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de pronto la casa se llenó de canciones Músicas y versos que brotaban desde tantos rincones. (Jorge Drexler, Salvapantallas, 2004)

Admitindo a centralidade das misturas na produção das culturas na América Latina, Herom Vargas (2007a) adverte para o limitado entendimento sobre as dinâmicas destes processos, com suas consequências empíricas e teóricas envolvendo produtos híbridos. “Esse processo não aconteceu em outro lugar do mundo na mesma intensidade, com a mesma diversidade e igual ímpeto de violência e criatividade” (VARGAS, 2007a, p. 185). Ou seja, por mais que todas as culturas sejam híbridas, no continente latino-americano daria para perceber maior grau de profundidade de soluções em tempo e espaço reduzidos.

Jesús Martín-Barbero corrobora quando observa que na América Latina diferença cultural não significa o mesmo que na Europa e nos Estados Unidos. Não é a dissidência contracultural ou o museu, “mas a vigência, a densidade e a pluralidade das culturas populares, e o espaço de um conflito profundo e uma dinâmica cultural incontornável” (2015, p. 28). Também ressalta que nos últimos anos o popular não é dimensão exclusiva das culturas indígenas ou camponesas, mas também passa pela “trama espessa das mestiçagens e das transformações do urbano, do massivo” (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 28). Assim, o autor propõe investigar as relações que fazem essa mestiçagem, ou seja, as mediações e os sujeitos articulados nas práticas de comunicação.

O fluxo de informações e imagens na globalização, por meios tecnológicos, altera o cotidiano no sentido de que temos acesso e proximidade com um universo muito grande de opções do outro no dia a dia. “A circulação tão fluida do que se produz em diferentes regiões e circula em quase todas faz com que voltemos a nos perguntar ao que nos referimos quando

falamos em produção cultural própria” (CANCLINI, 2003, p. 95-96). Na América Latina,

existe uma história mais ou menso comum que permite falar de um “espaço latino- americano”, no qual coexistem diversas identidades. Já o êxito transnacional da salsa, como fator aglutinador da latinidade nos Estados Unidos, levou a imaginá-la como narrativa unificadora da região. Mas segundo Canclini “a América Latina é heterogênea demais para

basear seus projetos conjuntos em unificações essencialistas e forçadas, que ignoram as discrepâncias e desigualdades internas” (2003, p. 96).

Desta forma, vários autores comentam a música popular no continente sob a ótica do hibridismo, analisando, por exemplo, como escalas, modos, combinações harmônicas, e formas ibéricas, soam diferentes quando adaptadas a novos contextos. “As mesclas produzidas, impossíveis de definir somente pelas origens de cada um dos dados dos quais surgiram, criam outras formas de fazer, ouvir e entender a canção” (VARGAS, 2007a, p. 188). Com a participação de elementos e atores indígenas e africanos, principalmente, houve intensa produção musical para festas e danças, em contextos diferentes daqueles dominados pela música escrita em partitura. Esta condição teria proporcionado características ligadas a uma postura despretensiosa, à improvisação e às mesclas criativas. Desta forma surgiram gêneros tais como a rumba, o tango, o son, a salsa e o candombe107.

A mescla entre elementos aparentemente contraditórios, a linguagem moderna e a insistente representação de características “primitivas” nacionais, teria conformado uma modernidade alternativa na América Latina. Ao invés da modernidade resultar na superação do primitivo, teria ocorrido a integração de ambos. Esta conclusão está no estudo de Florencia Garramuño (2007, p. 29) sobre o samba e o tango, como paradigmas de nacionalismo na música em meados do século XX. De acordo com a pesquisa, estes gêneros passaram por processos ambivalentes, entre a referência ao que seria “primitivo” e a modernidade, contando simultaneamente com a participação de governos populistas e com o reconhecimento internacional em suas construções como culturas nacionais. Desta forma, o samba e o tango: “[...] não são simples reflexos de uma identidade previamente constituída, mas cristalizações de processos complexos de negociação de diferenças culturais” (2007, p. 38)108. Por mais que

esta diferença tenha sido historicamente associada ao selvagem, exótico e caricato, as produções de tango e samba passaram por processos de “sofisticação”, com intervenções de compositores de classe média e de elite, o que teria contribuído para garantir aos gêneros um lugar na modernidade e nas simbologias nacionais.

