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3.3 Uma analogia das danças serpentinas com Alwin Nikolais e Hélio Oiticica:

3.3.2 Hélio Oiticica

Hélio Oiticica fora um artista visual brasileiro, que nos anos 1960 produziu uma série de trabalhos vestíveis, chamados parangolés. Esse trabalho consiste em uma série de capas feitas com diferentes tecidos unidos e retorcidos, que eram vestidos por pessoas, que dançavam e levavam essas cores para o espaço – entre elas, pessoas do morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, em especial nos entornos da quadra da Escola de Samba Estação Primeira, que “[…] Para Hélio representou a descoberta do corpo tornado dança e de outros modos de comportamento.” (SALOMÃO, 1996, p. 26).

A palavra parangolé era uma gíria nos anos 1960, utilizada no morro que segundo Salomão (1996), tem um grande espectro de significados, como “o que está acontecendo?” ou “como você está?”, ou mesmo um modo de indicar coisas entendíveis apenas para aqueles que compartilham algum conhecimento, como algo “[…] não plenamente articulado nem desarticulado, o não sistêmico: o poder da sugestão.” (SALOMÃO, 1996, p. 28). Essa multiplicidade semântica da gíria se aplica

ao trabalho de Oiticica, em que inúmeros tecidos e materiais unem-se como dejetos da cidade (SALOMÃO, 1996). Além da materialidade, essa relação polissêmica amplia-se aos movimentos e as sugestões que tais movimentos causam, gerando imagens nos espectadores como “[…] um avião, Ícaro, ou um OVNI qualquer – um feitiço fugaz, uma firula, uma propensão gingada para dribles e embaixadas, aparece, agita e serve como acionador de seus giros” (SALOMÃO, 1996, p. 29).

Ou seja, faz-se notável que algumas palavras que circundavam as danças fullerianas, como dança, cor, vestimenta e polissemia, também circundam esse trabalho de Oiticica. Existe em ambos trabalhos uma relação de íntima conexão desses elementos, que estão presentes em diversos trabalhos artísticos, mas cujo modo relacional entre si nem sempre correspondem a uma dependência entre esses elementos – mas que nos trabalhos de Oiticica e de Fuller, esses elementos estão em uma relação mútua, intrínseca e constante.

Uma comparação entre os Parangolés e as Danças Serpentinas por Gonzaga (2017), apresenta brevemente alguns elementos da história de Loïe Fuller e alguns elementos dos parangolés de Oiticica, concluindo que “[…] Hélio Oiticica e Loïe Fuller abordaram questões artístico-sociais de suas épocas pela experimentação da movimentação corporal. Ambos apresentaram o corpo como objeto de arte para propor novas estruturas da cor, do gesto, do espaço e do tempo, em diferentes templos.” (GONZAGA, 2017, s/p.). Salvo engano do uso da palavra templo, um ambiente sagrado, em vez de tempo, enquanto o período histórico que esses artistas habitavam, é possível entender que suas vestes apresentavam diferenças e semelhanças, pelos entornos espirituais e temporais, sendo o espiritual em Fuller como protestante, num primeiro momento de sua vida (FULLER, 1913; LISTA, 1994), e o temporal relacionado a um modo decorativo, visto na Art Nouveau da virada do século XIX para o século XX do qual Fuller teve influências e influenciou. Em Oiticica, os parangolés “[…] nascem da constatação de contingência, nada tem de decorativo ou polido. Surge da vontade de aprender o sentido bruto do mundo em seu nascedouro.” (SALOMÃO,1996, p. 29), e que se relacionam com a pluralidade de histórias do morro da Mangueira, entre elas, as distintas religiosidades que incluem os terreiros, além de vivências descritas por Waly Salomão como um lugar de “[…] invenção mitológica, com seres fabulosos, episódios épicos.” (SALOMÃO, 1996, p. 31). Assim, a partir do artigo de Gonzaga (2017), e por percepções sobre escritos sobre os artistas em diferentes bibliografias, nota-se que, de modo simplificado,

algumas das semelhanças entre Hélio Oiticica e Loïe Fuller residem sobre: um enfoque sobre cor; os corpos que atuam cobertos por um material, fazendo-os desaparecer/aparecer; as danças enquanto plasticidade/visualidade; possibilidades de metaforização em ambos; e relação com carnaval/carnavalidade. Há de se pontuar sobre as diferenças entre essas semelhanças, com a finalidade de distingui-los e compreender o que, mesmo com as diferenças, é residual e comum.

