• Nenhum resultado encontrado

Ampliação e redução: máxima da cultura

NIETZSCHE E O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO

2.4 A RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E CULTURA

2.4.2 Ampliação e redução: máxima da cultura

Nas conferências sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, Nietzsche aponta ao público algumas tendências que desgastam a educação e estendem seus efeitos negativos à cultura. A tendência à extensão, à ampliação da cultura, e a tendência à redução, o enfraquecimento da própria cultura.

A primeira tendência, a ampliação máxima, busca estender o direito da cultura e acessibilidade a todos, para isto, seria necessário estar vinculada à economia política que, segundo Nietzsche, ligava-se aos interesses do mercado. Atrelada ao lucro e à utilidade, a tendência à ampliação buscaria promover um indivíduo da utilidade e do acúmulo de conhecimento, estando assim permeado pela produção em larga escala, segundo as necessidades vigentes. A finalidade desta tendência é a produção em série, tanto de bens como de homens correntes. O lucro e felicidade

45

aqui se equivalem para este homem que tem a vida como um valor a ser produzido em fábrica. Com tom irônico, acerca da tarefa que exerce a concepção de ampliação da cultura, Nietzsche nos diz:

A verdadeira tarefa da cultura seria criar homens tão ‘correntes’ quanto possível, um pouco no sentido em que se fala de uma ‘moeda corrente’. Quanto mais houvesse homens correntes, mais um povo seria feliz; e o propósito das instituições de ensino contemporâneas só poderia ser justamente o de fazer progredir cada um até onde sua natureza o conclama a se tornar ‘corrente’, formar os indivíduos de tal modo que, do seu nível de conhecimento e de saber, ele possa extrair a maior quantidade possível de felicidade e lucro (EE, §I, p. 73).

Percebe-se que a cultura, ligada à tendência de ampliação e aos interesses da economia política, descaracterizava o indivíduo singular e diferente. Segundo esta concepção é preciso uma cultura que tenha como fim o lucro baseado em uma “cultura rápida”. Seu fundamento está vinculado ao interesse do Estado em investir na formação de funcionários e de exércitos para melhor se capacitar na luta contra outros Estados.

A segunda tendência que desgasta a cultura é a que possui perspectiva da redução. Nesta tendência, os indivíduos deveriam trabalhar em consonância com a defesa dos interesses ligados ao Estado, sendo servidores pautados em uma especialização e formação rápida, deixariam de lado a “fidelidade nas pequenas coisas”, no trato e na disciplina com as questões e tarefas que envolvam a cultura e seu desenvolvimento. Esta tendência prega a divisão do trabalho nas ciências e a especialização do erudito em determinada área de conhecimento:

Assim, um erudito, exclusivamente especializado, se parece com um operário de fábrica que, durante toda sua vida, não faz senão fabricar certo parafuso ou certo cabo para uma ferramenta ou máquina determinadas, tarefa na qual ele atinge, é preciso dizer, uma incrível virtuosidade. Na Alemanha, onde se pretende recobrir os fatos mais dolorosos com um glorioso manto de pensamento, se admira como sendo fenômeno moral esta acanhada especialização dos nossos eruditos e seu distanciamento cada vez maior da verdadeira cultura: a ‘fidelidade nas pequenas coisas’, a ‘fidelidade do carroceiro’, se torna um tema de ostentação, a falta de cultura fora dos limites da

46

disciplina é apresentada como sinal de uma nobre sobriedade (EE, § I, p. 76).

É importante entendermos que o erudito é um intelectual movido por um paradoxo: de um lado possui o instinto de conhecimento e do outro uma imensa pressa do conhecimento. Também é destituído de uma visão abrangente e realista no que diz respeito à vida e ao mundo. Seu campo de visão é estreito, são produtivos no sentido quantitativo e o excesso de conhecimento lhes pesa sobre o ombro, o tédio lhes é nocivo e assim, se “arrastam no estado de espírito morno ou gélido no qual realizam suas tarefas diárias” (SE, §6, p. 229). Este homem é, para Nietzsche, explorado em proveito da ciência como uma espécie de vampiro, extrai de tudo e de nada absorve com profundidade30. Sendo a ciência e o homem teórico participante da

