagens [de Nikolais] não são constantes transformações, mas uma forma é normalmente abandonada por outra. Diferente de Loie Fuller, no sentido de que as imagens dela se originavam de ilusões efêmeras, criadas por suas transformações rápidas, enquanto Nik nos mostra a imagem da marionete e de seu operador. Nós vemos a ilusão, mas também vemos como ela funciona. Nós vemos a maneira como os bailarinos giram e empurram os tecidos. Nós também temos a escolha de assistir à mecânica dessas formas ou escolher não aceitá-las. (CAVRELL, 2015, p. 166-167).

Giovanni Lista (1994) aponta diretamente algumas das relações entre os trabalhos de Loïe Fuller e Alwin Nikolais, como se o mesmo desse cabo de uma continuidade dos materiais fullerianos a partir dos anos 1950 – quando finda a companhia de bailados dirigida por Gab Sorére. Segundo Lista (1994), Nikolais não fazia seus trabalhos como uma continuidade num sentido restaurativo, historiográfico, como o fazia em partes a companhia sob direção de Sorère. De acordo com Lista, “O rastro dos véus coloridos, projeções de dispositivos/slides, acessórios cenográficos, a mágica feita com as cores e o uso fantasmagórico da iluminação permitiram que Nikolais chegasse a um teatro total, como sonhava Loïe Fuller.” (LISTA, 1994, p. 32). Logo, uma analogia entre Fuller e Nikolais não só é possível, como ancorada pela

bibliografia apresentada, apresentando pontos de convergência quanto ao uso integrado entre dança, iluminação e figurino, mas que ronda aspectos distintos para cada um dos artistas, sendo por Fuller tratado em grande parte de sua carreira sobre a centralidade dela, e em Nikolais na democratização da centralidade (deslocamento da centralidade) – que contudo, contava com sua supervisão, e muitas vezes manufatura.

Outro aspecto a ser levantado quanto a Nikolais e Fuller, é o significado de dança enquanto motion. Nikolais dizia que “[…] a dança basicamente – e devo enfatizar o basicamente – é primariamente preocupada com o movimento” (CAVRELL, 2015, p. 168). No filme “NIK: An Experience In Sight and Sound”78 (sem data), Alwin

Nikolais fala sobre suas concepções de dança, e ele inicia dizendo justamente que a dança é a arte do movimento (dita por ele como motion) – mesma frase utilizada por ele de que “[…] dance is motion.” (NIKOLAIS apud ROGOSIN, 1980, p. 82). Fuller, segundo as traduções feitas para o português por Tales Frey e Mãe Paulo (2020), pontua que

Para compreendermos o significado real e mais amplo da palavra dança, tentemos esquecer o que conhecemos hoje por coreografia. O que é a dança? Movimento. O que é o movimento? A expressão de uma sensação. O que é uma sensação? O resultado produzido no corpo humano de uma impressão ou ideia percebida pela mente. (FULLER apud FREY, PAULO 2020, p. 66).

Observa-se que em sua biografia em inglês, de 1913, Fuller não utiliza da palavra movimento (movement), mas sim motion79 – que é a mesma palavra utilizada

para fins jurídicos, como em moção, ou para o movimento desenvolvido por fitas em uma projeção de filme (motion picture). Segundo definição da página Léxico/Oxford, a palavra motion enquanto substantivo, “é a ação ou processo de mover ou ser movido; um gesto; uma peça de mecanismo movente”80, agregando portanto à definição de

dança de Loïe Fuller, uma caracterização do movimento para a dança, que diz respeito

78 Acessado pela USC Digital Library, na Dance Heritage Video Archive, pelo link:

http://digitallibrary.usc.edu/cdm/singleitem/collection/p15799coll105/id/78/rec/6. Acesso em: jun. 2020.

79 Lucila Vilela (2020) também traduz esse trecho da biografia de Fuller enquanto “movimento” (VILELA,

2020, p. 48). No texto original em inglês, encontrou-se a versão “[…] What is the dance? It is motion. What is motion? The expression of a sensation. What is a sensation? The reaction in the human body produced by an impression or an idea perceived in the mind. [...]” (FULLER, 1913, p. 70). Segundo Vilela, “A autobiografia de Loïe Fuller, Quinze ans de ma vie, foi escrita em inglês e publicada pela primeira vez em francês, em 1908, com tradução de Bojidar Karageorgevitch e introdução de Anatole France. Pouco depois, em 1913, Fuller retorna à escrita de suas memórias e publica em Londres, por H. Jenkins, a versão Fifteen Years of a Dancer’s Life” (VILELA, 2020, p. 3).

a um processo de movimento. Portanto, Nikolais e Fuller tinham a dança enquanto um lugar para se observar o movimento, os processos de transformação, – para cada um de um modo.

Levanta-se brevemente também a sexualidade observada nos trabalhos, em que os corpos dos bailarinos eram vistos como andróginos nos trabalhos de Nikolais (CAVRELL, 2015, p. 167), pela mecanicidade dos movimentos, assim como uma interpretação conservadora sobre os trabalhos de Fuller que considerava-os como assexuados pelo excesso de tecidos que cobriam completamente o corpo da bailarina – noção contraposta pela leitura de que as danças de Fuller tinham alta carga de leitura sexual, na qual os tecidos desenhavam “dobras e contornos dos lábios vaginais” (TOWNSEND apud ALBRIGHT, 2007, p. 47).

Por fim, uma importante característica defendida por Nikolais em seus trabalhos é o da possibilidade de leitura e reflexão própria do público, em que este é como um coautor ao observar o trabalho, e interpretar as imagens produzidas, que funcionam como catalisadoras para cada espectador, reverberando de um modo (NIKOLAIS

apud ROGOSIN, 1980, p. 85). De modo similar os trabalhos de Loïe Fuller são

descritos por Garelick, o qual “A dança de Fuller parece ter oferecido ao público uma tela metafórica onde se projetam fantasias do inconsciente” (apud VILELA, 2020, p. 71).

Figura 28. Trecho de vídeo em que um Parangolé é manipulado. Este vídeo acompanha o artigo "As performances Parangolé e a Serpentine dance" (2017), de

Gonzaga.

Fonte: http://www.calstatela.edu/al/karpa/deusimar-gonzaga. Acesso em: jun. de 2020.