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Educação e corpo em Nietzsche: do caminho do criador

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ALEXSANDRO DA SILVA MARQUES

EDUCAÇÃO E CORPO EM NIETZSCHE: DO CAMINHO DO

CRIADOR

Salvador

2015

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ALEXSANDRO DA SILVA MARQUES

EDUCAÇÃO E CORPO EM NIETZSCHE: DO CAMINHO DO

CRIADOR

Dissertação apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Emanoel Luiz Roque Soares

Salvador

2015

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SIBI/UFBA/Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira Marques, Alexsandro da Silva.

Educação e corpo em Nietzsche : do caminho do criador / Alexsandro da Silva Marques. - 2015.

107 f. : il.

Orientador: Prof. Dr. Emanoel Luiz Roque Soares. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2015.

1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm - 1844-1900. 2. Educação - Filosofia. 3. Corpo humano na educação. 4. Valores. I. Soares, Emanoel Luiz Roque. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título.

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ALEXSANDRO DA SILVA MARQUES

EDUCAÇÃO E CORPO EM NIETZSCHE: DO CAMINHO DO CRIADOR

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, Faculdade de Educação, da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em 01 de setembro de 2015

BANCA EXAMINADORA

Emanoel Luís Roque Soares (Orientador) _________________________________ Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Gilfranco Lucena dos Santos __________________________________________ Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco

Universidade Federal da Paraíba

Dante Augusto Galeffi________________________________________________ Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia

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AGRADECIMENTOS

Este é o momento de agradecer às forças que permitiram a realização deste trabalho. Às forças que estimulam a acreditar na arte de lançar-se ao mundo. Lançar, projetar e criar, estes são verbos que exigem carne, corpo e vida, por isto agradeço aos caminhos, as escolhas, livros, leituras, amizades, amores e experiências que me constituem e dão forma ao meu caminhar.

Agradeço a minha família em especial meus pais Dejanira Santos e Roque Silva por sempre sorrirem a me ver chegando em casa depois de tantas ausências, mesmo sem entender o mundo da academia me apoiam incessantemente. É vocês minha inspiração de vida.

Ao professor, Dr. Emanoel Luís Roque Soares, pela generosidade e confiança que sempre manteve pelos seus orientandos.

Aos membros da banca, Prof. Dr. Dante Galeffi e o prof. Dr. Gil Franco Lucena, agradeço por aceitarem com prontidão e gentileza o convite para participar desse processo, pelas considerações feitas na qualificação que contribuíram enormemente para o enriquecimento desta pesquisa.

Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFBA pela acolhida e atenção.

Aos professores do programa, que tive a honra de conhecer, de cursar as disciplinas, também de enriquecer o projeto de pesquisa.

Aos amigos e amigas do Grupo de Pesquisa HCEL, pelos momentos de reflexão, as trocas de experiências, os encontros e os risos que vão construindo espaços afetivos e leves nesta caminhada da academia.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo auxílio financeiro concedido para a realização do mestrado.

Aos amigos de caminhada e de vida, Suelândia Franco, Saul Neto, Maiara Damasceno, e Sergio Costa, pelo apoio, compreensão, trocas de experiências e atenção nos momentos que mais precisei de críticas e abraços.

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A última coisa que eu prometeria seria ‘melhorar a humanidade. Eu não construo novos ídolos; os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. (Nietzsche, Ecce homo)

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MARQUES, Alexsandro da Silva. Educação e Corpo em Nietzsche: do caminho do criador. 107 f. il. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

RESUMO

O presente trabalho de pesquisa faz parte do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Faculdade de Educação, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na linha temática Educação, Cultura Corporal e Lazer. Nossa pesquisa é um estudo sobre o pensamento pedagógico do filósofo alemão Friedrich Nietzsche que visa analisar a aproximação entre educação e corpo em sua filosofia na elaboração de uma educação da criação de si. Para realização deste trabalho, foi realizada uma pesquisa teórica analisando a literatura nietzschiana publicada em sua vida e as contribuições de alguns pesquisadores e estudiosos das suas obras. Esta dissertação está dividida em duas partes. Na primeira, apresentamos e discutimos as críticas lançadas por Nietzsche nos escritos Schopenhauer como Educador e as Conferências

sobre os estabelecimentos de ensino e o Nascimento da Tragédia ao que se refere à

concepção de educação e cultura ministradas nas instituições de ensino da Alemanha do século XIX. A exemplaridade dos gregos, para Nietzsche, surge não apenas como modelo estético, mas no seu modo de viver diante dos sofrimentos e das dores que não os fizeram pessimistas. Na segunda parte, apontamos os caminhos pelos quais Nietzsche supera as críticas iniciais, a partir de suas obras Aurora, Gaia Ciência,

Genealogia da Moral e Assim Falou Zaratustra propondo a afirmação da existência, a

crítica à noção de conhecimento e aos valores morais. Busca-se uma educação da experimentação como justificativa ao aparecimento de novas formas de compreender a cultura, bem como os estabelecimentos de novas balizas conceituais, o que será responsável pela criação de uma nova imagem do homem, do conhecimento e do processo formativo. Neste sentido Nietzsche se empenha em reabilitar o corpo como campo de experimentação e crítica aos valores e interpretações que imperam como verdades. Ao final discutimos a concepção de educação nietzschiana caracterizada como caminho singular e individual, um projeto que se dá pelo cultivo de si, o caminho do criador de valores que a partir do corpo como fio condutor elabora sua singularidade de modo afirmativo.

