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O povoamento humano do Brasil Central é muito mais velho do que se possa imaginar. Em geral, os estudos a respeito até o presente se restringem ao período da colonização portuguesa, efetivada no início do século XVIII. É

preciso, portanto, analisá-lo e interpretá-lo de modo diferente. Já se tem consciência da existência de povos bem mais antigos ocupando esses sertões do ecossistema dos cerrados. A arqueologia histórica, sobretudo, o vem revelando. Por isso, “a priori”, é indispensável dividi-lo em duas etapas principais e cruciais de sua história: a indígena ou das tribos indígenas, segundo os estudos de arqueologia histórica, com 11 mil anos de posse(1); e a de dominação e colonização européia, iniciada pelos portugueses na segunda e terceira décadas do século XVIII (1719 e 1722).

Conforme o período em que viveram e os sítios arqueológicos em que foram estudados, particularmente no Município de Serranópolis, no Sudoeste de Goiás, região “core” dos cerrados, esses povos primeiros se distinguem pelo menos por quatro contingentes ocupacionais: caçadores antigos, caçadores e coletores do ótimo climático, coletores com cerâmica e horticultores(2).

A prova de existência desses povos pode ser conhecida por documentos que em geral só os arqueólogos sabem ler: pedras primitivamente talhadas, restos de refeições milenares, pinturas em rochas e vestígios de rituais de sepultamento, de fogueiras há muito apagadas, de acampamentos quase imperceptíveis. Os abrigos que foram habitados, notadamente no município de Serranópolis, sudoeste de Goiás, estão decorados com pinturas e gravuras, revelando a base ambiental de um horizonte cultural velhíssimo, denominado pelos arqueólogos “tradição Itaparica”, onde as marcas e

manifestações culturais desses povos primeiros continuam como fontes indiscutíveis.

Pode se dizer, assim, que os vários sítios arqueológicos devidamente estudados em Serranópolis, são o ponto de referência e, portanto, de maior atração das populações pré-históricas vindas da Cordilheira dos Andes, principalmente da costa da Colômbia, Venezuela e Equador, há cerca de 11 mil anos. Por isso, mais especificamente, Serranópolis foi o local do interior da América do Sul no qual aquelas populações permaneceram mais demoradamente tendo como razão básica a vasta riqueza faunística e florística dos cerrados, oferecendo ainda - além disso -, as vantagens das facilidades climáticas e geomorfológicas.

Vale se dizer, pois, que a “fartura dos cerrados”, suas belas planícies e as inegáveis facilidades climáticas foram os grandes responsáveis pelas primeiras ocupações desses chapadões brasileiros formadores do que se pode chamar de “cumeeira” da América do Sul. Além disso, a fauna amazonense, cujo cerrado desaparecia dando lugar às florestas, passou a migrar para os chapadões centrais, tendo as populações acompanhado essa rota de deslocamento. Por isso, o interior do País foi o primeiro grande núcleo populacional da América do Sul, já sendo, então, o Sudoeste goiano a área mais típica e característica dos chapadões. Enfatizam, aliás, os especialistas:

“No Sudoeste de Goiás, num quadrilátero formado pelos paralelos de 17 e 19, latitude sul;

e 51 35, longitude oeste de GR., abrangendo afluentes da margem direito do rio Paranaíba, encontra-se uma região de abrigos rochosos, ocupados pelo homem desde 11.000 mil anos atrás”, acrescentando:

“A região está no centro do planalto brasileiro, variando as altitudes da cota de 300 m no baixo curso dos rios, à cota dos 1.000 m nos pontos mais elevados do alto curso e no divisor de águas com a bacia do rio Araguaia”, ainda enfatizando ser Serranópolis um caso especial desses primitivos habitantes:

“No Município de Serranópolis, estão concentrados, num espaço de 25 km, aproximadamente 40 abrigos, dos quais ao menos oito apresentam ocupações humanas antigas, cujas datas vão de 11.000 a 8.400 anos, e que denominamos fase Paranaíba, da tradição Itaparica. Nos mesmos abrigos, em camadas menos profundas, temos a fase Serranópolis, depois a fase Jataí e, na superfície, a Iporá”(3).

