• Nenhum resultado encontrado

Somos una especie en viaje No tenemos pertenencias, sino equipaje Vamos con el polen en el viento Estamos vivos porque estamos en movimiento (Jorge Drexler, Movimiento, 2017)

Nesta seção, dando sequência ao debate da modernidade, adentramos as linhas teóricas da cultura por meio das noções de diversidade e identidade. O objetivo é chegar ao exame do conceito de configuração cultural, o qual norteia nossa abordagem.

Conforme Alejandro Grimson (2011, p. 160-162), entre uma visão que considera a nação como um fato pré-determinado (essencialista) e outra que considera uma invenção ideológica sem materialidade nem efetividade (construtivista), emergiu uma terceira perspectiva teórica que reconhece a sedimentação de parâmetros culturais que não são meramente imaginados.

Essa terceira perspectiva coincide com os construtivistas que afirmam que a identificação nacional é o resultado de um processo histórico e político, contingente como tal. Mas difere deles porque enfatiza a sedimentação desses processos na configuração de dispositivos culturais e políticos relevantes (GRIMSON, 2011, p. 163-164)124.

Trata-se de uma perspectiva experiencialista voltada à investigação de sedimentações culturais e políticas na história vivida, as quais conformam traços compartilhados, mas não homogêneos. “É uma diversidade contextualmente articulada, uma configuração concreta da heterogeneidade” (GRIMSON, 2011, p. 163)125. Isso não elimina as diversas formas de

apropriação por diferentes agentes sociais, provocando a corrosão dos sedimentos culturais nacionais construídos historicamente. Tais processos e articulações são chamados de

configurações culturais.

Assim, quando cancionistas, como Drexler e Ramil, hibridizam gêneros tradicionais e da música pop mundial, entendemos que há novos processos de configuração cultural ocorrendo, sobre sedimentações. Essa noção de sedimentação substitui e se difere da de tradição, pois não se restringe à ideia de tempo. Se considerarmos a tradição como era vista pelos folcloristas do século XIX, como sobrevivência, prevaleciam os traços culturais que 124 “Esta tercera perspectiva coincide com los constructivistas que afirman que la identificación nacional es el resultado de un proceso histórico y político, contingente como tal. Pero se diferencia de ellos porque enfatiza la sedimentación de esos procesos en la configuración de dispositivos culturales y políticos relevantes”

(GRIMSON, 2011, p. 163-164).

125 “Es una diversidad contextualmente articulada, una configuración concreta de la heterogeneidad” (GRIMSON, 2011, p. 163).

teriam sido menos alterados pela educação e participado menos do progresso. Enquanto isso, entendia-se que, “o moderno é posterior e superior ao momento que o antecede” (ORTIZ, 2015, p. 73). Assim, um implicava na anulação do outro. Na arte, a discussão das vanguardas126 repousa neste fundamento. Por outro lado, o início de uma “era de massas”

seria a prova inconteste da modernização em curso, que promoveria uma homogeneidade de costumes. Neste ínterim, consolidaram-se as noções de progressista e conservador. Tradição associava-se a tradicionalismo, significando uma ideologia política que evita ruptura e preserva os valores morais e religiosos. Servia nos países periféricos de obstáculo à construção da modernidade. Já na ideia de sedimentação, os elementos construídos historicamente serão disputados no presente por diferentes agentes dispostos a criarem novas

configurações culturais, que com o tempo poderão vir a sedimentar-se.

Este debate teórico leva a relacionarmos estes termos com a experiência do modernismo brasileiro. Na avaliação de Herom Vargas (2007a), significou a busca de características eminentemente nacionais para a arte em contraposição ao academicismo de perfil europeu. Para ele, Mário de Andrade “não se propunha excluir totalmente a influência europeia, mas, ao contrário, partir de sua técnica para criar uma produção musical de qualidade nacional” (VARGAS, 2007a, p. 41). Mas observa que esta produção no fundo tinha a tendência de dignificar a pureza (a cultura autóctone), para fortalecer o nacionalismo. Isso teria influenciado movimentos tradicionalistas como o Armorial, de Pernambuco, que para Vargas foi uma tentativa ideológica de volta a um passado pré-capitalista, que envolve diretamente uma visão idealizada e idílica do popular e do folclore (VARGAS, 2007a, p. 50).

