• Nenhum resultado encontrado

1 EVOLUÇÃO DO TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UMA

1.3 O século XX, a industrialização e o trabalho infantil no continente americano

1.3.2 América do Sul: A proteção ao trabalho infantil sob uma perspectiva

Os processos de independência dos países da América Latina no início do século XX, como elucidado por Wolkmer (2010), não se caracterizaram como elementos definitivos de uma ruptura em relação às Metrópoles Ibéricas. No âmbito constitucional observa-se, muito antes, uma reorganização das ordens política, social e econômica do que uma completa ruptura com o modelo colonialista vigente. De maneira gradativa, princípios positivistas que contemplavam o novo ideário capitalista e as práticas liberalistas foram sendo inseridos nos textos constitucionais dos novos países. Wolkmer ainda esclarece que:

“[...] A dependência da cultura jurídica latino-americana da época ao modelo hegemônico eurocêntrico de matriz romano-germânica não se realizou somente no âmbito geral das “ideias jurídicas”, mas, igualmente, em nível de construções formais de Direito público, particularmente da positivação constitucional. Isso se comprova no processo de constitucionalização dos Estados latino-americanos que foram doutrinariamente marcados pelas Declarações dos Direitos anglo-francesas, pelas constituições liberais burguesas dos Estados Unidos (1787) e da França (1791 e 1793), e pela inovadora Constituição Espanhola de Cádiz (1812).” (WOLKMER, 2010, p.3). Deste modo, Wolkmer (2010) afirma que a cultura jurídica na América Latina está intrinsecamente vinculada àquela dos países colonizadores e, portanto, as instituições jurídicas fundadas após o período de independência refletem o vínculo mencionado. Os textos constitucionais dos novos países foram impactados de modo especial, pois derivam da tradição europeia que regula as relações do âmbito privado baseada no Direito Romano, Germânico e Canônico e, assim, apresentam características dos princípios burgueses e iluministas originados pelas declarações de direitos francesa e inglesa. Além disso, as constituições latino-americanas contemplam, em muito, a nova realidade capitalista e de livre mercado que dominava o mundo quando das suas promulgações. Imbuídos por um sentimento de valorização do ser humano e de seu contexto social, os constituintes das novas nações estabeleceram, graças ao ideário iluminista herdado das constituições burguesas, fortes elementos de proteção aos Direitos Humanos, além de outros importantes princípios de

valores, tais como: a autonomia, a descentralização, a participação, a diversidade, e a tolerância15.

Fatores ligados ao positivismo jurídico, juntamente com uma proposta de limitação do poder central do Estado, através dos processos de descentralização e de consecução dos direitos de cidadania por parte da sociedade, confluíram para a formação de uma ideologia em que as constituições latino-americanas se caracterizassem por serem exaustivos compêndios de regras de organização administrativa, econômica e social. Isso significa que o texto constitucional possuía vasta abrangência quanto aos temas abordados, dado que é próprio das constituições burguesas a consagração detalhada de princípios e garantias, como por exemplo, igualdade formal perante a lei, independência de poderes, soberania popular, garantia liberal de direitos, cidadania culturalmente homogênea, definições dos direitos sociais e a condição idealizada de um Estado de Direito universal.

A diferenciação da etapa da infância da biografia humana se dá em diferentes momentos na história das sociedades modernas, entretanto, alguns pontos são considerados comuns quanto à evolução da ideologia da infância, sendo eles: (i) Demografia: a diminuição das taxas de nascimento atribuiu à criança um maior valor e aumentou o interesse no desenvolvimento de cada criança individualmente, tanto pelos pais quanto pelo Estado; (ii) Economia: passa-se a encarar a educação de crianças e a sua socialização como elementos básicos para o crescimento econômico, e, a partir deste crescimento mais recursos passariam a ficar disponíveis; (iii) Família e Sociedade: Famílias com pais que trabalham fora de casa seriam menos disponíveis para gerir e socializar suas crianças, o processo de urbanização afastaria, desse modo, crianças da

15 Como constatado por Wolkmer (2010), os valores incorporados nos textos das Constituições

latino-americanos são: 1) a autonomia, poder intrínseco aos vários grupos, concebido como independente do poder central; 2) a descentralização, deslocamento do centro decisório para esferas locais e fragmentárias; 3) a participação, intervenção dos grupos, sobretudo daqueles minoritários, no processo decisório; 4) o localismo, privilégio que o poder local assume diante do poder central; 5) a diversidade, privilégio que se dá à diferença, e não à homogeneidade; e, finalmente, 6) a tolerância, ou seja, o estabelecimento de uma estrutura de convivência entre os vários grupos, baseada em regras “pautadas pelo espírito de indulgência e pela prática da moderação”.

comunidade e do controle da família e aumentaria os problemas relacionados ao desenvolvimento da infância.

A partir desses pressupostos Boli-Bennett e Meyer em aclamado trabalho publicado em 1978 na American Sociological Review buscaram compreender a evolução do conceito da Ideologia da Infância nas sociedades modernas, utilizando como principal instrumento as constituições dos Estados-nacionais. Os autores pretenderam entender como o Estado tecnicista, surgido no século XIX, geriu a situação da infância como uma etapa distinta da biografia humana, que inspirava uma regulação especial tanto por parte do Estado quanto por parte da sociedade. Dessa maneira, Boli-Bennett e Meyer (1978) buscaram elencar categorias que revelassem a postura dos Estados-nação16 frente à

ideologia da infância.17 Além disso, os autores estabeleceram um score que

atribuía pontuações aos países em relação às categorias escolhidas. Quanto à exploração de mão de obra de crianças e adolescentes, uma das categorias de análise, os países foram posicionados tendo como base a regulação do trabalho infantil. A pontuação foi atribuída da seguinte maneira18:

(0) Nenhuma menção sobre a proteção ao trabalho infantil;

(1) Autoridade genérica sobre a regulação de todos os tipos de trabalho (o que pode incluir o trabalho infantil);

(2) O Estado tem autoridade explícita para regular especificamente o trabalho infantil;

(3) Regras específicas sobre o trabalho infantil são apresentadas.