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MARQUES, Alexsandro da Silva. Education and Body in Nietzsche: not the creator's way. 107 f. il. Thesis (Master) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

ABSTRACT

This research work is part of the Post-Graduate Education (PPGE), Faculty of Education, Federal University of Bahia (UFBA), the thematic line Education, Body Culture and Leisure. Our research is a study of the pedagogical thought of German philosopher Friedrich Nietzsche that analyzes the rapprochement between education and body in his philosophy in the development of an education setting himself. This thesis is divided into two parts. In the first one, we present and discuss the critical launched by Nietzsche in the writings Schopenhauer as Educator, conferences on

educational institutions and The Birth of Tragedy which refers to the conception of

education and culture taught in educational institutions of Germany of the nineteenth century. Thus the exemplary of the Greeks for Nietzsche, comes not only as an esthetic model, but in their way of living against the suffering and pains that didn’t make them pessimistic. In the second part, we aim paths in which Nietzsche exceeds the initial criticism, from his works The Dawn, Gay Science, On the Genealogy Morality and Thus

Spoke Zarathustra proposing the statement of existence, the criticism to the notion of

knowledge and moral values. We search for an education of experimentation as a justification to the emergence of new forms of understanding culture and establishments of new conceptual beacons, what will be responsible for the creation of a new image of man, knowledge and formative process. In this sense, Nietzsche strives to rehabilitate the body as an experimentation field and critical values and interpretation that prevail as truths. At the end we discuss the design of Nietzsche’s education characterized as unique and individual way, a project that takes place by the cultivation of the self, the way of the creator of values that from the body as a guide, elaborates its uniqueness in an affirmative way.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 A criação de Adão (recorte da obra). Obra de

Michelangelo Buonarotti (1511) 23

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NOTA DE ESCLARECIMENTO

No uso das obras do filósofo Nietzsche, optamos por fazer as citações no corpo do texto pelas siglas dos títulos, seguidas de um algarismo arábico que indicará o aforismo da obra, e em seguida a página onde se encontra tal passagem.

A - Aurora (1881)

AFZ - Assim falava Zaratustra (1883-1885) ABM - Para além de bem e mal (1886) CI - Crepúsculo dos ídolos (1888 – 1889)

EE - Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino (1872) EH - Ecce homo (1888)

GC - A gaia ciência (1882- 1886) GM - Genealogia da Moral (1887) NT - O nascimento da tragédia (1872) SE - Schopenhauer como educador (1874)

VM - Sobre Verdade e Mentira no sentido extra-moral (1873)

Em relação a obra Genealogia da Moral, os números em romano indicarão as partes do livro. Já na obra Ecce Homo, cujas partes não estão divididas em números, a sigla será seguida do nome da parte em questão. Na obra Assim Falou Zaratustra a referência está na sequência: obra, parte, nome da seção, página. A regra vale também quando citações complementares da obra publicada de Nietzsche forem colocadas em nota de rodapé. Os demais autores são citados na forma autor-data como é indicado pela ABNT.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

CAMINHOS DA PESQUISA 11

2 PARTE I - NIETZSCHE E O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO 23

2.1 UMA CRÍTICA À EDUCAÇÃO DA ALEMANHA DO SÉCULO XIX 24

2.2 A NOÇÃO DE CULTURA EM NIETZSCHE 28

2.3 FORÇAS ATUANTES: APOLO E DIONÍSO 33

2.4 RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E CULTURA 39

2.4.1 A educação como prática de tratar o vivo como vivo 41

2.4.2 A ampliação e redução: máxima da cultura 44

2.4.3 A cultura utilitária dos egoístas 50

2.5 A EDUCAÇÃO COMO DESENVOLVIMENTO DE UMA FORÇA

CENTRAL 54

2.6 O FILÓSOFO E O PROFESSOR DE FILOSOFIA: O EXEMPLO

SCHOPENHAUER 56

2.7 TRÊS TIPOS FORMATIVOS: O HOMEM DA NATUREZA DE

ROUSSEAU, GOETHE E SCHOPENHAUER 60

3 PARTE II – COMO EDUCAR A SI MESMO OU TORNAR-SE

CRIADOR DE SI 69

3.1 CRÍTICA AO INSTINTO DE CONHECIMENTO: PENSAMENTO É

CORPO 70

3.2 O CORPO COMO FIO CONDUTOR: A NECESSIDADE DE

APROPRIAÇÃO DAS FORÇAS CRIADORAS 76

3.2.1 A vida como vontade de potência 79

3.3 O PROCESSO DE CRIAÇÃO DE SI: DO CAMINHO DO CRIADOR 88

3.3.1 Do caminho do criador: tornar-se o que se é 92

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 100

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1. INTRODUÇÃO

CAMINHOS DA PESQUISA

A nossa proposta é compreender o pensamento pedagógico do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, nas aproximações entre corpo e educação em sua filosofia, visando a elaboração de uma educação do cultivo de si. Qual noção de corpo pode surgir destas tramas? Como seu pensamento pode nos auxiliar a pensar a nossa educação e constituirmos o corpo como potência de mover e ser movido?

Estas e outras questões que apareceram durante nossa pesquisa se entrelaçam com as cicatrizes de nossas vivências escolares transmutadas a cada momento e em cada instante do processo educacional. Carregamos sobre nosso corpo as incertezas e imersões de um tipo de ensino e de educação. Vivemos cobertos em véus de diversas espessuras, arraigadas em tábuas de valoração e apequenamento do corpo como potência de criar a todo momento negado. O caminho da autoformação, do processo de criação de si é excluído dos processos educacionais. As singularidades, a capacidade de potência são marcas esquecidas ou mutiladas para um processo pragmático e reprodutor em muitas instituições de ensino. Essas são algumas reflexões lançadas por Nietzsche e que resultou no projeto da presente dissertação.

A incapacidade de agir diante de uma formação que anula a imanência em prol da atividade do intelecto, que estimula a sermos competentes racionalmente, eruditos e especialistas, é fruto de uma moral que investe um modelo a seguir e nos obriga a obediência que à potência, a reprodução que à criação. Despir-se durante todo o processo de formação é a necessidade vital para nos apropriar de nossas forças inventivas, é condição vital também para colocar em questão os processos formativos que nos separa da potência do corpo e da potência de pensar.

Ler Nietzsche em seu estilo é sermos balançados em cada leitura a darmos saltos e reviravoltas em nossos hábitos e estruturas mentais. Como afirmara Deleuze

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(1976), há uma pretensão de tirar o leitor de seu solo confortável, mover territórios para que compreenda a si mesmo sempre de diferentes modos. É necessário conectarmos o texto à força exterior que por ele vaza ou produzir novas e diferentes intensidade, assim o autor desaparece no texto.

Em um aforismo de Crepúsculo dos Ídolos (1888), Nietzsche ressalta a importância de aprender a pensar experimentando todo o corpo. É preciso que aprendamos a dançar não apenas com os pés, mas com as palavras, as ideias, os conceitos, em um ritmo que a vida e o escrito ganhem carne, movimento e calor. Talvez escrever com sangue, encontrando auroras ainda a brilhar. Buscando a expressão de força, o riso, a dor, o ar de uma paisagem, o vai e vêm das ondas do mar, a alegria mais intensa e o afeto mais envolvente como os textos de Nietzsche permeados de paisagens e sons que atravessam seus leitores. É no ominoso do corpo que se abre os campos das mais diversas experiências. O pensamento no sentido nietzschiano é definido como uma relação estabelecida entre os impulsos corporais. Não é a razão que perpassa os textos de Nietzsche, mas a dissonância, a multiplicidade, o conflito das diferentes interpretações. Ao escrever, Nietzsche expressa o vir-a-ser, o fluxo contínuo da vida que é a vontade de potência e a dinâmica das forças.