Renato Ortiz (2015) também propõe evitar a dicotomia fácil entre moderno/pós- moderno, tradição/modernidade, velho/novo, passado/presente. Acompanhando seu 107 Neste ambiente de espontaneidade e criatividade, onde participam músicos, dançarinos e ouvintes, geram-se gêneros musicais baseados na performance coletiva. Não se trata do mesmo tipo de performance que se

conformou na canção de autor, individualizada. Ainda sim, essa postura aberta às misturas constitui uma característica geral que abarca ambos os tipos de performance.

108 “no son simples reflejos de una identidad previamente constituida, sino cristalizaciones de complejos procesos de negociación de diferencias culturales” (GARRAMUÑO, 2007, p. 38).

pensamento, saberemos que “esta lógica antitética e excludente percebe a história de forma linear, quando em um contexto de globalização diversas temporalidades se entrecruzam” (ORTIZ, 2015, p. 25). A partir deste entendimento, o local e o nacional não devem ser considerados como dimensões em vias de desaparecimento, mas como níveis que são redefinidos.

No século XX, estes constantes processos de recontextualização, transformação e mistura sonoras teriam conformado esferas públicas auditivas, na concepção de Ana Maria Ochoa Gautier (2006, p. 806)109: “temos um processo reiterativo de entextualização110 e

recontextualização que foi intensificado no momento da invenção da reprodução sonora no final do século XIX”. Com isto, uma ideia de hibridismo sonoro passou a ser acionada para designar a recontextualização – processo que teria característica inovadora, mesmo que seguindo modelos prévios. Hoje tais processos aconteceriam não só com músicas associadas ao folclore, mas com todas que são usadas para estabelecer uma ligação com o lugar e a história, significando fonte de pertencimento e identificação mesmo quando percebidas primeiramente como cultura de massa ou música transnacional.

Gautier (2006, p. 807) prefere o termo recontextualização, para dar nome aos processos atuais de mistura, que constituem na América Latina uma “esfera pública auditiva”111. A noção de hibridismo, segundo a autora, necessita de uma reconceitualização

fundamental referente às dimensões temporais e espaciais do sonoro e de uma ressignificação epistemológica sob as mudanças sociais e tecnológicas do mundo globalizado. A seguir, reconhece outro entendimento para o termo: “não aquele popularmente usado na música ou nos estudos de cultura popular (a mistura de gêneros previamente considerados separados) mas o trazer para a relação dois domínios da experiência que anteriormente eram tidos como separados” (2006, p. 810)112. Assim, Gautier pontua uma questão importante, pois toda forma

tida como pura também pode ser concebida como híbrida, ao contrário do que dizem visões invizibilizadoras nas quais a tradição aparece como “natural” e o hibridismo como construído. 109 “we have a reiterative process of entextealization and recontextualization that was intensified at the moment of the invention of sound reproduction in the late nineteenth century” (GAUTIER, 2006, p. 806).

110 Gautier baseia-se na noção de “entextualização” de Richard Bauman e Charles L. Briggs (2006, p. 206), utilizado na linguística para análise da poética e da performance. De acordo com os autores, a entextualização “é o processo de tornar o discurso passível de extração, de transformar um trecho de produção linguística em uma unidade – um texto – que pode ser extraído de seu cenário interacional”.

111 A autora utiliza o termo em inglês “aural public sphere” (GAUTIER, 2006, p. 807).

112 “not the one popularly used in music or popular culture studies (the mixture of genres previously considered separate) but the bringing into relation of two domains of experience that have been previously rendered as separate” (GAUTIER, 2006, p. 810).

Superando tais ideias, a noção de hibridismo se faz pertinente. Podemos dizer, remetendo-nos aos avanços das reflexões acerca do conceito de cultura, que não há nada que seja natural na cultura (nem as tradições). Por outro lado, todas as criações culturais seriam construídas. E, por tanto, híbridas. Herom Vargas (2007a, p. 208) também rechaça a pretensa busca por traços ancestrais nos elementos que conformam produtos híbridos: “se as misturas ocorrem, de nada vale perseguir e destacar a(s) origem(ns) como sinal(is) de pureza, procedimento típico de discursos ideológicos que prezam de forma monolítica a identidade nacional”.

George Yúdice (2004) corrobora com a reafirmação crítica do hibridismo como característica das formações culturais latino-americanas e a pertinência do conceito para compreender a emergência de uma esfera cultural transnacionalizada, pela qual circula a música. Com a globalização, os imaginários nacionais, que legitimaram misturas contraditórias e algum essencialismo no passado, enfrentam agora outros modos de produção e consumo impulsionados tanto por empresas transnacionais quanto por iniciativas populares. “As formas peculiares do hibridismo da América Latina não merecem, portanto, elogios essencialistas por seu caráter maravilhoso, nem de uma denúncia por sua falta de autenticidade” (YÚDICE, 2004, p. 131). Merecem, sim, ser articuladas a partir desta ambivalência113.

