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3.1 CIRCUITO DA COMUNICAÇÃO PARA O ESTUDO DA CANÇÃO

3.1.4 Regulação – gênero musical, local e global

Movam, desalinhem, desencaixem Mostrem do todo a parte Alegria e desastre Juntos num estandarte (Vitor Ramil, Palavra desordem, 2017)

A instância da regulação é equivalente às questões das dimensões política e econômica dentro do circuito da comunicação. Já assinalamos nossa preferência neste âmbito de análise por processos normativos que participam das configurações culturais, e não pelo papel das instituições e estruturas. Em nossa metodologia de procedimento, optamos pela ênfase nos enquadramentos dos gêneros musicais, que abarcam juízos de valor e relacionam os processos criativos a esferas de poder. Ainda como articulação analítica, acionamos as categorias de local e global, em constante tensão e reconfiguração de hegemonias.

Neste momento da pesquisa, lançaremos mão de declarações dos cancionistas à imprensa repercutindo o lançamento dos álbuns mais recentes, como instrumento auxiliar de pesquisa, o qual chamamos de clipping e que será explicado na última seção do capítulo. Isto porque os juízos que os próprios compositores fazem de seu trabalho são importante componente da configuração de uma canção latino-americana contemporânea.

Quanto aos gêneros musicais, pode-se dizer que eles configuram-se ao longo do tempo por regras econômicas, semióticas, técnicas e formais. Para Jeder Janotti Jr. “a rotulação é um importante modo de definir as estratégias de endereçamento de certas canções” (2008, p. 210). Em outro artigo, Janotti Jr. e Simone Pereira de Sá (2014, p. 4) sinalizam para o estudo da música popular massiva dentro de um “ambiente comunicacional”, no qual se considera a importância da experiência estética e dos processos de midiatização.

Para a identificação e classificação dos gêneros musicais, apostamos na articulação com o estudo das sonoridades, que integra o âmbito da produção. Pois acredita-se que são nestes pontos em que ocorrem os hibridismos como ação criativa, em relação aos elementos normativos e regulatórios.

As sonoridades, assim como os próprios gêneros, estão o tempo todo sendo desafiadas pela criatividade dos músicos, produtores, compositores, arranjadores e de todos aqueles envolvidos com o fazer musical, que continuamente colocam em xeque as fronteiras e desafiam a definição de músicas neste ou naquele gênero musical (TROTTA, 2008, p. 11).

disputas, levando em conta a “autenticidade” ou a “cooptação” (JANOTTI JR, 2008, p. 220). Junto a essas avaliações, poderemos articular também as categorias do hibridismo ambivalente, generativo e aderente, que serão explicadas na próxima seção.

Ruben López-Cano (2018) escreve sobre os exercícios de reciclagem de materiais na composição musical, que podem receber diferentes nomes para enfatizar múltiplos aspectos: empréstimo, apropriação, plágio, intertextualidade. Apesar de ser uma prática comum, o público parece compartilhar outro tipo de imaginário sobre a criação: “Os discursos de autenticidade e legitimidade artísticas destacam valores como originalidade ou inovação e afirmam que as obras devem ser únicas e irrepetíveis e constituir a expressão pessoal da subjetividade de seu criador” (LÓPEZ-CANO, 2018, p. 24-25)86. Pois o público costuma

conceber os artistas como gênios solitários que possuem habilidades superiores às pessoas comuns. E os gênios não roubariam ideias de ninguém, eles criariam as próprias. Assim, criação e apropriação parecem atividades antagônicas. Por mais que processos de empréstimo estejam presentes em todas as músicas, costumamos aplicar o argumento da originalidade para juízos de valor sobre o que gostamos ou não gostamos87.

Simon Frith (1996, p. 114) ajuda a compreender estas valorações estéticas, que colocam de um lado os artistas “de verdade” e de outro os popstars, remetendo a debates do século XVIII nos quais havia uma visão romântica da arte baseada em argumentos sobre o que seria “alta cultura”. Esta divisão, segundo o autor, persiste na atualidade em certos modos de percepção que separam emoção e sentimento, sensação e sensualidade, corpo e mente. No entanto, a divisão pode ser verificada mais nos discursos da crítica do que na experiência do público: “Até mesmo fazer e ouvir música de alta cultura remete a uma atividade física e também a uma atividade 'espiritual', uma experiência tanto sensual como cognitiva; apreciar música de todos os tipos é senti-la” (FRITH, 1996, p. 115)88.

86 “Los discursos de autenticidad y legitimidad artísticas resaltan valores como la originalidad o innovación y afirman que las obras deben ser únicas e irrepetibles y constituir la expresión personal de la subjetividad de su creador” (LÓPEZ-CANO, 2018, p. 24-25).

