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PENETRAÇÃO DE RECONHECIMENTO: COBIÇA PELO OURO

O escravismo colonial, antes de se efetivar no Brasil Central no início do século XVIII, enviou seus representantes de São Paulo e de outras partes da Colônia à região visando estudá-la e conhecê-la previamente através do que denominamos “penetração de reconhecimento: cobiça pelo ouro”, acontecida especialmente no século XVII, já com três objetivos principais: prender e escravizar ameríndios; encontrar minas de ouro e outros minerais; e possear e garantir o território português da penetração espanhola.

Trata-se de um movimento contínuo e estruturado em longa duração, remontando ao século XVI quando já havia reduções de bugres controlados pelos padres jesuítas e o estabelecimento de alguns povoados castelhanos notadamente no sul de Mato Grosso(1).

Note-se, mesmo, que são muitas as expedições, missões religiosas e sobretudo bandeiras em todo o decorrer do século XVII, conjuntamente conhecidas como as do “ciclo da vacaria”, em direção do sul mato-grossense que, aliás, teve sua penetração facilitada pelas bacias fluviais do Rio da Prata, notadamente os rios Tietê, Paraná e Paraguai; do mesmo modo que as de penetração e reconhecimento de território goiano, possivelmente menos acentuadas, mas passando de vinte entre expedições e bandeiras, em grande parte organizadas por jesuítas, iniciadas, até que se prove o contrário, pela expedição de Sebastião Marinho em 1592(2), que teria chegado até a uma zona situada a noroeste do sítio da futura Vila Boa de Goiás, capturando índios.

Realmente, as andanças preliminares e a posterior ocupação dessa enorme área do Brasil decorre de um movimento de expansão geográfica que só tem sido analisada e estudada sob a concepção da história oficial litorânea, particularmente do sudeste que, na realidade, não tem discutido velhos estigmas, como o “da decadência” e o “do atraso”, a quase duzentos anos passados para esse maciço central(3); não vincula a formação histórica do Brasil Central, no período estudado, à de outras partes do Brasil, como a do Norte, que teve sede no Grão-Pará(4); à do Nordeste que, segundo discorremos em “Fugas, Quilombos e Comunidades Negras no Tocantins” e “Remanescentes de Quilombos de Calunga”, está profundamente vinculada a essa região através do Vale do São Francisco, particularmente da Bahia; afinal, não narra ou revela as ações violentas cometidas através do tempo, começadas no trabalho forçado e no comércio de gente: escravos ameríndios do Centro-sul-americano e escravos negros oriundos da África.

É certo, pois, que já no fim do século XVI e início do XVII, os então ilimitados territórios de Mato Grosso e Goiás começaram a ser percorridas por sertanistas com suas várias organizações, fundadas em diversos interesses; já anunciando, porém, que a conquista da região aconteceria através de um movimento conjugado e entrelaçado que, embora por etapas mais ou menos distintas, segundo Nelson Werneck Sodré(5), se reduzem a duas:

- ciclo das monções.

Efetivamente, até a contemporânea expansão capitalista da indústria e da agricultura mecanizada, trazendo Brasília e o consequente “ciclo da soja”(6), o capitalismo vem ocupando e dominando a região não só através dos fundamentos teóricos forjadores da teoria dos ciclos econômicos de fase colonial, mas, sobretudo, do que neles restou de mais profundo e permanente, intrinsecamente fazendo parte das próprias instituições brasileiras(7), cujo intuito tem sido atender aos interesses do mercado externo, com sua clássica e necessária dependência do trabalho escravo, estranhamente ainda persistindo através de anacronismos e tradições que retardam o pleno desenvolvimento regional, sempre mantendo o negro como classe social de segunda categoria(8).

Vale se dizer que o escravismo colonialista, na sua penetração prévia e expansão no Brasil Central, manteve como meta a mesma de outras regiões: até a Independência de 1822, dominar e produzir para o comércio exterior tendo por base as regras da teoria dos ciclos econômicos; a partir de então, fundamentado na própria estrutura exportadora da economia colonial de que fala Caio Prado júnior(9), já não tomando, portanto, os ciclos dos produtos de exportação como épocas ou sistemas econômicos admitidos pela teoria dos ciclos da fase colonial. Ou como toda a série histórica articulada em períodos pelos ciclos do pau-brasil, açúcar, ouro, algodão e café, referenciada por

Jacob Gorender(10), nos quais o colonialismo manteve a produção escravista de distribuição mercantil completamente escorada nas largas costas dos escravos feitorizados.