Uma série de razões, porém, torna extremamente difícil se poder afirmar se os indígenas encontrados pelos bandeirantes dos séculos XVII e XVIII nessa região seriam descendentes daqueles povos primeiros. Por isso, seria interessante se saber a origem mais remota dos Paiaguás, do alto rio Paraguai, exímios canoeiros; dos “pés-largos” e bravos Caiapós; dos numerosos e valentes Xavantes; dos também valentes Crixás; da numerosa tribo Borora, das margens do rio São Lourenço, já reduzida a menos de 1.000 indivíduos; da nação dos Goyazes, a mais branca de terras goianas, das

cercanias da Cidade de Goiás e vizinhanças da Serra Dourada; da nação Araés, do baixo rio das Mortes; dos extraordinários Avá-Canoeiros, do vale do Paranã e Tocantins, que se teriam aliado e misturado aos escravos negros em fuga; dos Capepuxis, dos Apinagés, etc., etc. Mas o assunto foge ao nosso objetivo principal, embora se revele um interessante desafio aos pesquisadores, especialmente antropólogos e arqueólogos.

Mas o que é real, é que somente em Goiás, à época do “descobrimento”, essas nações indígenas eram mais de duas dezenas, sempre tratadas de modo negativo nos velhos documentos, sobretudo dos séculos XVIII e XIX, consoante relatos de cronistas, registros deixados pelos documentos oficiais, obras científicas e literárias: “bárbaros”, “selvagens”, “infiéis”, “bestiais”, “ferozes”, “incultos”, “hereges” e “inferiores” foram algumas das denominações que receberam(4).

Com relação a Mato Grosso, a discriminação e o tratamento dados aos indígenas não foi diferente. Na história, foi sempre um elemento relegado a segundo plano, em detrimento das análises que privilegiam os segmentos branco e negro. Apesar de terem se tornado os verdadeiros guias das monções, com sua grandiosa experiência cultural, facilitando a chegada e ocupação de Mato Grosso pelos bandeirantes, desde o início foram ali comprimidos por três frentes que ainda os vem dizimando:

- de Oeste para Leste: os espanhóis

que, tradicionalmente utilizavam os índios nos trabalhos agrícolas e minerais;

- de Leste para Oeste: os portugueses, através dos bandeirantes, ávidos na busca de índios e descoberta de minérios;

- de Sul para Norte: os jesuítas que, obstinadamente, perseguiam os índios para aldeá-los, através de Missões ou Reduções, locais onde os índios sofriam um forte processo de desaculturação, pois era-lhes ensinada a religião católica, os usos e costumes ocidentais e a língua portuguesa. Aos índios cabia todo processo de produção que, em parte, era consumida nestes aldeamentos e o excedente, comercializado pelos inacianos. A bem dizer, os jesuítas constituíam o terceiro império dentro das Américas(5).

NOTAS

l - Schmitz, Pedro Ignácio; Barbosa, Altair Sales. Jacobus, André Luiz; Barberi Ribeiro, Maira.

Arqueologia nos Cerrados do Brasil Central: Serranópolis I, Instituto Anchietano de Pesquisas, São Leopoldo, RS, 1989, p. 18 e segs. Este trabalho teve a colaboração essencial de Binômino da Costa Lima, “Meco”, também membro do Instituto de Antropologia e Arqueologia da UCG.

2 - Schmitz, Pedro Ignácio e autores citados. Op. cit., p. 18 e segs. Cf. ainda: Folhetim Pré- história de Serranópolis, ed. de 1984, de Altair Sales.

3 - Schmitz, Pedro Ignácio e et ali, Op, cit., p. 19. Ainda: Silva, Martiniano J. da. Parque das Emas: última pátria do cerrado(bioma ameaçado), Goiânia, Ed. Três Poderes, 1991, p. 40, cap. “O Parque e os povos antigos: Mar dos Xaraiés”.

4 - Silva e Souza, Luiz Antônio da. Memória sobre o descobrimento, governo, população e coisas mais notáveis da Capitania de Goiás. Goiânia: Ed. Oriente, 1978, p. 126-127.

5 - Siqueira, Elizabeth Madureira; Lourenço Alves da Costa e Cathia Maria Coelho Carvalho, Cathia. O Processo Histórico de Mato Grosso, Cuiabá, 2a. edição, Ed. UFMT, 1990.