No caso do Rio Grande do Sul, estado onde Vitor Ramil nasceu e reside, os tradicionalistas são um dos principais atores nas disputas em torno do “ser gaúcho”. Conforme pesquisa de Ana Carolina Escosteguy e Cristiane Freitas Gutfreind (2006), esse eixo identitário é entendido a partir da dicotomia entre uma vertente essencialista de identidade e outra não-essencialista127. A primeira seria a vigente de forma hegemônica, pelo

menos na maior parte da mídia, com exceções. Esta identidade essencialista “funda-se na 126 O termo vanguarda passou a ser utilizado na arte no século XIX, para denominar ideias estéticas que se contrapunham à tradição e proclamavam novas formas de expressão. Desde então, impregnou-se de conotações políticas e controvérsias (BOAVENTURA, 1985, p. 9).

127 Para Stuart Hall, referência nos estudos sobre identidade, a cultura é uma produção. “A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar” (HALL, 2009, p. 43). Desta forma, com as diferenciações que proliferam na globalização (paralelamente às homogeneizações), as identidades não podem mais ser concebidas como estabelecidas e estáveis. Assim, a partir da diferença, constitui-se um fundamento para um novo tipo de “localismo” que surge de dentro do global. “Encontra-se aqui o 'retorno' do particular e do específico – do especificamente diferente – no centro da aspiração universalista panóptica da globalização ao fechamento” (HALL, 2009, p. 59).

existência de grupos sociais calcados em categorias inatas e imutáveis, busca um conjunto de características que uma comunidade partilhada e que não se altera no tempo” (ESCOSTEGUY; GUTFREIND, 2006, p. 4). Observando a produção midiática e cinematográfica regional, as pesquisadoras notaram ufanismo, bairrismo e mitificação da figura histórica do gaúcho. O antropólogo Ruben George Oliven (1995, p. 77) ajuda a compreender este contexto que teve seu auge na década de 1980. Houve um crescente interesse pelas “coisas gaúchas”, o que alavancou o consumo de produtos culturais voltados a temáticas regionais, tais como programas de televisão e rádio, jornais especializados, editoras, discos, restaurantes típicos e lojas de roupas. Naquela década, foram criados aproximadamente mil centros de tradições e mais de quarenta festivais de música nativista.

Ruben George Oliven analisa a construção de uma tradição gaúcha: “Os primeiros e mais antigos atores do gauchismo são os tradicionalistas. Eles se constituem em um movimento organizado e atento a tudo que diz respeito aos bens simbólicos do estado sobre os quais procuram exercer seu controle e orientação” (OLIVEN, 2006, p. 166). Assim, apesar da diversidade cultural do Rio Grande do Sul, que historicamente teve a predominância de indígenas, negros e imigrantes europeus, esta tradição tende a representar a região através de um único tipo social (o gaúcho, o cavaleiro e peão de estância da região sudoeste do Estado), e a referência constante a um passado glorioso128.

Por outro lado, há produções artísticas, a exemplo de Vitor Ramil, que se diferenciam desta vertente representativa “hegemônica”, pois condizem com uma ideia de produção na qual a identidade não é fixa nem estável. “Também tem história, embora esta não seja a recuperação de um passado cristalizado, implicando, ao contrário, em continuidades e rupturas” (ESCOSTEGUY; GUTFREIND, 2006, p. 6). Em nossa perspectiva experiencialista, Ramil disputaria as sedimentações regionais e nacionais, configurando outras expressões culturais a partir de sua própria experiência.

Assim, vamos observar que Ramil expressa um olhar diverso sobre a região. Em primeiro lugar, por não limitar sua produção ao espaço estadual, como representação dele, mas dialogando com as culturas dos países vizinhos, do Brasil como um todo e do mundo. O

128 De acordo com Juremir Machado da Silva (2010, p. 14), a Revolução Farroupilha é “o acontecimento mais reconstruído e mitificado da História brasileira, a ponto de História e Mito acharem-se atualmente quase

inteiramente confundidos, com ampla vantagem para a idealização”. Nesta guerra civil, entre 1835 e 1845, parte da sociedade sul-rio-grandense insurgiu contra o poder central do Império brasileiro, proclamou uma República e lutou por dez anos, para pagar menos impostos, até a derrota.

cancionista comenta esta questão em uma cena do documentário A Linha Fria do Horizonte (Luciano Coelho, 2014), lembrando dos anos em que viveu no Rio de Janeiro:

Finalzinho dos anos 80, início dos 90, foi um período em que houve um grande recrudescimento, da coisa do regionalismo, do gauchismo, do nativismo, isso era muito forte. Eu via muito em Copacabana os caras de gaúcho, caminhando às vezes no calçadão, passava um sujeito solitário de bota, bombacha, lenço vermelho, tomando mate, quarenta graus lá fora no sol. E me incomodava que toda música do sul que o Brasil reconhecia como nossa ela tinha sempre que ser folclórica, gauchesca. A nossa música urbana nunca era reconhecida como nossa. […] Então a ideia de buscar uma estética do frio começa um pouco por essa necessidade de reagir ao estereótipo do Rio Grande do Sul, ao estereótipo do gauchismo. Também reagir ao estereótipo de brasilidade.

Em outra cena do filme, o artista conta que foi muito criticado quando lançou o álbum

Ramilonga (1997), porque era visto como roqueiro, urbano, e por isso não teria direito de

cantar milonga. Defendendo-se, pergunta por que então a milonga o comove. Ou seja, enfatiza sua experiência e não a normatividade.

Pesquisando a influência do espaço platino na música de artistas como Vitor Ramil, o geógrafo Lucas Panitz faz um recorte de gênero musical. Assim, adjetivou a milonga de “contemporânea” para diferenciá-la da milonga tradicional, ou folclórica. No presente caso, trata-se de um gênero processado dentro da música pop e popular mais ampla. Ela se mostra mais uma raiz, um fundo, do que propriamente um ritmo plenamente codificável (PANITZ, 2010, p. 119). Nesta concepção, a milonga segue o histórico das fronteiras móveis na região, entre domínio castelhano e lusitano, entre os séculos XV e XIX. A milonga representaria a reunião dos “irmãos” de diferentes países, transitando pelos meios técnico-científico- informacionais, encurtando distâncias. “A milonga é territorializada nas cidades, nas praias, nos rios, nos meios de transporte e de comunicação, está solta no espaço platino” (PANITZ, 2010, p. 124). Nós diríamos que a milonga é um sedimento, apropriado e configurado na contemporaneidade de maneira diversa. E não daríamos tanta ênfase na territorialidade, pois Jorge Drexler, por exemplo, não vive mais no Prata há décadas e segue reconfigurando a milonga, conforme veremos no próximo capítulo.

A partir disso, poderíamos pensar na milonga como pretensa expressão unificadora da música platina. Este entendimento abarcaria as produções de Jorge Drexler e Vitor Ramil, pois ambos investem na atualização desta tradição. Mas correríamos o risco de reduzir a análise cultural a uma identificação essencialista, baseada na formação do território platino, de disputas fronteiriças entre Espanha e Portugal na região onde depois foram constituir-se o Uruguai, o nordeste da Argentina e a parte sul do Brasil. Este histórico é, sem

dúvida, importante e influencia a produção dos músicos. Trata-se de sedimento cultural. No entanto, para compreender a contemporaneidade das canções, esta fonte de inspiração identitária é insuficiente. Pesa ainda o fato de que Drexler e Ramil não compõem apenas milongas, mas transitam entre ritmos e tradições diversas da América Latina.

Assim, ao invés de celebrar o gênero milonga como essência de um Estado-nação, os cancionistas que estudamos revalorizam-no em uma perspectiva de deslocamento, na qual a referência local é hibridizada com outras latinas e principalmente brasileiras, principalmente na forma de cantar da MPB, e da música popular massiva. Suas produções condizem com a máxima de que a identidade é um lugar que se assume, não uma essência ou substância a ser examinada (HALL, 2009, p. 26). Se entendermos que “toda identidade é uma representação e não um dado concreto que pode ser elucidado ou descoberto” (ORTIZ, 2015, p. 152), então a região e a paisagem do Prata não poderão ser um elemento determinante das identificações musicais, mas uma representação em disputa.

O antropólogo argentino Alejandro Grimson (2011, p. 15) afirma que as respostas e soluções relacionadas à identidade encontram-se na existência ou não de autonomia dos atores nas dinâmicas tensionadas que constituem o processo histórico, entre continuidades e transformações. E adverte:

Quando os dilemas surgem em termos de tradição versus modernidade, modernidade versus pós-modernidade, essência versus mestiçagem, ou qualquer uma das novas mercadorias intelectuais produzidas pela máquina de competição da inovação de ideias simplistas, a possibilidade dessa autonomia limita-se (GRIMSON, 2011, p. 15)129.