Assim, como tantos outros pensadores, Nietzsche tornar-se instrumento de trabalho que auxilia expandir os nossos horizontes no que diz respeito aos processos de formação, a nossa relação com a imanência e como nos apropriamos de nossa existência fazendo-a obra de arte e desejá-la como experimento e caminho de criação incessante.

A educação na interpretação nietzschiana busca promover uma ideia de cultura que prolongue a natureza a realizar sempre a sua obra: o nascimento de grandes personalidades que saibam lidar com a vida e o pensamento de forma intensiva. O papel de uma tarefa educativa que busca o cultivo de si (criação de si) consiste em cultivar e assim desenvolver potencialidades que estimule a melhor forma de vida, tanto física como intelectual. Pois, estando o homem inserido na vida pelo corpo a autoafirmação de nossa existência traz em si a valorização da singularidade e de todo

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sentido criador1. O pensamento então surge de um modo vital no próprio corpo, pois

este é pensador. Os nossos sentimentos, as nossas emoções sempre nos dizem alguma coisa e sempre estão em uma luta para continuarem manifestando e se sobrepondo aos demais sentimentos. Todo pensamento é um sintoma de vida. E sobre a vida há sempre juízos de valor “bom” e “mau” que implicariam na afirmação da própria vida ou a sua negação2.

A crítica Nietzschiana à tradição filosófica, principalmente à um tipo de pensamento que despreza o corpo em detrimento de um impulso racional ou a “pequena razão”. O corpo, na tradição do pensamento antigo, é visto em relação à alma como parte inferior. Haveria uma oposição entre corpo-alma, falsidade-verdade, esquecimento-memória, pensamento/sentidos destacando-se apenas um dos atributos: alma, memória, pensamento. Nesta perspectiva o corpo é significação de tudo que expressa o estranho, errôneo e que poderá ser corrigível a partir da hierarquia e aprimoramento dos seus atributos considerados superiores, estes, por sua vez, desvalorizam e coisifica a corporeidade em prol de interesses religiosos e morais. Segundo Nietzsche, há uma anulação das forças constituintes da vontade de vida da própria natureza. “Vontade de vida” entendida aqui, como vontade de potência, e não como “vontade de existir”.

Todo discurso sobre o corpo e toda produção histórica sobre sua realidade no fundo não passam de interpretações e perspectivas – o que Nietzsche caracteriza de má compreensão. Não há como falarmos de um conhecimento sobre a realidade, pois o corpo carrega em si a multiplicidade da sua vivência, por isso, a consciência em Nietzsche é relacionada às metáforas gástricas e aos processos fisiológicos de digestão e nutrição. Essa mudança de perspectiva não se reduz a uma explicação fisiológica sobres os processos cognitivos, mas uma simbologia que deve ser entendida como ferramenta metodológica contrária as interpretações dualistas da história do pensamento filosófico. Segundo Barrenechea (2011, p. 131), os pensamentos são comparados “às funções gástricas porque incorporam, através da

1Cf. DIAS. 2001, p. 51

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atividade interpretativa, o que é alheio, digerem o que é diverso – a multidão de forças inconscientes – através de signos unívocos”.

Segundo Rabelo (2013) a vontade em Nietzsche, não é algo “puro” ou “em si”, ela é uma forma básica, ou seja, vontade de alguma coisa, pois não existem “seres”, apenas relações3. Para Deleuze (1976) “toda relação de forças constitui um corpo:

químico, biológico, social, político”4. Esta relação é estabelecida entre forças

dominantes e forças dominadas, ou seja, duas forças quaisquer, sendo desiguais, constitui um corpo desde que entrem em relação.

A filosofia tradicional, para Nietzsche, está vinculada por um viés que para aceder ao caminho do conhecimento e da verdade dissocia razão e sensibilidade, movimento observado pelo filósofo nas instituições de ensino da Alemanha do século XIX. Estes movimentos são perceptivos não só no contexto explicitado pelo filósofo na Alemanha, mas ao olharmos atentamente a nossa realidade, sem perder de vista as especificidades inerentes à nossa cultura, percebemos essa lógica operando em todo o ocidente e na própria educação brasileira. Os processos educacionais muitas vezes ao invés de valorizar a potência criadora de cada estudante os relacionam como massas, grupos de corpos padronizados e não como indivíduos, os quais devem “adquirir de modo passivo e disciplinado, um corpo preestabelecido de conhecimentos”5.

Nesta pesquisa, buscamos compreender a concepção de educação da experimentação como justificativa ao aparecimento de novas formas de compreender a cultura, bem como os estabelecimentos de novas balizas conceituais, o que será responsável pela criação de uma nova imagem do homem, do conhecimento e do processo formativo. Neste sentido, Nietzsche se empenha em reabilitar o corpo como

3Segundo o mesmo autor, “só há vontade onde há diferença, onde há oposição; do mesmo modo,

oposição é sempre oposição entre impulsos, entre forças, entre vontades” (RABELO, 2013, p. 92). É preciso destacar que a vontade jamais poderá ser identificada como expressão de uma “vontade de viver”, pois, o próprio querer implica uma primeira condição que é estar vivo, “existir concretamente” (a corporeidade como princípio básico). Sobre estes aspectos ver a página 73.

4Seguindo a argumentação deleuziana, a força sempre é plural e nunca no singular, visto que ela está

sempre numa relação essencial com outra força. Neste sentido, todo objeto (fenômeno) é uma expressão do aparecimento de uma força. “Uma força é dominação, mas também o objeto sobre o qual uma dominação se exerce” (DELEUZE, 1976, p. 6)

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campo de experimentação e crítica aos valores e interpretações que imperam como verdades, por isto, buscou-se subsídios teóricos no pensamento nietzschiano que pudesse problematizar a noção de ser humano e subjetividades que as instituições de ensino têm se proposto a cultivar. Pensar o corpo em uma perspectiva nietzschiana nos remete à forma como este é compreendido em suas obras e: como podemos pensar a educação e o ensino de filosofia como instrumento problematizador de uma tríplice relação envolvendo a cultura, escola e o corpo?