A principal distinção, já apontada, é o espaço-tempo que cada um dos artistas vive – sendo Europa, começo do século XX, em Fuller, e América Latina, meados do século XX, em Oiticica. Nota-se também os circuitos artísticos de Fuller e de Oiticica, que apesar de serem ambientes vanguardistas, o são de modos distintos: Fuller apropriava-se das skirt dances e do nautch indiano, sem citá-los, desenvolvendo-os aos seus modos e interesses, tornando assim um tipo de arte popular em uma arte erudita; Oiticica também estabelecia uma apropriação sobre uma cultura popular, dos morros, os quais não apenas citava-os, mas colocava-os como figuras centrais em seus trabalhos. Nas execuções dos parangolés, esse destaque das figuras do morro era notável, tendo inclusive um causo no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1965, em que, ao levar seus parangolés vestidos por pessoas do morro, conduzidos como numa parada, foram impedidos de entrar. Oiticica, assim, denunciou um racismo estruturado na sociedade artística da época (SALOMÃO, 1996, p. 51), que impediu a entrada de tais artistas no museu.

Levantam-se outros exemplos de paralelos entre Oiticica e Fuller: as danças serpentinas centralizavam-se em Loïe Fuller (ou em quem executava as danças, no caso de suas alunas), e portanto, convocavam a um olhar do inconsciente do espectador, este na penumbra de seus assentos a observar o corpo luminoso multicolorido da bailarina – ou seja, tinha-se duas posições, a do performer/dançarina iluminada, como centro de atenções de um lado, e de outro, um espectador sentado na escuridão a observar, de um modo participativo nas relações despertadas em seu inconsciente a partir das danças feitas. Diferentemente, os parangolés tratam-se de relações fluidas entre público e performance, possivelmente pelas performances dos parangolés não se darem em um mesmo espaço cênico de caixa-preta, mas sim de acontecerem ao ar livre (ou em exposições de arte), mantinham-se os espectadores e performers sob as mesmas condições de iluminação, convocando-os a um mesmo ambiente:

Ao vestir as capas, o corpo é convidado a se movimentar, retorcendo-se em dança. Entre ele e aquele que vê, que está fora, algo acontece: há um jogo entre o olhar de quem veste e o olhar de quem assiste, e tal jogo é capaz de estabelecer uma “participação coletiva”, nos termos de Oiticica. A fita de Moebius, que conforma boa parte dos parangolés, apresenta uma operação no espaço capaz de anular a distinção entre fora e dentro – não porque ambos se uniram em uma conjugação sem falhas, mas porque entre objeto e sujeito algo se passa, numa torção, desalojando-nos da posição de senhores do espaço, do campo visual e do objeto. Movimentando-os. A transmutação do espaço que a topologia visa estudar corresponde, no uso da fita de Moebius pelo artista, a uma proposta de trans-formação do sujeito com o outro, com a cultura. (RIVERA, 2009, p. 115).

Outro ponto a ser considerado como de divergência entre os artistas é a estruturação, a qual a dança serpentina relacionava-se, mesmo que indiretamente, com um conceito de beleza da linha serpentina, tendo de algum modo uma relação com continuidade, leveza, tridimensionalidade em perspectiva (LISTA, 1994). As vestimentas das danças serpentinas denunciavam também esse aspecto de uma continuidade em suas linhas, como uma unidade, em que, por mais que se perca em meio ao turbilhão de seda, retorna-se a uma figura estável e graciosa. Os parangolés por outro lado, são amálgamas de diversos tecidos e materiais, visto aqui também como uma forma de descontinuidade, ponto que concretiza a relação destes também com a ginga e o requebrar, com o desviar, presentes no samba e sambistas que performavam junto dos parangolés. Essa descontinuidade já era experimentada por Oiticica em seus quadros bidimensionais, nos chamados de Metaesquemas (1950), cujas formas pareciam vibrar – isso anos antes dos parangolés e dos bólides (antecessores dos parangolés, enquanto estruturas interativas e sensoriais):

Na participação proposta por Hélio, não se trata de recolocar o homem no centro da obra e confirmar uma expressividade que lhe seria intrínseca, como uma leitura apressada poderia levar a crer. Trata-se de colocá-lo em movimento no espaço, em pulsação com a cor, em gestos se desenrolando temporalmente. Trata-se de assumi-lo como instável diante de um trabalho rigorosamente concebido em sua instabilidade e precariedade. E então convidá-lo a uma mutação profunda. Nada mais distante desse homem indeterminado do trabalho de Oiticica do que as ações de afirmação da subjetividade que marcam boa parte da variada cena dos happenings americanos que surgiam mais ou menos no mesmo momento. (RIVERA, 2009, p. 111).