Assim, ideias potentes para explicar o contexto cultural em que vivemos, a exemplo das noções de “invenção da tradição”130 e de “construção da identidade”, são banalizadas e se

tornam insuficientes para dar conta de modos de percepção, significação e ação. Ainda que seja libertador constatar que identidades e tradições são algo construído e não fazem parte da natureza, também é preciso ter a visão ampla de que tudo na sociedade é construído. E se 129 “Cuando las disyuntivas se plantean em términos de tradición versus modernidad, modernidad versus posmodernidad, esencia versus mestizaje, o cualquiera de las nuevas mercancías intelectuales producidas por la máquina de competencia de la innovación de ideas simplistas, la posibilidad de essa autonomía se clausura” (GRIMSON, 2011, p. 15).

130 A principal fonte da teoria das tradições inventadas é o historiador Eric Hobsbawm (2012, p. 8), que as explica como reação “a mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social”. Em nome do nacionalismo, produz-se a necessária “invenção de uma continuidade histórica” ou a personificação da nação por meio de símbolos ou imagens oficiais. Mas estas práticas de invenção de tradições, calcadas na regulação e na repetição programada, difere dos costumes, relacionados a práticas do dia a dia e em constante mudança e inovação.

tradição, origem e pátria estão aí no mundo, são coisas importantes que nos interpelam, não podem ser somente desconstruídas ao ponto de serem excluídas das análises culturais, conforme comenta Grimson sobre alguns casos.

Como alternativa teórica, conforme já postulamos, Grimson propõe a noção de

configuração cultural, que “busca enfatizar tanto a heterogeneidade quanto o fato de que essa

se encontra, em cada contexto, articulada de maneira específica” (2011, p. 28)131. Esta

heterogeneidade, conforme o tipo de articulação que ocorre, pode ser compreendida como diversidade.

Partindo da premissa do idioma, enquanto universo irredutível aos outros e que contém visões de mundo dos diferentes povos, a diversidade significaria riqueza. “O monolinguismo deixa de ser uma virtude para se tornar um pesadelo, e o mito de Babel é reinterpretado de modo positivo” (ORTIZ, 2015, p. 28). Assim, ocorre a necessidade de se pensar novas categorias para compreender este novo contexto. Pluralismo e diversidade, de acordo com Ortiz, seriam categorias apropriadas. Para isto, faz-se necessária a distinção entre os termos. “O pluralismo […] pressupõe que toda diferença pode e deve ser harmonizada dentro de um continuum” (ORTIZ, 2015, p. 32). Assim, o pluralismo é “hierarquizado”, organiza as diferenças segundo relações de força. A partir disso, entenderemos que o pluralismo está para o hibridismo aderente, assim como a diversidade está para o hibridismo

generativo, conforme colocaremos a seguir.

Outros autores preferem a noção de diferença para pensar estes processos132. Homi K.

Bhabha (1998, p. 19) define a atualidade como “momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão”. Com isto, estabelece premissas que sustentam nossa abordagem de investigação:

Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou afiliação, são produzidos performativamente. A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica (BHABHA, 1998, p. 21).

131“busca enfatizar tanto la heterogeneidad como el hecho de que ésta se encuentra, en cada contexto, articulada de un modo específico” (GRIMSON, 2011, p. 28).

132 Para Bhabha (1998, p. 63), a noção de diversidade cultural serve ao “reconhecimento de conteúdos e costumes pré-dados”, assim como a de multiculturalismo. Prefere assim a ideia de diferença cultural, que engloba processos, problemas e construções de sistemas de identificação.

A articulação de códigos culturais na performance, por meio de hibridismos, acaba sendo o tipo de abordagem adotado em nossa perspectiva metodológica. Para Bhabha, é na “passagem intersticial entre identificações fixas” que se abre a possibilidade do hibridismo cultural que por sua vez “acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta” (1998, p. 22).

Stuart Hall corrobora com este entendimento quando analisa as configurações sincretizadas de identidade cultural caribenha, e conclui que se trata de “uma diferença que não funciona através de binarismos, fronteiras veladas que não separam finalmente, mas também places de passage, e significados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim” (HALL, 2009, p. 33).