divisão do trabalho, ambos visam à redução e o aniquilamento da própria cultura. Ao lado das duas tendências anteriormente expostas está a cultura jornalística. Para Nietzsche, é no jornalismo que a ampliação e redução da cultura se confluem para a produção da “pseudocultura”. O jornalista, “o senhor do momento”, substituiria os verdadeiros mestres da cultura, pois é no jornal que os chamados eruditos e especialistas divulgariam seus pretensos saberes para o público em uma pressa e simplista redução de conhecimento. Essa pressa que tudo quer conhecer gera uma “compressão ofegante do instante”, precipitação que acomete o jornalista se tornando em uma espécie de “escravo de três “M”: O momento presente, as maneiras de pensar e os modos de agir” (SE, §6, p. 221).

Entendemos que Nietzsche, como aponta Dias (1993), não é contrário à proliferação na Alemanha de escolas com ensino técnico. Nietzsche não descarta a possibilidade de criação de escolas técnicas, às quais são destinadas a uma educação para a sobrevivência. É nestes ambientes que os estudantes aprendem a dominar a linguagem para a comunicação, a calcular corretamente e adquirem conhecimentos das ciências naturais. Neste sentido, estas escolas cumpririam seus objetivos de formar negociantes, médicos, especialistas e funcionários oficiais. Porém,

30Segundo Rosa Maria Dias, as concepções de Nietzsche acerca da ciência alteram-se ao longo de

sua obra. Entre os períodos de 1870 a 1876, a ciência é vista como saber que destrói as ilusões em proveito da sobrevivência dos homens.

47

o ginásio e a universidade em suas diretrizes continuariam a acreditar que seriam lugares onde a cultura ainda deve ser alimentada. Para Nietzsche, estas duas instituições, em seus objetivos, não se distinguem das escolas profissionalizantes. Segundo Dias (1993):

O que Nietzsche censura, ao afirmar que a cultura é “serva do ganha- pão e da necessidade”, é o fato de o gymnasium e a universidade se terem voltado para a profissionalização e, apesar disso, continuarem a acreditar que são lugares destinados a cultura, quando na verdade não se distinguem muito da escola técnica em seus objetivos (DIAS, 1993, p. 99).

Para Nietzsche, não há existência de cultura sem o desligamento do “mundo das necessidades”. O homem ligado a este mundo da luta individual pela sobrevivência não poderá dispor de tempo suficiente para atingir uma “verdadeira cultura”. O ginásio deixara de alimentar a “verdadeira cultura”, a qual busca a nutrição e o engendramento do gênio31. O gênio é uma natureza solitária no mundo,

contemplativa e de criações eternas, a exemplo de Beethoven, Schiller, Goethe, Schopenhauer e tantos outros. Conforme explica Dias (1993), “a extensão da alma, a força da imaginação, a atividade do espírito, a abundância e a irregularidade das emoções tudo isso compõem o caráter do gênio” 32.

O nascimento do gênio não depende da cultura, pois ele é uma dádiva da própria natureza, porém a sua nutrição e amadurecimento se dão em meio ao seio materno da cultura de um povo. Neste sentido o ginásio, para Nietzsche, deve ser fecundo ao promover a “verdadeira cultura”, já que a erudição renega este princípio:

Nossos ginásios, predestinados por sua natureza a realizar este sublime desígnio, ou se transformam em lugares onde se cultiva uma cultura duvidosa, que rechaça com ódio profundo a verdadeira cultura, ou seja, a cultura aristocrática, que se funda numa sábia seleção dos espíritos, ou antes, cultivam afincadamente uma erudição microscópica e estéril, em todo caso distante da cultura e cujo mérito se deva talvez justamente a que esta fecha os olhos e os ouvidos às seduções desta cultura incontestável (DIAS, 1993, p. 81).

31Nosso propósito não é traçar uma possível teoria do gênio em Nietzsche, mas apenas explicitar o que

é interessante para a compreensão da educação e da cultura.

48

A natureza da autêntica cultura parte do princípio da disciplina rigorosa tendo como exemplo os grandes mestres. Nietzsche compreende a educação por meio de uma vida solitária e de uma educação individual, ou seja, uma educação da solidão e do destaque. Esta educação requer a autosuperação da grande individualidade a partir da autocrítica. Confrontando-se com um tipo de homem e de sociedade da modernidade, a educação em seu objetivo deve criticar a sociedade da padronização e da massa que renega o posicionamento singular no mundo, os “exemplares raros”. É preciso lentidão no pensar, experiência interior com o pensamento solitário e criador exigindo um tempo de maturação.