As cores das danças serpentinas eram obtidas pela iluminação elétrica e experimentações de Loïe Fuller com sais fosforescentes, (LISTA, 1994) – sem tais iluminações, as vestes de Fuller eram brancas, cor escolhida pela sua grande capacidade de reflexão das outras cores, o que tornava possível mais transições de

cores e efeitos em cena. Os parangolés, por outro lado, têm suas cores como se as mesmas tivessem saltadas de um quadro e adquirissem tridimensionalidade, por meio de tecidos coloridos amalgamados, com diferentes texturas, e que compõem em sua diversidade uma vestimenta que somente mudaria de cor pela mudança de perspectivas. Segundo Rivera (2009), “[…] A cor torna-se então corpo-cor, cor-ato, numa passagem que traz, implícita no corpo e no ato, uma convocação do sujeito que permitirá a sua obra todos os seus posteriores desenvolvimentos.” (RIVERA, 2009, p. 110)

Uma relação mais superficial pode ser estabelecida enquanto a conexão de ambos ao carnaval: em homenagem a Fuller, em 1893, os franceses davam o nome de serpentina ao confeito em fitas arremessados por foliões, segundo jornais da época vistos no primeiro capítulo desta dissertação; Oiticica ia ao morro, à Escola Estação Primeira de Mangueira, vivenciar e trocar com aqueles que organizavam o carnaval, seus desfiles.

As visões sobre dança por ambos também apresentam em algum grau semelhanças. Oiticica, em texto de 1965 sob o título de “A dança na minha experiência”, transcrito por Salomão (1996) diz que seus interesses em dança vêm “[…] de uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão, já que me sentia ameaçado na minha expressão de uma excessiva intelectualidade.” (OITICICA apud SALOMÃO, 1996, p. 32). Para Fuller, a dança compreendia numa dialogia entre processos complexos e simples, ao mesmo tempo, em que o movimento (motion) era uma expressão de sensações produzidas na/da/pela mente. A dança para Fuller, então, é definida por uma razão de ordem lógica, que tenta se explicar. Apesar disso, sua metodologia de ensino, era, aparentemente, pautada numa liberdade de expressão e movimentos, num contato com uma gama de sentimentos e sensações – aqui sim, produzindo um espelhamento sobre as buscas de Oiticica com a dança, com o samba.

Observa-se assim, que uma analogia entre Loïe Fuller e Hélio Oiticica é possível, mesmo Fuller não sendo uma referência para Oiticica. Há elementos entre ambos que, por suas formas e conteúdos, e dadas as devidas diferenciações, possuem algo de semelhante. Uma metáfora que identifica algo dessa semelhança/diferença, é a capa que cobre a ambos, polissêmica, multicolorida, que age tanto como um manto de rei, quanto como trapos de mendigos – tomando emprestada a expressão de Renato Rodrigues Silva (2003) que fala sobre os

parangolés de Oiticica, enquanto seus significados e sua polissemia. Fuller reverberou em muitos artistas plásticos, como Rodin e Toulouse-Lautrec, além dos artefatos de Art Nouveau, cartazes, e mesmo poemas mallarmeanos. Loïe Fuller está de algum modo presente na história das artes plásticas, nos primórdios da arte moderna. Por vezes, essas imagens, por fazerem parte de meios acessíveis e recorrentes, como livros de história da arte, por exemplo, podem ser apropriados inconscientemente, ou sem que os artistas que se aproximam esteticamente terem uma consciência direta: são processos fluídos, parte de aprendizados, e não são sempre visíveis e/ou controláveis.

4 UMA REATIVAÇÃO: SOBRE OS PROCESSOS DE PESQUISA ARTÍSTICA EM