Na obra Schopenhauer como Educador (1874), Nietzsche compreende a educação como “cultivo de si”, em um processo educativo que requer a auto superação da grande individualidade a partir da autocrítica. Confrontando-se com um tipo de ser humano e de sociedade da modernidade, a educação do “cultivo de si” tem por objetivo criticar a sociedade da padronização, a qual renega o posicionamento singular no mundo. É preciso lentidão no pensar, experiência interior com o pensamento solitário e criador que exige um tempo de maturação.

O indivíduo buscará a partir da experimentação, não um processo de formação pré-determinado, mas a autoafirmação na relação que o corpo estabelece com as forças imanentes, desde as relações com questões fisiológicas às representações sociais, afetivas e de sobrevivência. Valorizando a singularidade, a criatividade na afirmação da sua existência no enfrentamento de tudo aquilo que se opõe a uma formação e ensino a serviço da vida, pois “viver é inventar”6. Segundo Nietzsche, todo

valor e sentido doados ao mundo são gerados por nossas interpretações e estas estão relacionadas intimamente com a vida manifesta em nós, pois “ao falar do valor da vida falamos sob a inspiração e através da óptica da vida. A própria vida nos obriga a determinar valores, a própria vida evolui por meio de nossa mediação quando determinamos esses valores” (CI, §5, p, 41).

Segundo Rosa Dias (2011) o corpo em Nietzsche é pensador, é o grande centro de organização e interpretação do mundo e o ser humano está inserido na vida pelo

6Segundo Rosa Dias: “Viver, para Nietzsche, é inventar. Uma invenção que não se pensa a partir da

soberania de um sujeito capaz de criar-se a si próprio, mas a partir da experiência, ou melhor, da experimentação. O grande inventor experimentador de si mesmo é o sujeito sem identidade real ou ideal. [...] Esse sujeito não se concebe como substância dada, mas como forma a compor, como permanente transformação de si, como o que está sempre por vir”. Cf. DIAS, 2011, p. 128

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corpo. E vida é vontade de potência, um eterno superar-se, “atividade criadora e como tal é alguma coisa que quer expandir sua força, crescer, gerar mais vida”7. Ainda

segundo Dias (2011), Nietzsche afirma que toda interpretação só é possibilitada a partir da luta instintiva que há em cada força atuante em nós e por sua busca em querer tomar uma posição.

Para a pesquisadora Scarlett Marton (1990) o corpo é combate entre as forças vitais. Marton explica que o combate ocorre devido às forças dos impulsos se encontrarem sempre em resistência,

a luta entre seus diversos impulsos manifesta-se aqui até mesmo no pensamento. ‘A sequência de pensamentos e conclusões lógicas, em nosso cérebro de agora, corresponde a um processo e luta de impulsos, que por si só são todos muito ilógicos e injustos; de hábito só ficamos sabendo do resultado do combate’ (GC, § 111). Começa a delinear-se uma concepção mais consistente de vida, na qual a luta se impõe como seu traço fundamental. Pensamentos, sentimentos, impulsos estão em franco combate, mas também células, tecidos, órgãos (MARTON, 1990, p, 47).

Em cada impulso há uma avaliação do que ocorre e do que é vivenciado e esta avaliação varia segundo a perspectiva. Neste sentido, os textos de maturidade de Nietzsche, como por exemplo, em Aurora (1881) e Genealogia da Moral (1887), ajudam-nos a compreender a necessidade em se fazer uma crítica dos valores morais, levantando questões frente à origem desses valores e o valor mesmo desses valores. Para a elaboração desta crítica é necessário também que se conheça a origem e fundamento dos valores que favoreceram seu nascimento e seu desenvolvimento. Colocando os valores em questão, Nietzsche inaugura o chamado procedimento genealógico, o qual consiste em uma espécie de instrumento de diagnóstico.

Segundo Marton (2006), o procedimento genealógico é constituído de dois movimentos inseparáveis, num primeiro momento os valores devem ser relacionados com os marcos circunstâncias em que foram criados, relacionando-os, por exemplo, aos valores de “bem” e “mal” em relação a perspectiva avaliadora que os cria. Pois, todos os valores são criados a partir de uma determinada perspectiva. No segundo

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movimento, as perspectivas avaliadoras devem ser relacionadas com os próprios valores8.

Na obra Gaia Ciência (1882), Nietzsche, contrário a toda concepção dualista, afirma que o corpo é o ponto inicial de qualquer questão filosófica. O corpo é pensado como uma relação de forças conflitantes e em um eterno embate, não havendo uma dicotomia entre alma e corpo. Neste sentido o que há é uma “má interpretação” do corpo em toda filosofia tradicional:

[...] – e frequentemente me perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo. Por trás dos supremos juízos de valor que até hoje guiaram a história do pensamento se escondem más– compreensões de constituição física, seja de indivíduos, sejam de classes ou raças inteiras (GC, §2, p, 12).

Segundo Azeredo (2008), Nietzsche defende a valorização dos instintos, do corpo e dos ritmos naturais como os únicos capazes de orientar o homem a uma vida exuberante e vigorosa. “A guerra contra o instinto e toda dimensão corpórea provoca o enfraquecimento do homem, posto que o combate, o jogo de forças são justamente os elementos fundamentais para a saúde do homem” (AZEREDO, 2008, p, 70).

É importante ressaltarmos que a crise de valores e a interpretação lançada por Nietzsche em direção à avaliação destes valores, constitui um passo importante para o entendimento do que foi feito do corpo e estendendo-se aos processos educacionais cria-se uma educação que descaracteriza a vida. É preciso compreender, a partir da concepção de educação em Nietzsche, como o corpo é pensado e como ele possibilita a autoafirmação de nossa existência na criação e valorização de nossa singularidade, na produção de novas formas de vida a partir da sua vontade de potência.

Todo caminhar requer, além da transitoriedade inerente ao devir do acontecimento, trilhas que visualize algumas objetividades e finalidades para que nossas experiências não se percam ou evaporem no ato em si. Todo avanço requer

8Segundo Marton (2006), os valores para Nietzsche são humanos, demasiado humanos. Ou seja, na

interpretação nietzschiana, “a questão do valor apresenta duplo caráter: os valores supõem avaliações, que lhes dão origem e conferem valor; as avaliações, por sua vez, ao criá-los, supõem valores a partir dos quais avaliam” (MARTON, 2006, p, 52).