Se por um lado há interpretações de uma hibridização da modernidade europeia na América Latina como cópia que revelaria a falta de uma modernidade própria114, por outro

Angela Prysthon (2002, p. 27-28) entende que as vanguardas latinas teriam operado com certo grau de consciência, buscando estéticas autênticas e originais, entre o progresso tecnológico e urbano e o universo natural e simbólico. Em última instância, esses processos representam para os latino-americanos a possibilidade de redescoberta e retomada de posse de suas próprias tradições, além da revisão e reavaliação da própria tradição ocidental. A autora conclui que produções híbridas podem não significar muito em termos de presença no cânone ocidental, mas com elas, “a cultura latino-americana vem constituindo-se como um corpus que vai conseguir interferir, fazer parte e, inclusive, demarcar novos preceitos para este cânone” (GAUTIER, 2002, p. 29). Enquanto isso, seria constituída uma modernidade sonora 113 Bhabha utiliza o termo ambivalência para qualificar a mímica em discursos coloniais. Pois “a mímica emerge como a representação de uma diferença que é ela mesma um processo de recusa” (1998, p. 130). Isto porque a mímica é quase o mesmo, mas não exatamente. Há, nesta ambivalência, deslizamento, rompimento e desestabilização do discurso colonial. Assim a mímica passa a ser simultaneamente semelhança e ameaça.

114 Florencia Garramuño ajuda a compreender melhor esta questão, quando escreve que, enquanto nas vanguardas europeias o primitivo significa distanciamento da tradição e do nacional, na América Latina, o primitivo adquire outras conotações, como componente fundamental da construção de uma modernidade latino- americana (2007, p. 107).

na América Latina, sempre apresentada como um projeto inacabado. Neste sentido, hibridismo é a reificação da tradição por meio de práticas transculturais115, “a fim de construí-

la de forma permanente e inesgotável” (GAUTIER, 2006, p. 820)116. Em nosso ponto de vista,

esse projeto afirmativo da cultura latino-americana não necessariamente deverá ser associado a uma ideia de modernidade. Por isso acionamos o termo “contemporâneo”, conforme já foi exposto. Também divergimos da autora porque não vinculamos os hibridismos indissociavelmente às tradições. O conceito refere-se da mesma forma a apropriações e menções de sedimentações da cultura midiática e atual.

Deborah Pacini Hernandez (2010) disserta sobre a música popular latina nos Estados Unidos, associada no imaginário117 a expressões naturais de comunidades definidas racial ou

etnicamente. Nesta perspectiva, os latinos que escutam rock ou qualquer outro gênero contemporâneo são vistos como traidores, por abandonarem sua identidade ancestral. Em contraponto, sob a ótica dos processos híbridos, Hernandez examina a criação e a formação identitária de uma música latina que se forma nas intersecções de categorias distintas: “Longe de ser algo anormal ou problemático, o hibridismo, seja racial, étnico, cultural ou uma combinação destes, é uma das características marcantes da experiência latina” (2010, p. IX- X)118. Para tanto, pontua a importância de estar consciente da distinção entre hibridismo racial

e cultural, diante da persistência de disparidades e desigualdades119.

115 O conceito de transculturação foi proposto pelo sociólogo cubano Fernando Ortiz em 1940 “para explicar o impacto das trocas culturais e econômicas durante o empreendimento colonial” (AGUIAR; VASCONCELOS, 2004, p. 87). O objetivo era descrever processos nos quais duas culturas em situação de encontro ou confronto dão origem a algo novo, assim substituindo conceitos correntes como o de aculturação. Na década de 1970, o crítico uruguaio Ángel Rama incorporou o termo aos estudos literários para explicar de que maneira formas da modernidade europeia, como o romance, haviam se adaptado à realidade latino-americana.

116 “in order to construct it as permanently inexhaustible” (GAUTIER, 2006, p. 820).

117 Historicamente, Néstor García Canclini (2003) acredita que se construíram visões da Europa sobre a cultura latino-americana como lugar do prazer e da natureza, em contraponto a uma racionalidade civilizatória que os latinos viram no europeu. Baseando-se nestas premissas romantizadas e idealizadas, estabeleceu-se uma tendência na integração entre continentes de valorizar na América Latina a cultura como paisagem, adereço, curiosidade, exotismo. Já o pensamento produzido, que é parte importante da constituição da cultura, Canclini reclama que não é valorizado. Na relação com os norte-americanos, estas preconcepções também se reproduzem como estereótipos, principalmente na literatura e no cinema. Ao mesmo tempo, “a música latino-americana começa a fazer parte da multiculturalidade americana e a tornar-se um setor forte da sua economia de bens simbólicos” (CANCLINI, 2003, p. 92).

