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3.1 CIRCUITO DA COMUNICAÇÃO PARA O ESTUDO DA CANÇÃO

3.1.2 Materialidade – violão, voz e tecnologias

Hay tantas cosas Yo sólo preciso dos: Mi guitarra y vos Mi guitarra y vos (Jorge Drexler, Guitarra y vos, 2004)

O trecho da letra da canção na epígrafe acima permite uma dupla interpretação. Na primeira audição, podemos entender que a única coisa que o compositor precisa é seu violão e sua voz. Mas Jorge Drexler escreve o verso “guitarra y vos”, com a letra S no final, o que na tradução para o Português significa “você”. Seja qual for a leitura, esta canção remete à

materialidade. No primeiro caso, da matriz da canção, o violão e a voz, conforme já

argumentamos no segundo capítulo. Já no segundo, faz refletirmos sobre os corpos implicados na entoação de uma canção. “Embora a canção não seja para dançar [...], há pelo menos dois corpos em jogo no estabelecimento da canção: o corpo de quem canta e o corpo de quem ouve” (GONZÁLEZ, 2009, p. 206)75.

Considerando estas premissas, vamos sistematizar sob quais ferramentas de análise se dará nossa investigação na instância da materialidade. Cabe logo deixar claro que não é nosso objetivo nesta abordagem analisar condições materiais estruturais, mas sim aquelas relacionadas diretamente com a performance, tais como corpo, instrumentos e artefatos tecnológicos. Nosso enfoque do tema parte de uma perspectiva baseada na relação entre tecnologia e cultura, conforme Itania M. Mota Gomes (2015, p. 5). Nela, observam-se processos de mudança nas instâncias material e cultural, estabelecendo resistências, convenções, tensões, inovações e continuidades. É o caso do heavy metal, por exemplo, gênero consolidado que de acordo com Gomes (2015, p. 9) só foi possível ser criado com o aporte material tecnológico de guitarras, amplificadores valvulados e potentes sistemas de sonorização, além de complexos sistemas de iluminação.

Estas reflexões sobre tecnologia levam a pensarmos também o contexto latino- americano. Martín-Barbero (2015, p. 255) observa que as “novas tecnologias” como as de comunicação via satélite e televisão a cabo, emergentes desde os anos 1980, alavancaram dois processos: um de modernização pela aceitação dos modelos de produção, e outro de “apropriação social e cultural daquilo que nos moderniza” (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 256). Desta forma, o autor diagnostica problemas da ordem das identidades, entre a

75“Si bien la canción no se baila [...], hay, al menos, dos cuerpos en juego en la radicación de la canción: el cuerpo del que la canta y el cuerpo del que la escucha” (GONZÁLEZ, 2009, p. 206).

assimilação tácita e a resistência. Esta observação nos leva à articulação dentro do circuito da

materialidade com os hibridismos, na ambivalência entre aderente (assimilação) e generativo

(resistência). Por último, levamos em conta o ponto de vista de Martín-Barbero (2015, p. 259) de que “as tecnologias não são meras ferramentas transparentes; elas não se deixam usar de qualquer modo: são em última análise a materialização da racionalidade de uma certa cultura e de um 'modelo global de organização do poder'.”. Tal materialização da hegemonia em certos usos de tecnologias manifestou-se no século XX principalmente pela circulação de discos, primeiro LPs, depois CDs. Por meio dela, alguns artistas projetaram-se popularmente em boa parte do globo. Nesse contexto, os fonogramas são tema imprescindível para entender como a música é projetada para ser popular. “Embora nem toda gravação se torna popular, todas são produzidas através de uma tecnologia de popularização” (ANDERSON, 2006, p. 296)76.

Ao lado do disco, Juan Pablo González (2000, p. 31) acrescenta outras inovações que transformaram a produção e a escuta da música no último século. O rádio foi responsável pela massificação e popularização da música em dimensões antes nunca imaginadas, junto da disseminação de repertórios locais, “produzindo homogeneização e diversificação de forma simultânea”. Outra novidade foi a utilização do microfone como meio de amplificação da voz. O artefato proporcionou transformações significativas na forma de cantar e na própria concepção estética do canto, permitindo uma emissão de voz mais baixa e relaxada, que evidencia melhor o timbre próprio do cantor, possibilitando a construção de um estilo individualizado. “Com o microfone, o cantor tem o ouvido do ouvinte em sua mão e pode sussurrar a canção para ele como se estivesse apenas cantando para ele” (GONZÁLEZ, 2000, p. 32)77. Esta relação mais íntima permitiu que o cantar privilegiasse o “dizer” as palavras,

conforme o estilo dos cancionistas que estamos estudando.