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a superação de um estado anterior a novos estados mais elaborados, e se falando de pesquisa científica, nossa atitude enseja de um lado a própria rigorosidade da pesquisa no seu trato com a questão a ser estudada e do outro lado com o seu método. Ambas as atitudes não estão dissociadas, mas entrelaçadas. É neste caminhar que indagações são realizadas e realidades vão sendo construídas e isto não é uma atitude abstrata do pensamento, mas do próprio envolvimento do pesquisador na ação.

Por isso, faz-se necessário uma metodologia que garanta as ferramentas na travessia desse objetivo. Como afirma Minayo “a metodologia é o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade” (MINAYO, 2013. p. 14). Neste processo, podemos identificar três atitudes inerentes e necessárias: a teoria da abordagem (o método), os instrumentos de operacionalização do conhecimento (as técnicas) e a criatividade do pesquisador, a sua experiência, sua capacidade pessoal e sua sensibilidade.

Este trabalho apresenta-se como uma pesquisa teórica. Segundo Demo (2000, p. 20) “trata-se da pesquisa que é dedicada a reconstruir teorias, conceitos, ideias, ideologias, polêmicas, tendo em vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos teóricos”. A pesquisa teórica não se configura na imediata intervenção da realidade, mas na criação de condições de intervenção, o que não deixa de ser importante. “O conhecimento teórico adequado acarreta rigor conceitual, análise acurada, desempenho lógico, argumentação diversificada, capacidade explicativa” (DEMO, 1994, p. 36). Este tipo de pesquisa direciona-se a (re)construir quadros de referências, teorias, condições explicativas da realidade, discussões e polêmicas pertinentes.

Nosso estudo, EDUCAÇÃO E CORPO EM NIETZSCHE: DO CAMINHO DO CRIADOR, teve como objetivo compreender a noção de corpo e sua relação com a concepção de educação no pensamento filosófico de Nietzsche. Debruçamos no conjunto dos escritos dos períodos de juventude e maturidade sobre os quais o filósofo apresenta suas críticas à educação de sua época e esboça uma concepção própria de educação, crítica aos valores morais e a relação do corpo com a elaboração do pensamento.

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Na primeira parte do estudo intitulada NIETZSCHE E O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO, atentou-se ao estudo das obras do período de 1870 a 1876: percebe-se nesta fase o início do envolvimento do filósofo com questões referentes à educação e à cultura de seu tempo, tais obras podemos observar: Schopenhauer como educador (1874), Conferências sobre o futuro de nossas instituições de Ensino (1872) e o

Nascimento da Tragédia (1872). Nestas obras Nietzsche apresenta sua crítica à

educação e a cultura ministrada nos estabelecimentos de ensino alemão da sua época por não produzir um vínculo com o pensamento e a vida. Buscamos também na obra

Ecce Homo (1888) os elementos que embasam a revisão destes escritos, nos seus

habituais movimentos de autocrítica, indicando elementos importantes sobre algumas noções que possibilitam repensarmos suas ideias iniciais.

No período em que atuou como professor no Padagogium e na Universidade de Basiléia, os problemas educacionais impulsionaram Nietzsche a pensar sobre a formação desenvolvida no ensino secundário e superior. Nos textos das conferências, Nietzsche critica o ensino Alemão por ter se desvinculado da formação humanística, passando a oferecer uma formação que tinha como objetivo a formação de homens de profissões ligados aos interesses estatais, ao comércio e à formação de um homem teórico, ou seja, de formação cientificista9. É preciso destacar a diferença de contexto

dos textos aqui utilizados. Enquanto nas conferências Nietzsche se refere às instituições, no texto sobre Schopenhauer ele se refere ao grande crítico da burocracia institucional.

Nietzsche compreende que a modernidade é um período de forte crença na ciência e no pensamento como forma de transformação social e de libertação de preconceitos e crenças comuns, herdeira do movimento iluminista. A crítica de Nietzsche à razão incide no fato de que a racionalidade, a consciência e o intelecto é para o homem da modernidade o elemento que o coloca em grau privilegiado em relação aos demais seres. Assim, nasce uma cultura que busca sobrepor à natureza, e um homem que acredita dominar a si mesmo, negando pela via do pensamento,

9Em linhas gerais o Humanismo seria um movimento cultural amplo, advindo do Renascimento e que,

após algumas transformações tomou conta da Europa. Suas ideias básicas implicam uma volta a Antiguidade clássica, greco-romana ou greco-latina. Segundo Ghiraldelli Jr, “fundamentava-se pela busca por uma concepção de homem” (Cf. 2014, p, 4).

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seus instintos e paixões10. A modernidade passa a sustentar uma cultura utilitarista

que privilegia a formação de homens que atendam as demandas e interesses do Estado.

Segundo o filósofo, a educação ministrada nos estabelecimentos de ensino Alemão não produz um vínculo com o pensamento e a vida. Buscava-se ali, a formação de um indivíduo preocupado com a formação profissionalizante para assim atender às demandas do Estado e de uma sociedade utilitarista que privilegiava o saber teórico, especialista e erudito cada vez mais distanciado da vida.

É preciso destacar dois movimentos que estavam em vigor na Alemanha do século XVIII, a saber, a tendência à extensão, à ampliação da cultura; e a tendência à redução, ao enfraquecimento da própria cultura. No intuito de criar pessoas cada vez mais aptas ao acúmulo excessivo, foi dada ênfase à profissionalização impedido que o sistema educacional possibilitasse a autêntica cultura. Segundo Nietzsche, a autêntica cultura não está subordinada aos interesses utilitaristas e cientificistas, mas aliada a uma formação humanista que leva em conta o desenvolvimento e o cultivo dos indivíduos, e não apenas sua erudição. Nestas reflexões Nietzsche caracteriza quatro tipos de egoísmos que são como forças que corroem e enfraquecem a cultura: o dos negociantes, o do Estado, o dos camufladores e dissimuladores e o da ciência. Ao refletir como o homem pode educar a si mesmo, é necessário ter em mente que esta não é uma tarefa fácil, pois ao tentar se conhecer o homem é levado ao caminho oposto, podendo-se degenerar na figura de um erudito ou homem da utilidade que se apega a tarefa diária, aos ideários de felicidade coletiva desprezando a singularidade. É preciso que o homem assuma a responsabilidade por sua existência e a afirme convictamente. Nietzsche afirmará que o homem devido a sua característica maleável e de transforma-se constantemente pode educar-se, a partir do exemplo de um modelo de vida e não unicamente dos livros ou de uma educação meramente técnica.