Já no contexto latino-americano, onde se buscou fundar uma modernidade diferente da europeia, foram acionados particularismos nacionais que estabeleceram pontos de contato com a ilustração e as estratégias universalistas. Conjugando cosmopolitismo e nacionalismo, as vanguardas locais permitiram-se em alguns textos “escrever a nação sem abandonar, por um desejo totalizante e homogeneizador que elas não compartilham, sua preocupação pela heterogeneidade e pela diferença” (GARRAMUÑO, 2007, p. 133)133. Com isso, a

modernidade possuiria um legado ambivalente na América Latina, onde ser nacional era ser moderno, e ser moderno, por sua vez, era ser nacional.

Tal aspecto da diferença seguiria influenciando nas produções contemporâneas, nas quais aderir à globalização e à cultura de massas não se contrapõe com a valorização das referências locais. Isto se compreendermos as dinâmicas culturais a partir das categorias postas por Alejandro Grimson (2011): sedimentação e configuração. Por um lado, há processos sedimentados ao longo da história e que perduram (marcam relações de desigualdade, inclusive, mas não as determinam por completo). Por outro, estas sedimentações podem ser modificadas pelas próprias intervenções dos indivíduos: “Uma

configuração cultural específica pode ser detectada, dentro da qual existem agentes que lutam

para reproduzi-la e modificá-la em diferentes direções” (GRIMSON, 2011, p. 33)134.

Parte decisiva destas configurações culturais será a constituição e institucionalização do poder social. Grimson observa que para compreendermos seus funcionamentos, é preciso 133“escribir la nación sin abandonar, por un deseo totalizador y homogeneizante que no compartían, su

preocupación por la heterogeneidad y la diferencia” (GARRAMUÑO, 2007, p. 133).

134“puede detectarse una configuración cultural específica, en cuyo marco hay agentes que pugnam por reproducirla y modificarla en distintas direcciones” (GRIMSON, 2011, p. 33).

compreender também as conformações de hegemonias em contextos específicos. Com isso, acredita ser possível evitar as retóricas essencialistas em torno das identidades, as quais desconsideram a capacidade de transformação e criação de novas hegemonias, a partir do subalterno. A própria noção de configuração cultural abre a possibilidade de conflito e articulação entre partes, o que leva a processos de constituição de hegemonias. “Mas é preciso distinguir os processos de conflito que atuam dentro dos limites hegemônicos daqueles que trabalham nas fronteiras da hegemonia desses mesmos limites, buscando transformá-los” (GRIMSON, 2011, p. 46)135.

No caso histórico da nueva canción, não haveria ruptura com a música tradicional hegemônica, mas uma projeção, aproveitamento, adequação dos ritmos ao desenvolvimento tecnológico musical. Para o pesquisador Guillermo Barzuna, é um claro exemplo de mestiçagem e defesa da identidade nacional: “Canção que, em termos gerais, é apresentada como uma alternativa” (1993, p. 50)136. Isto quer dizer que a partir de uma cultura

sedimentada, conformou-se uma nova configuração cultural.

Já comentando a cultura brasileira contemporânea, Renato Ortiz escreve: “Os agentes dispõem de uma herança de símbolos que podem ser combinados em função de suas estratégias, a identidade é o resultado do arranjo das peças depositadas nas camadas geológicas da tradição nacional” (2015, p. 163). A partir disso, podemos entender que tal “herança de símbolos” representa a cultura sedimentada, enquanto o “rearranjo das peças” que gera os processos de identidade significa configuração cultural, nos termos de Grimson.

A citação de Ortiz acima demonstra que o tema das identidades distanciou-se de teorias substancialistas e outras estruturalistas que concediam pouco lugar à ideia de agência em relação aos atores sociais. Nas práticas musicais, de acordo com Pablo Vila (2012, p. 250), os processos de construção identitária são basicamente discursivos. Isto considerando todas as práticas em que se intercambiam símbolos, ligadas às performances e suas bases corporais, com implicações de relações de poder, envolvendo som, letras, interpretação e também o que se diz sobre elas. Neste viés, não necessariamente as práticas são homólogas a certa base precedente, ou estrutura. Ocorrem constantes lutas discursivas. Para melhor compreender

135“Pero es necesario distinguir los procesos de conflito que trabajan dentro de los límites hegemónicos de los