Em tempos atuais vivemos sobre a complexidade de uma rede de necessidade básicas de interação com o mundo, família, amigos, vizinhos, universidade, trabalho. Um ambiente que se apresenta cada vez mais hostil ao pensamento solitário e mais favorável ao pensamento rápido, relacionado a uma necessidade de exposição de opiniões sobre tudo o que acontece no mundo, em nossa comunidade, com o nosso vizinho. Na maioria das vezes, sem aprofundamentos necessários que auxiliem o pensamento a criar condições de apreensões significativas e contextualizadas dos eventos, fatos, da realidade em si, nos parece incompatível às noções de cultura e educação defendidas por Nietzsche. Nas palavras do filósofo “enfim, uma necessidade autêntica de cultura, conduzida por uma educação adequada e tornada um hábito: cultura que é antes de qualquer coisa, como já disse uma obediência e uma habituação à disciplina que caracteriza o gênio” (SE, §4, p. 137).

Contra essa massificação cultural, Nietzsche contrapõe uma cultura canalizada para o surgimento de grandes gênios que deixam sua marca na história para a posteridade e possam servir de variável que ajuda a avaliar todo o esplendor e grandiosidade de uma época.

O Estado percebera que ao promover e “estimular” a cultura, esta por sua vez, seria útil às suas finalidades. O Estado moderno da Prússia passou a ser a “estrela guia da cultura e da educação” visando assim, transformar o ginásio na criação de “escolas de gladiadores da elegante barbárie, com o nome de ‘cultura alemã atual’33

33Até o ano de 1934 a Prússia foi considerada Estado, porém com o advento nazista foi abolido e seu

49

(SE, §2, p. 112). O Estado Moderno não possibilita o nascimento dos espíritos nobres, temendo a natureza aristocrática, ele amplia em número excessivo os estabelecimentos de cultura e de formação rápida para elevação de seus objetivos econômicos e para obtenção de cargos. Assim, indaga Nietzsche:

Por que o Estado tem necessidade deste número excessivo de estabelecimentos de cultura, de mestres da cultura? Por que esta formação do povo e esta educação popular tão amplamente difundida? (...) porque se quer incentivar os grandes indivíduos a buscar um exílio voluntário, propagando e alimentando no grande número uma pretensão à cultura, porque se busca escapar da elevação dura e rigorosa pelos grandes mestres, persuadindo a massa de que ela própria encontrará o caminho guiado pela estrela do Estado. Aqui, temos um fenômeno novo! O Estado como estrela-

guia da cultura [grifo nosso] (SE, §4, p. 117).

O jovem Nietzsche percebera que era incompreensível a posição que o Estado moderno ocupava em relação à cultura se portando de modo utilitarista. O papel que ocupa o Estado Moderno frente à cultura, leva Nietzsche a recorrer aos gregos antigos e como estes, suas criações que nutria pelo Estado um sentimento de relação mútua. O Estado, na Grécia antiga, portava-se como protetor e assistente que possibilitava o desenvolvimento e a proteção da cultura, sendo o “companheiro de viagem”. Na compreensão nietzschiana, o Estado Grego se manteve sempre distante das considerações utilitaristas:

No mais profundo de seu pensamento, os Gregos, por esta razão, tinham pelo Estado este sentimento poderoso de admiração e de reconhecimento, quase escandaloso para o homem moderno, porque eles reconheciam que, sem esta instituição de assistência e proteção, não se poderia desenvolver um só germe de cultura, e que sua cultura absolutamente inimitável e para sempre única não teria justamente alcançado essa exuberância, senão sob a guarda atenta e prevenida de suas instituições políticas de assistência e de proteção (SE, §4, p. 116).

Se a cultura alemã de forma geral está em decadência, tanto no âmbito da música, da filosofia e instituições de ensino, isto se deve, segundo Nietzsche, ao vínculo entre a cultura e o Estado. No intuito de criar pessoas cada vez mais aptas ao

50

acúmulo excessivo e ao desejo de ganhar dinheiro, foi dada ênfase à profissionalização, a uma formação massificada que uniformiza todos a partir de características comuns e medíocres.