Schopenhauer é apresentado por Nietzsche como um “ideal de educador” por manter uma coerência entre vida e pensamento. Assim como Schopenhauer,

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Nietzsche manteve uma relação explosiva e intensa entre a vida e seu pensamento. Pois a educação ocorreria, para este filósofo, a partir do encontro da “força”que impulsiona o desenvolvimento dos grandes mestres e não apenas pela transmissão exacerbada de conhecimentos que se entregam ao pragmatismo, ao utilitarismo, ao tecnicismo, fragilizando, assim, a criação da personalidade autêntica.

Na segunda parte, intitulada DE COMO EDUCAR A SI MESMO: OU TORNAR-SE CRIADOR DE SI, nos interessa o estudo dos elementos motivadores e propositivos referentes à noção de corpo em Nietzsche e como se empenhara em reabilitar a imanência como campo de experimentação e crítica aos valores e interpretações que imperam como verdades. Buscou-se utilizar as obras Gaia Ciência (1882), Aurora (1882), Assim Falou Zaratustra (1883) e Genealogia da Moral (1888)11.

Na obra Aurora é estudada a crítica aos juízos morais e a moralidade como criadora de valores que determinam a forma de agir comunitária. Nietzsche afirma a perda na crença da existência de uma relação de tudo com a moral e de um significado ético do mundo (A, §3 p, 12). Buscou-se entender nesta obra como se efetua a noção “paixão do conhecimento” caracterizada pelo filósofo.

Em Gaia Ciência, por ser um livro também anterior à obra Genealogia da Moral, buscou-se estabelecer a relação de alguns elementos, como, consciência como função orgânica e os instintos, impulsos, como aquilo que está a serviço da vida e consequentemente suas influências na(s) noção(ões) de corpo. É preciso também compreendermos como o filósofo da Gaia Ciência e da Genealogia da Moral, opera a crítica do valor dos valores e apresenta sua compreensão acerca da “má interpretação” do corpo pela tradição filosófica.

Na obra Genealogia da Moral investigamos a crítica levantada pelo filósofo acerca dos valores morais, suscitando questões referentes à origem e ao valor dos valores. Nietzsche apresenta o procedimento genealógico possibilitando avaliar o valor dos valores e interpretar o sentido das forças que estão em relação. Estes são movimentos importantes para entendermos à noção de corpo na tradição filosófica.

11 Os livros Gaia Ciência e Aurora se inscrevem no período intermediário ou “positivista”, inaugurado

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Na obra Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém, centramos nossa atenção na seção “Do caminho do criador”. Nesta seção, Zaratustra oferece um belo exemplo de personalidade autêntica, de cultivo espiritual, de avanço intelectual e cultural, como uma provocação à era de banalização da formação. A partir da experimentação, o indivíduo buscará não um processo de formação determinado e acabado, mas a afirmação da sua existência, valorizando a singularidade e a criatividade no enfrentamento de tudo aquilo que se opõe a uma formação preocupada com seu tempo a serviço da vida.

Neste sentido, buscamos no referencial teórico apresentado, compreender o corpo na interpretação nietzschiana, apresentando suas possíveis relações com a educação. Apresenta-se a noção de educação como experimentação e justificativa ao aparecimento de novas balizas conceituais para compreender a cultura, o que será responsável pela criação de uma nova imagem do homem, do conhecimento e do processo formativo.

Por fim, nas CONSIDERAÇÕES FINAIS, tecemos perspectivas e questões diante do estudo apresentado, na medida em que se constata a imposição de uma determinada compreensão de corpo a ser cultuado e efetivado ao longo da cultura humana e da educação. Pensar o corpo como fio condutor, em uma concepção de uma educação que desenvolva nos estudantes a personalidade ativa e criadora frente a uma sociedade massificada e padronizada, nos lança possibilidades de uma educação da sensibilidade em que o ser humano, em relação a sua vida, possa ser um criador de si. Uma educação da experimentação se abre a nós esboçando tensionamentos sobre o tipo de formação que temos hoje e qual o tipo formativo que ainda se pode elaborar.

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PRIMEIRA PARTE

NIETZSCHE E O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO

Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu. Certamente, existem as veredas e as pontes e os semideuses inumeráveis que se oferecerão para te levar para o outro lado do rio, mas somente na medida em que te vendesses inteiramente: tu te colocarias como penhor e te perderias (Co. Ext. III, § 1, p. 164.

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Nesta primeira parte se estruturam dois momentos: primeiro buscamos compreender como estrutura a análise realizada pelo filósofo Nietzsche no que diz respeito aos estabelecimentos de ensino alemães; e um segundo momento, a partir da sua própria experiência com Schopenhauer, Nietzsche mostrará os perigos, as dificuldades e as peculiaridades da experiência formativa a que se é submetido na presença de um filósofo intempestivo.

Entraremos em um labirinto no qual os minotauros são monstros que necessitam domá-los, sejam eles a decadência de um sistema educacional sendo devorado pelas investidas de um poder estatal e econômico, seja por uma compreensão de ciência e uma formação (instrução) que não favorece um modo criativo de ser e da potencialização da vida. O que será possível ver é que tais labirintos, aparentemente confusos e cheios de direções, contribuem para traçar coordenadas na cartografia das críticas Nietzschianas à educação de sua época.

É necessário que ao buscarmos compreender as análises do filósofo intempestivo, segurarmos no fio condutor de um novelo de questões que devem surgir à mente ao adentrar em seu labirinto. Como as análises, aqui levantadas, se aproximam de nossa realidade e contexto, já que não somos alemães, nem gregos e cuja “elevação” espiritual geralmente passa pelos altares de algum templo – e essa é a nossa raiz com todas as possibilidades e contradições de misturas de crenças, estilos e línguas – e não por uma tradição constituída de reflexões sobre filosofia, literatura, educação? Acreditamos que tais questões não nos são completamente estranhas, pois aquilo que está na raiz do problema da educação, da formação

(bildung), da cultura, diz respeito a qualquer cultura e a qualquer ser humano, pois é

necessário que se pense o sentido de ser humano a partir do seu estar no mundo.