A dominação ficou mais fácil, uma vez que se tornou intrínseca e ideologicamente mais sutil, portanto mais íntima dos interesses colonialistas do passado, estrategicamente reciclados no início do século XIX, desde quando a sociedade tem sido condicionada a repeti-los e a viver sob a sua égide, sempre ligada e assimilada a períodos nos quais os produtos não têm objetivos de consumo interno, sendo, pois, para exportação: ouro, diamante, gado, soja, etc.

Essa tem sido a estratégia de explicação historiográfica, na penetração prévia, na expansão e na dominação colonialista do Brasil central onde o escravismo moderno fez “morada” por quase duzentos anos, recebendo como herança na Independência o mesmo pensamento, que se eterniza, destro e reciclado. Caio Prado júnior enfatiza:

“Nele se contém o passado que nos fez; alcança-se aí o instante em que os elementos constitutivos da nossa nacionalidade - instituições fundamentais e energias - organizados e acumulados desde o início da colonização, desabrocham e se completam. Entra-se então na fase propriamente do Brasil contemporâneo, erigido sobre aquela base”(11).

Desse modo, não importa o número de ciclos econômicos que justificaram a antecipada expansão

geográfica, a ocupação e a dominação do Brasil Central, começando pelo de ouro de lavagem, o da caça ao índio, o de contratar bandeirante para debelar rebelião indígena e destruir quilombos ou o grande ciclo do ouro(12). Nem motivos geográficos, fome, formação racial, intrepidez paulista, capturação de índio, vitória ou derrota em “guerra de emboabas”, rivalidades paulistas, heróis, bandidos e outros motivos fundamentando a expansão das bandeiras paulistas(13).

Acreditamos que o que importa é se compreender que a “penetração de reconhecimento” e a consequente irradiação das bandeiras paulistas, de que se refere Affonso de Taunay(14), transpondo ou não os limites de Mato Grosso e Goiás, visava quase sempre implantar na região o sentido profundo e permanente de colonização e subjugação, tendo como prioridade, evidentemente, o interesse econômico. Daí a incessável cobiça pelo ouro e o constante temor com a invasão do território, fatores que mais explicam o astucioso processo de penetração e reconhecimento da área e de sua posterior dominação.

A cobiça por riquezas minerais é mesmo parte intrínseca da expansão do capital mercantil mantido no bojo do escravismo colonial nas descobertas marítimas, nas quais dominou os negros escravos nos mais diversos níveis, sendo que há séculos os portugueses já sabiam que o ouro e a prata eram objetos de cobiça internacional e que a riqueza e prestígio de uma nação eram determinados pela cumulação de metais preciosos(15).

Os aliados dos portugueses no Brasil também já sabiam da descoberta das minas de Potosí no Alto Peru(atual Bolívia) em 1545 pelos espanhóis, despertando grande interesse da Coroa. Sabiam que no século precedente(XVII), possivelmente cinquenta anos da “descoberta” de Mato Grosso e Goiás(1719-1722), esses sertões tinham sido varados por bandeirantes, procurando as cobiçadas minas de ouro, alguns com a mira nas riquezas do Peru. O que relata a respeito Basílio de Magalhães, comprova o que foi anteriormente descrito, merecendo reprodução:

“Sabiam que, no século precedente, várias bandeiras, com a mira nas riquezas do Peru, - Antônio Castanho da Silva em 1622, Antônio Raposo Tavares em 1648 e Luís Pedroso de Barros em 1660, perlustraram a região ocidental, onde o segundo atravessara Mato Grosso e a cordilheira andina, realizando a mais longa e a mais pasmosa jornada de quantas se perpetuariam nas crônicas da epopéia bandeirante. Sabiam também que duas bandeiras, ambas saídas de São Paulo em 1673, - uma dirigida por Manoel de Campos Bicudo, que levara um filho “de escassos 14 anos”, Antônio Pires de Campos, e a outra capitaneada por Bartolomeu Bueno da Silva (“o Anhanguera”), o qual se fizera acompanhar o filho homônimo, então com 12 anos, - revelaram não só a existência do ouro nos chapadões goianos (onde fortuitamente se encontraram), como ainda criou a segunda lenda dos tesouros dos martírios, uma serra resplendente de ouro e cristais (qual nova Sabaraçu), a que deram aquela denominação, porque ela

“tinha por obra da natureza umas semelhanças da coroa, lança e cravos da paixão de Jesus Cristo”(16).