Com isto, colocamos as bases para que a análise do circuito da comunicação passe pela instância da materialidade. De acordo com Will Straw (2012, p. 229), elementos materiais da música proporcionam lidar com resistências e rupturas, representações de tradição ou modernidade, além de carregarem simbolicamente contextos e proporcionar encontros. A materialidade dos instrumentos musicais, por exemplo, pode levar a reflexões sobre as possibilidades de hibridismo em performances. O violão, instrumento predileto dos 76 "while not every recording is popular, it is designed through and for a popularizing technology"

(ANDERSON, 2006, p. 296).

77 “Con el micrófono, el cantante tiene el oído del auditor en su mano y puede susurrarle la canción como si sólo estuviera cantándole a él” (GONZÁLEZ, 2000, p. 32).

cancionistas, carrega em sua materialidade e sua sonoridade elementos culturais mais relacionados a tradições, como a da milonga, do que a guitarra, que por sua vez aciona sentidos muito mais relacionados com a modernidade. Os arranjos de violão e programações eletrônicas que Drexler utiliza em diversos momentos da carreira por si só remetem a processos híbridos. Mas a materialidade não garante a criação de novas expressões e deslocamentos (hibridismo generativo), mas aderência e reprodução de tendências (hibridismo aderente).

Já a voz será outro aspecto importante para nosso método de procedimento na abordagem da materialidade. No capítulo anterior, empreendemos uma definição de canção, destacando o elemento vocal como um dos mais importantes. A dicção e o timbre são fundamentais na corporalidade desta voz, descrevendo um senso de personalidade, que caracteriza gêneros e individualidades. A voz não é apenas um instrumento, mas configura um

caráter. A partir desta percepção, Frith (1998, p. 186) divide os tipos de canto em voz cantada,

que se faz por gestos, e voz falada, que se baseia na dicção. Tal divisão é similar à proposta por Luiz Tatit (2002), entre as gestualidades da entoação na canção. Conforme já vimos, o brasileiro identifica as categorias de passionalização (relativa à cantada) e tematização (relativa à falada).

Simon Frith (1998, p. 187) desenvolve mais a teoria sobre a voz e propõe quatro abordagens: voz como instrumento musical, como corpo, como pessoa e como caráter. Na voz como instrumento musical, o som é mais importante que as palavras, que às vezes nem mesmo tem sentido, a exemplo do uso de vocalizes. Já enquanto corpo, entende-se que a voz é produzida fisicamente, pelo movimento dos músculos e da respiração, no peito, na laringe e na boca. Neste sentido, conforme vimos com Barthes (1977, 2004), cada cantor produzirá uma voz específica, com o seu próprio grão, seu timbre característico, o que está mais relacionado à sua materialidade. Tomando as configurações performáticas desta voz, diversas identidades poderão ser assumidas com ela para ser compreendida como pessoa. Por último, a voz evidencia um caráter, uma personalidade de um cantor em particular, o qual conhecemos e sobre o qual evocamos significados prévios ao escutar cada nova performance.

Notaremos que a materialidade da voz estará constantemente articulada à instância da

escuta, conforme veremos a seguir. Principalmente quando lançarmos mão da noção de

produção de presença. De acordo com Hans Ulrich Gumbrecht (2015, p. 9), “as coisas-do- mundo, seja qual for o modo do nosso encontro com elas, possuem uma dimensão de presença”. Quer dizer que as coisas estão a uma distância de ou em proximidade aos nossos

corpos, e mesmo que não nos “toquem” diretamente, elas têm uma substância. Na visão do teórico alemão, esta dimensão mereceria prioridade em relação à prática da interpretação, pois é mais elementar. Tão elementar quanto a matriz da canção, centrada na voz.