2.1 UMA CRÍTICA À EDUCAÇÃO DA ALEMANHA DO SÉCULO XIX

É notável o interesse do filósofo Nietzsche pela educação desde seus primeiros escritos, tais interesses ora por oferecer como sendo fruto dela, ou por acreditar no papel que ela desempenha no processo de renovação cultural. Durante o tempo em

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que foi professor na Universidade de Basiléia, o jovem filósofo produzira alguns escritos como as Considerações extemporâneas, porém nesta primeira parte de nossas reflexões, as mais relevantes são suas conferências, Sobre o futuro de nossos

estabelecimentos de ensino e Schopenhauer como educador, proferidas na Akademisches Kunstmuseumem Basiléia, no ano de 1872. É interessante observar

que Nietzsche em sua obra de maturidade o Ecce Homo, ao realizar uma revisão sobre estes escritos de juventude, ressalta que neles se encontram a sua “história íntima”, seu vir a ser, o seu compromisso como educador12.

Estes textos deixam expresso o empreendimento do jovem filósofo e sua preocupação com a educação, a formação (Bildung), seu papel sociocultural e a cultura de seu tempo. Tempo este demarcado pela banalização da sociedade moderna a qual fora conduzida pela “cultura jornalística13” e pelo “filisteísmo

cultural14”.

A educação nos estabelecimentos alemães, segundo Nietzsche, visava à preconização de uma formação e de um tipo de homem, a saber, o tipo homem que se enquadra em uma função, o especialista qualificado, o homem útil, erudito e homem da ciência. Nietzsche denuncia assim o caráter alucinante e destruidor da imposição econômica e do capitalismo industrial. A educação e a cultura ligada ao Estado como mentor e guia de suas funções, nutria em ambos o objetivo principal de estimular a formação de mão de obra especializada centrada no ajuste e na adequação dos indivíduos ao próprio Estado, à ciência e ao interesse daqueles que Nietzsche caracteriza como a classe dos comerciantes. Trata-se da padronização dos mesmos desempenhos, dos modos de ser, e das habilidades possível a todos os indivíduos pelo processo pedagógico do ensino-aprendizagem.

12 É importante destacar que na mesma obra Ecce Homo, Nietzsche ressalta que também fora erudito

por um tempo, pois que é preciso “haver sido muitas coisas em muitos lugares, para poder-me tornar-me um – para poder alcançar alguma coisa. Por um tempo eu tive de ser também erudito” (EH, p. 68).

13Nietzsche critica o Jornal por se apresentar em seu estilo uma forma sofisticada aparente, pois se

utiliza das obras dos grandes gênios apresentando assim apenas resumos de seus trabalhos o que faria desestimular os estudantes a lê-los.

14Filisteu era o nome genérico que se dava aos indivíduos que habitavam a antiga Síria, que aparece

na Bíblia. Nietzsche recorre a algumas palavras carregadas de forte sentido cultural para construir um tipo de imagem que criar movimentos em suas ideias.

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O homem moderno, segundo Nietzsche, busca se adequar às obrigações do Estado, o qual necessita de um indivíduo cada vez mais especializado em um saber quantitativo e historicista15 pautado na transmissão de conteúdos e no interesse do

enriquecimento pessoal e da promoção social. Nietzsche refere-se ao homem como um funcionário do Estado e “filisteu da cultura”, este último expressaria um “saber envernizado”, aparente e superficial. O “Filisteu da cultura” é uma expressão usada pelo filósofo para caracterizar um determinado tipo de homem possuidor de uma ignorância referente ao valor e ao poder transfigurador da arte, se caracterizando pela imitação e pelo consumo dos bens culturais.

A produção cultural passa a ser a assimilação da produção industrial. Para o jovem filólogo, as instituições de ensino na Alemanha, no século XIX, tinham como objetivo a formação de profissionais para atenderem a fins específicos dentro do novo cenário capitalista e industrial que começava a ascender na Alemanha. Atendendo aos objetivos do Estado e ao mercado, a educação ministrada nos estabelecimentos de ensino não contribui, mas depõe contra à elevação da cultura. Nesta perspectiva, Nietzsche percebe o aprofundamento de uma crise educacional que desdobra em um processo maior: a vida.

Em Nietzsche a vida é entendida como vontade de potência, definida a partir da ótica da arte que privilegia o aspecto de intensificação da própria potência. Viver, neste sentido, não é apenas adaptar-se às diversas circunstâncias externas, antes de tudo, a vida é atividade formadora16 que leva o homem a ser artista de sua própria

existência e não evadir-se de si mesmo. O que acontece neste cenário de crise identificado por Nietzsche, sobre as instituições de ensino, é uma perda de um vínculo com a vida como “desenvolvimento de si”, ou seja, educação como manifestação das pulsões do gênio artístico. O gênio é a figura do desenvolvimento do homem que tem

15Segundo o dicionário filosófico Abbagnano (2007. p, 508) “o historicismo é uma doutrina segundo a

qual a realidade é História (desenvolvimento, racionalidade e necessidade) e que todo conhecimento é conhecimento histórico. Essa é a tese fundamental do idealismo romântico. Uma variante da doutrina precedente, que vê na história a revelação de Deus no sentido de considerar que cada momento da história está em relação direta com Deus e é permeado dos valores transcendentes que incluiu na história”.

16É preciso destacar, segundo José Weber (2008), no período em que Nietzsche trata dos temas de

formação este parece profundamente vinculado ao tema da arte, como em Hölderlin, Winckelmann, por exemplo, e em toda a tradição alemã que pensa o problema da formação.

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a capacidade de cultivar a sensibilidade em prol de uma vida afirmativa, criativa e expansiva sem negar nenhuma das forças criadoras: apolínea e dionisíaca17.

O que Nietzsche tem em mente é a noção de que “o homem é o animal ainda não determinado”, sempre inacabado (ABM, §62 p. 65). Por isso, a possibilidade de uma tarefa educadora. Educação deve afirmar-se como uma força vital realizando-se intempestivamente, contra aquilo que constitui o presente, o mundo das necessidades acumulativas, ideias e ações correlatas de uma época indigente acometida pela pressa incessante. Sua empreitada é desenvolver uma educação como “cultivo de si”

18, uma educação que desperte os sentidos para a elevação da cultura, da

experimentação e que possa ser afirmativa e criadora de valores.