118 “far from being something abnormal or problematic, hybridity, whether racial, ethnic, cultural, or a combination of these, is one of the signature characteristics of the Latino experience” (HERNANDEZ, 2010, p. IX-X).

119 Outro conceito em intersecção com a questão racial é o de marronização. Ao contrário do que sugere a palavra, derivada da cor marrom, o termo não significa proclamar uma coloração monocromática. A

marronização ocorre quando o escravo foge, quando há disposição favorável à miscigenação como forma de se colocar fora de uma ordem cultural. “Marronizar a cultura significa seja misturar as diferenças (neste caso não só étnicas, mas também de modos de vida, visões de mundo e sensibilidades estéticas), seja impelir rumo ao abandono radical de uma ordem cultural” (CANEVACCI, 2013, p. 61-62).

A partir desse entendimento, a produção da música latina implica cruzamentos de fronteiras, musicais, geográficas, étnicas e raciais. Recentemente, novas ondas de imigrantes teriam enriquecido o mosaico musical latino dos EUA, somando estilos como merengue, bachata e cumbia. Hernandez (2010, p. 3) adverte que não há nada de excepcional no hibridismo latino-americano, visto que os Estados Unidos têm uma história similar de mistura racial e cultural (assim como muitos outros países ao redor do globo). Apesar disso, haveria muito mais disposição para conhecer, explorar e celebrar o hibridismo entre os latino- americanos do que entre não-latinos.

Voltado especificamente para a canção, Herom Vargas (2007b) corrobora ao propor como instrumento de estudo dela o conceito de hibridismo. Pois acredita que, a partir das transformações dos meios de comunicação, complexificam-se as misturas de elementos arcaicos e modernos, nacionais e estrangeiros. Vargas (2007b, p. 63) argumenta que apesar da suposta estandardização promovida pelos processos de mercantilização da música, “a dinâmica da canção popular sempre foi a da incorporação de elementos externos e da experimentação em novos formatos e instrumentações”. Para o pesquisador, os processos de mestiçagem e hibridação atualizam músicas tradicionais no atual estágio da globalização, e cita o tropicalismo como exemplo. É justamente essa “atualização”, ou “recriação”, das tradições, aceleradas pelas tecnologias, conforme escreve Herom Vargas, que se quer aqui problematizar, partindo do pressuposto de que há diferentes produtos gerados. Pois se acredita que na modernidade, quando da criação de novos gêneros latino-americanos mestiços, tais como o tango e o samba, houve a elaboração a longo prazo de um terceiro elemento híbrido120.

Hernandez (2010) reconhece que os latinos geraram uma variedade extraordinária de misturas inovadoras entre estéticas latino, afro e euro-americanas. No entanto, as múltiplas identidades da música latina mexem com a indústria. Hernandez acredita que o mercado segue buscando um conforto ilusório em categorias impermeáveis, como se o termo “indústria da música latina” sugerisse uma entidade monolítica. No entanto, trata-se de “uma rede complicada de comunidades e mercados múltiplos, étnico, racial e culturalmente definidos, cujas fronteiras sempre foram porosas e instáveis” (HERNANDEZ, 2010, p. 15)121. Este

120 Para Homi K. Bhabha, o espaço intersticial e relacional, onde ocorre o hibridismo, é o terceiro espaço, que se diferencia do estereótipo. É dinâmico, aberto e produtivo. Nele ocorrem os deslocamentos, as traduções e o surgimento de outras posições (MENEZES DE SOUZA, 2004, p. 114-128).

121 “a complicated network of multiple ethnically, racially, and culturally defined communities and markets whose boundaries have always been porous and unstable” (HERNANDEZ, 2010, p. 15).

estado de multiplicidade e indeterminação diante do mercado fonográfico seria “típico das configurações culturais de alto grau de mestiçagem cultural” (VARGAS, 2007a, p. 95). Ocorre estranhamento quando se sujeita a uma série de informações diferentes, até que elas sejam razoavelmente absorvidas, a ponto de perderem a aparência de estranhas. No mercado brasileiro, Herom Vargas destaca Chico Science e o manguebeat como exemplares do hibridismo, reconhecendo que artistas como Alceu Valença e Lenine já haviam feito antes a mistura de elementos pernambucanos com o rock. Mas acredita que o manguebeat constituiu de forma inédita uma cena local envolvendo música pop e regional. Os processos de hibridação que constituíram a estética do grupo pernambucano – perceptível no gestual performático entre o rap e a embolada, na instrumentação de guitarras e alfaias, nos arranjos com batida experimental misturada entre o pop e a tradição nordestina (mangroove). Assim, seriam uma demonstração da categoria de hibridismo generativo.