87 No entanto, por mais que estes relatos continuem em plena vigência, López-Cano (2018, p. 25) percebe uma crescente conscientização destes processos por parte do público, devido ao que ele chama de “escuta digital”, emergida com os dispositivos de gravação e reprodução do som. As tecnologias que alteraram a forma como nos relacionamos com a música, desde os toca-discos, até os arquivos digitais, teria outorgado mais autonomia na presença da música na vida cotidiana, pois: “Sites e redes sociais como o YouTube tornaram-se repositórios comunitários que arquivam e dão acesso imediato a uma quantidade imensurável de música diversificada, proveniente de tempos e espaços distantes e dispersos” (LÓPEZ-CANO, 2018, p. 25). “Sitios web y redes sociales como Youtube se han convertido em repositorios comunitarios que guardan y dan acceso inmediato a una inconmensurable cantidad de músicas diversas provenientes de tiempos y espacios distantes y dispersos” (LÓPEZ-CANO, 2018, p. 25).

88 “Even high music making and listening remained a physical as well as a 'spiritual' activity, a sensual as well as a cognitive experience; to enjoy music of all sorts is to feel it” (FRITH, 1996, p. 115).

As categorias de local e global são outro aspecto que concerne à análise no campo das regulações, como método de procedimento. São vetores intrincados nos processos culturais contemporâneos, os quais articulam na produção de canção na América Latina o flutuar entre a ordem que possibilita o funcionamento da sociedade e os atores que a abrem ao possível (CANCLINI, 2003, p. 57-58). Entre a ordem e o possível reside também a ambivalência dos

hibridismos. Afinal, no contexto globalizante, não se está avançando simplesmente para uma

padronização integral dos bens e mensagens culturais. “Antes se assiste a uma tensão persistente entre as tendências homogeneizadoras e comerciais da globalização, por um lado, e, ao mesmo tempo, à valoração do campo artístico como instância em que se conservam ou renovam as diferenças simbólicas” (CANCLINI, 2003, p. 139, grifo nosso). Juan Pablo González questiona a autonomia da música latino-americana: “é uma música que afinal se desenvolveu sob sistemas econômicos, administrativos e políticos modelados na Europa e nos Estados Unidos, e também estéticos e artísticos, a propósito” (2013, p. 91)89. Pois a gravação e

circulação de fonogramas teria sido um eficaz instrumento para fixar a norma, substituindo experiências ao vivo, mais espontâneas e ligadas a comunidades, por performances fixadas de repertórios externos.

Pensando esta relação político-cultural da América Latina com a Europa, que é uma das formas como o local e o global se apresentam, Alejandro Grimson (2011, p. 44) chama atenção para as hegemonias em cada caso específico, como componente decisivo para as

configurações culturais. Essa ideia é uma importante chave para esta compreensão de

diferenças e similitudes em escalas local, nacional ou transterritorial, bem como dos processos de constituição da hegemonia.

Uma hegemonia não é a anulação do conflito, mas sim o estabelecimento de uma linguagem e um campo de possibilidades de conflito. Não implica que os subordinados não possam se organizar e reivindicar, mas que o façam nos termos estabelecidos pela hegemonia (GRIMSON, 2011, p. 45)90.

Por isto, é pertinente distinguir os processos de tensão que se dão dentro dos limites hegemônicos e os que se dão nas fronteiras destes limites, buscando transformá-los. Este exercício de distinção condiz com nossa proposta analítica da ambivalência dos processos 89 “No es tan obvia la autonomía de la música latinoamericana, pues se trata de una música que finalmente se ha desenvuelto bajo sistemas económicos, administrativos y políticos modelados em Europa y Estados Unidos, y también estéticos y artísticos, por cierto” (GONZÁLEZ, 2013, p. 91).

90“Una hegemonía no es la anulación del conflicto sino, más bien, el establecimiento de un lenguaje y un campo de posibilidades para el conflicto. No implica que los subalternos no puedan organizarse y reclamar, sino que lo hagan em los términos que establece la hegemonía” (GRIMSON, 2011, p. 45).

híbridos, pois os generativos seriam os que buscam transformações nestas fronteiras hegemônicas, enquanto os aderentes restringem-se aos termos estabelecidos. No entanto, é necessário evitar uma interpretação simplificada que recaia na ideia de agência de um sujeito histórico. Nesta, o presente se estreita como momento de transição entre o passado e o futuro (GUMBRECHT, 2015, p. 15). Para Massimo Canevacci (2013, p. 42), a síntese dialética ordenaria o sincretismo, pois a superação da dominação em uma nova formulação libertadora encaixa-se perfeitamente em uma noção de hibridismo idealizado, que em um processo de inversão acaba sendo legitimado como objeto tranquilo, pacato, razoável. Desta forma, no contexto atual, o antropólogo acredita que: “O híbrido não é mais um resíduo marcado pela síntese, mas o anúncio de sincretismos polimorfos” (2013, p. 73). Esta observação leva à ideia de amplo presente de Gumbrecht: “Entre os passados que nos engolem e o futuro ameaçador, o presente transformou-se numa dimensão de simultaneidades que se expandem” (2015, p. 16). Neste sentido, a contemporaneidade “é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias” (AGAMBEN, 2009, p. 59).

Tal ideia de contemporâneo, como premissa da canção que estamos estudando poderá ser aferida na regulação, considerando as imbricações de gêneros musicais e as articulações entre local e global.