O quadro a seguir auxilia na análise das constituições nacionais dos países sul- americanos, utilizando as mesmas categorias eleitas por Boli-Bennett e Meyer

16 A amostra da pesquisa foi composta pelas constituições dos países independentes entre os

anos de 1870 e 1970, sendo analisadas as constituições com períodos de vinte anos de intervalos (1870, 1890, 1910, 1930, 1950, 1970).

17 As categorias de análise estabelecidas por Bennet e Meyer (1978) são: Infância como uma

fase distinta da biografia; Responsabilidade do Estado pelas crianças; Regulação do trabalho infantil; Controle do Estado sobre a educação; Obrigação do Estado em oferecer educação; Níveis específicos de educação; Direito à educação e O dever de ser educado.

18 Para detalhes sobre as outras categorias ver BOLI-BENNETT, John; MEYER, John W. The

ideology of childhood and the state: rules distinguishing children in national constitutions: 1870- 1970. American Sociological Review, v.43, n.6, 1978, p. 797-812.

(1978) para verificar a postura dos Estados quanto à proteção ao trabalho infantil:

QUADRO 3- Proteção ao Trabalho Infantil nas Constituições Sul-americanas

Categoria/País Nenhuma menção sobre a proteção ao trabalho infantil Autoridade genérica sobre a regulação de todos os tipos de trabalho Autoridade explícita para regular especificamente o trabalho infantil Regras específicas sobre o trabalho infantil são apresentadas Argentina X Bolívia X (1938, 1945, 1947, 1967, 1995 - vigente) Chile X Colômbia X Equador X (1929, 1945, 1946, 1967, 1988- vigente) Guiana X Paraguai X (1992- vigente) Peru X Uruguai X (1934, 1942, 1952, 1967, 1989, 2004- vigente) Suriname X (1987- vigente) Venezuela X

Fonte: Quadro elaborado pelo autor

Analisando a postura constitucional frente à proteção do trabalho infantil na América do Sul, observa-se uma situação paradoxal. Isso porque, devido às suas origens positivistas e burguesas, é característica das constituições sul- americanas mencionarem em algum momento a responsabilidade do Estado frente à proteção à infância19, entretanto a mesma frequência não é conferida

19 Todos os países sul-americanos mencionam a responsabilidade do Estado quanto à proteção

da infância em suas constituições. As primeiras menções se concentram entre os anos 1920 e 1940.

às questões relativas à regulação ao trabalho infantil. Seis dos onze países sul- americanos não apresentam em suas constituições, revogadas ou vigentes, qualquer menção quanto à proteção ao trabalho infantil ou mesmo sobre a sua regulação por parte do Estado, o que lhes atribui score 0 (zero), segundo a metodologia cunhada por Boli-Bennett e Meyer (1978). Esses Estados20 não

oferecem, tampouco, nenhuma menção à sua autoridade face à regulação de todos os tipos de trabalho, o que implicitamente englobaria a modalidade do trabalho infantil.

Por outro lado, quatro Estados21estabelecem, em suas constituições, autoridade

específica para regular o trabalho de crianças e adolescentes, contudo não oferecem nenhuma norma explícita quanto a tal regulação. Tais países obtiveram score 2 (dois) na escala dos autores americanos. Finalmente, nota-se que um país – Equador- vincula aos seus textos constitucionais a capacidade jurídica do Estado na regulação específica do trabalho infantil e, ainda, estabelecem regras quanto à regulação dessa modalidade de trabalho. Essa regulação, muitas vezes, versava sobre a jornada máxima de trabalho para menores de dezoito anos ou, ainda, sobre a vedação de trabalhos noturnos ou insalubres para crianças e adolescentes; Bennet e Meyer estabeleceram o score 3 (três) para esses países. O caso equatoriano merece destaque, pois, apresenta a menção mais antiga quanto à regulação do Estado acerca do trabalho de crianças e adolescentes. Na sua constituição de 1929, estabelece:

“Título XIII. De las garantías fundamentales Artículo 151- La Constitución garantiza a los habitantes del Ecuador, principalmente, los siguientes derechos:18. La protección del trabajo y su libertad.La Ley regulará, especialmente, todo lo relativo al trabajo de las mujeres y de los niños.” (ECUADOR, 1929).

Outro ponto merecedor de destaque é o fato de que todos os países sul- americanos que mencionaram a proteção ao trabalho infantil em suas constituições no passado mantiveram ou aprimoraram os artigos relacionados a esse tema em suas constituições que vigoram atualmente, não havendo, portanto, retrocesso sócio-jurídico quanto à proteção do trabalho infantil na América do Sul.

20 Argentina, Chile, Colômbia, Peru, Venezuela e Guiana. 21 Bolívia, Paraguai, Uruguai e Suriname.

O item a seguir se ocupará de oferecer uma perspectiva ampliada sobre a evolução histórica da proteção da mão de obra de crianças e adolescentes no Brasil.