O caso de Luiz Gonzaga também seria paradigmático das abordagens de renovação e conservação, fundamentais na produção artística brasileira, de acordo com Jack A. Draper (2008, p. 167). Com o exemplo do cantor e compositor nordestino, argumenta que há representações de coletividades presentes no paradigma de conservação, que acionam sentidos políticos de reivindicação por igualdade. Desta forma, não só iniciativas artísticas de renovação terão sentido político de ruptura do status quo e defesa de culturas particulares. “Os conservadores, por sua vez, como Gonzaga, trabalham dentro dessas estruturas identitárias para acomodar pontos de vista culturais subalternos a uma sociedade em rápida transformação e, assim, atualizar as epistemologias dos grupos marginalizados” (DRAPER, 2008, p. 179)122.

Observa-se neste caso o vetor de aderência, articulado à tradição.

Enquanto isso, no tropicalismo, a atualização das mesclas na cultura brasileira entre a modernidade e a tradição teria se dado a partir da junção de elementos incongruentes entre si: “o grosso (como o kitsch e outros itens do nosso repertório cultural ligados ao excesso) e o fino (como a bossa nova), o local (sonoridades de diferentes regiões do Brasil) e o global (o rock e outras modalidades de música estrangeira), entre outros” (NAVES, 2015, p. 83). Isso não quer dizer que a tropicália teria atendido a expedientes exóticos e folclorizantes. O hibridismo tropicalista é intensamente ambivalente, pois em muitos momentos não ocorre de forma a gerar algo novo, mas como uma adesão a formas e estereótipos existentes, apenas

122“The conservers, for their part, like Gonzaga work within those identitarian structures to accommodate subaltern cultural standpoints to a rapidly changing society, and thus to update the epistemologies of marginalized groups” (DRAPER, 2008, p. 179).

colados e não tão elaborados esteticamente. Por outro lado, sempre poderá ser visto como uma valorização do diverso:

[...] se por híbrido queremos nos referir a um processo de ressimbolização em que a memória dos objetos se conserva e em que a tensão entre elementos díspares gera novos objetos culturais que correspondem a tentativas de tradução ou de inscrição subversiva da cultura de origem em uma outra cultura, então estamos diante de um processo fertilizador (BERND, 2004, p. 101).

Aproveitando a metáfora da fertilização, outro exemplo de diversidade neste contexto atual, está na terceira geração de cantautores chilenos, que de acordo com Juan Pablo González (2011, p. 942) possui raízes “hidroponicamente nutridas” por um folclore universal midiatizado. Esta raiz “hidropônica” faria parte de uma sensibilidade global, que permite a expansão das possíveis raízes tanto no espaço como no tempo.

Nas ambivalências e contradições da globalização, não há um único modo de produzir às margens. Não se trata de uma simples oposição. “Há no futuro muitas mais oportunidades do que a opção entre McDonald's e Macondo” (CANCLINI, 2003, p. 47). Esse aforismo de Néstor García Canclini indica que os artistas e os escritores são especialistas em narrativas e metáforas, com as quais tratam do inapreensível, frente a alterações muito rápidas e violentas das identidades habituais.

A participação da música latina na globalização teve uma época de glória nos anos 1940 e 1950, com o sucesso comercial de danças afro-cubanas e caribenhas, a exemplo do mambo, impulsionadas pelo mercado estadunidense. Um segundo boom latino teria ocorrido nos anos 1990, com hits integrados à cultura pop, de artistas como Ricky Martin, circulando o globo (HERNANDEZ, 2013, p. 54). Paralelamente a estes sucessos e reconhecimentos mundiais, diversas produções híbridas, desenvolvidas a partir da manipulação de tecnologias eletrônicas, misturaram referências e ritmos locais com gêneros globalizados como o rap e a

disco music. Desta forma, geraram criações como o reggaeton, contextualizadas no continente

a partir de uma cultura musical-tecnológica global. Diante destas tendências, notamos que a canção, em sua forma reflexiva, não romântica, distante da pista de dança ou da festa, nunca