Como enfatiza, aliás, Antonil:

“Foi sempre fama constante que no Brasil havia minas de ferro, ouro e prata”(17).

Com essa penetração de reconhecimento, os imaginários limites estabelecidos no Tratado de Tordesilhas de 1494, entre Espanha e Portugal, são completamente desobedecidos pelos portugueses, assim também resultando a total indecisão daqueles limites entre a América Espanhola e a Portuguesa nesse longe ocidente da Colônia; limites, aliás, para os quais se refugiavam os escravos fugidos das minas de ouro, especialmente de Mato Grosso, onde chegaram a organizar quilombos de que discorremos em “Fugas e Quilombos em Mato Grosso” e em “Fugas e Comunidades Negras de Mato Grosso do Sul”, do último capítulo.

Note-se, por fim, que na fase anterior ao século XVIII somente a parcela de aproximadamente 2.600.000 km2 pertencia a Portugal, incluindo a maior parte do litoral e representando menos de 1/3 do atual território brasileiro(18).

1 - Bruno, Ernani Silva. História do Brasil: geral e regional, vol. VI, s.d., Grande Oeste, Cultrix, SP, p. 17-18.

2 - Moraes, Maria Augusta Santana. in “Origens de Goiás”, Goiânia, Supl. Literário do jornal “O Popular”, edição de 13-05-1973.

3 - Ver: Chaul, Nasr Nagib Fayad. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade, Goiânia, Editora UFG, 1997.

4 - Ver: Souza, Márcio de. Entrevista ao jornal “O Popular”, Goiânia, Caderno 2, edição de 21-07- 1997, mostrando uma visão particular sobre a história brasileira, até recentemente estudada como “história de litoral”.

5 - Ver: Sodré, Nelson Werneck. Oeste: ensaio sobre a grande propriedade pastoril, Liv. J. Olympio Editora, Rio de Janeiro, Col. Docs. Brasileiros n. 31, 1941, p. 5O.

6 - O sentido de colonização persistiu na forjação e implantação de Brasília, assim como logo a seguir, na expansão do “ciclo da soja”; notando-se que a ideologia colonialista foi imediatamente passada ao trabalhador nordestino, cognominado “candango” que, pela língua quimbundo africana, quer dizer pessoa ruim e ordinária,

sendo essa a designação que os escravos davam aos portugueses na escravidão.

7 - Ver: Prado Jr. Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, SP, Ed. Brasiliense, 1986, p. 19 e segs.

8 - Ver: Suton, Alison. Trabalho Escravo: um elo na cadeia da modernização no Brasil de hoje, publicação por entidades co-editoras no Brasil, 1995. Em inglês: Slavery in Brasil. A link in the chain modernisation. The case of Amazônia, Londres, Editora Anne-Marie Sharman, 1994.

9 - Ver: Prado Júnior, Caio. Op. cit. 10 - Gorender, Jacob. O Escravismo Colonial, SP, Ática, 1978, p. 16.

11 - Ver: Prado Júnior, Caio. Op. cit. p. 9.

12 - Enciclopédia Delta Universal, vol. 1, Rio de Janeiro, Editora Delta, 1981, p. 1.130.

13 - Ver: Magalhães, Basílio. Expansão Geográfica do Brasil Colonial, Rio, Col. brasiliana, vol. 45, Cia. e Editora Nacional, 1978; Sodré, Nelson Werneck. Oeste, Rio de Janeiro, ensaio sobre a grande propriedade pastoril, Liv. Olympio Editora, Col. Docs., Brasileiros n. 31, 1941, p. 50.

14 - Taunay, Affonso E. História das Bandeiras Paulistas, vol. VI, Edições Melhoramentos, SP, Tomo III.

16 - Magalhães, Basílio, op. cit. p. 166.

17 - Antonil, André João(João Antônio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil, SP, Cia Ed. Nacional, 1967, p. 303.

18 - Enciclopédia Delta Universal,