Por outro lado, a crise educacional e a cultura promovida pelo Estado, segundo Nietzsche, produziu o homem teórico e erudito que passa a ser sinônimo de status

quo rendido pela utilidade de um Estado industrial. Há uma supervalorização do saber

historicista e jornalístico colocando a vida, o imanente, o devir em segundo plano. O saber erudito e esvaziado de experimentação é instituído como força legitimadora da instrução e não da experiência como afirmação da vida e das criações.

A escola passa a ser obstinada a instruir, como afirma Nietzsche:

A educação: um sistema de meios que visam arruinar as exceções em proveito da regra. A instrução: um sistema de meios que visam ensinar o gosto contra a exceção, em proveito dos medíocres. Visto assim, isto parece duro; mas, de um ponto de vista econômico, é totalmente racional. [...] Uma cultura de exceção, da experimentação, do risco, da nuance – uma cultura de estufa para as plantas excepcionais não tem direito de existir, senão quando há muitas forças, de modo que mesmo o desperdício se torne ‘econômico’ (Apud SOBRINHO, 2009, p. 347.).

17Apolíneo e dionisíaco referem-se ao que vem dos deuses, e que são tratados como forma de

contraste: entre a ordem, racionalidade e harmonia intelectual (Apolo) e a vontade, viver espontâneo e extasiante (Dioniso).Porém, não são elementos contrários, mas sim de unidade, complemento, no qual um é parte distinta do outro (PAES, 2015).

18Nietzsche apresenta o conceito cultivo de si na III Intempestiva: Schopenhauer como educador

(1874). Na obra Ecce Homo (1888), Nietzsche, ao lançar algumas críticas aos seus textos da juventude, apresenta o que de fato pretendia com tais escritos: “No fundo, com esses escritos eu desejava fazer algo bem diferente de psicologia – um problema de educação, um novo conceito de cultivo de si, defesa

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A filosofia e as artes devem ser retomadas como experiência vital. Uma cultura da experimentação é contrária a todo processo de vulgarização e nivelamento cultural o que separa a vida e o pensamento. Por isto, na interpretação de Nietzsche, Apolo e Dioniso, são figuras centrais para a constituição da arte, da civilização grega e da própria história, funcionam como princípios imanentes. Segundo Nietzsche, os homens tinham uma maneira afirmativa de lidar com as paixões e os conflitos mediante a exemplaridade de uma civilização que soube, por meio da arte, sobreviver às adversidades.

Assim, a exemplaridade dos gregos, para Nietzsche, consistia não apenas como modelo estético, mas no seu modo de viver diante dos sofrimentos e das dores que não os faziam pessimistas. A este modo grego, o jovem filósofo, compreenderá originário de uma sabedoria mítica e de uma arte trágica da experimentação.

2.2 A NOÇÃO DE CULTURA EM NIETZSCHE

A palavra cultura na sua origem etimológica é oriunda do verbo latino colere significando o cultivo, o cuidado. Inicialmente podemos pensar a cultura como um modo de vida, de pensar ou como campo próprio instituído pela ação humana referente a todos os aspectos da vida social. Etimologicamente a palavra cultura dimensiona para a natureza, a “lavoura”, “cultivo agrícola” que entrelaça um movimento tanto de um crescimento espontâneo como movimento regulado, elaborado. Segundo Chauí (2008) ligada ao cultivo e ao cuidado com a terra, nos dá a noção de agricultura, já o cuidado com as crianças, denomina-se puericultura. Com os deuses e o sagrado, surge o “culto” que no latim, refere-se o termo cultus, compreendendo tanto o sentido religioso quanto aos cuidados com os pertences. Como cultivo, a cultura era concebida como uma ação que conduziria a plena realização das potencialidades de alguma coisa ou de alguém.

Segundo Chauí (2008, p. 55) no correr da história do ocidente, no século XVIII, a palavra cultura ressurge, porém como sinônimo de civilização. Civilização deriva-se

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da ideia de vida civil, portanto, de vida política e de regime político. Com o movimento Iluminista a cultura passa a ser vista como o “padrão” ou o “critério” que mede o grau de civilização de uma sociedade. Segundo Chauí (2008) a noção de tempo contínuo, linear e evolutivo é introduzida no conceito de cultura o que pouco a pouco a torna sinônimo de progresso. Neste sentido, o progresso de uma civilização seria avaliado pela sua cultura e assim se avaliaria a cultura pelo progresso que esta traz a uma civilização.

As sociedades modernas passaram a ser avaliadas segundo a ausência ou presença de alguns elementos, os quais são próprios do ocidente capitalista e a ausência desses elementos era considerada sinal de falta de cultura ou de uma cultura pouco evoluída. Segundo a filósofa Chauí, os elementos que passam a ser critério de avaliação das sociedades são: “o Estado, o mercado e a escrita. Todas as sociedades que desenvolvessem formas de troca, comunicação e poder diferentes do mercado, da escrita e do Estado europeu, foram definidas como culturas ‘primitivas” (CHAUÍ, 2008 p. 56).

A cultura não é estática pois é sempre uma tensão entre aquilo que é racional e espontâneo. Não sendo determinada e fixa, muito menos deliberadamente modificada, ela implica aquilo que a natureza realiza em nós, a saber, as ações que realizamos na natureza. A cultura é um movimento oriundo de seu próprio processo vital. Neste sentido, é necessário compreendermos que sobre o conceito de cultura, na raiz de toda significação, há forças, isto é, todos os eventos significativos são movidos pela junção de significado e de poder, por sua vez, só podem ser identificados a partir da própria cultura.

Mas, qual é a definição de cultura em Nietzsche? O filósofo, no livro David

Strau: o devoto e o escritor, nos dá uma definição daquilo que ele define como cultura:

A cultura é antes de mais nada uma unidade de estilo que se manifesta em todas as atividades de uma nação. Mas saber muito e ter aprendido muito não são nem meio necessário nem um signo de cultura, mas combina perfeitamente com o contrário de cultura, a barbárie, com a ausência, com ausência de estilo, ou com a mistura caótica de todos os estilos (DE, §2, p. 11).

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O filósofo compreende cultura como arte, criação diferente de algo que se possa adquirir ou possuir. A cultura, para Nietzsche, deveria possibilitar a criação dos grandes gênios, dos seres criadores e inventivos. É justamente pela distinção entre o tempo da lentidão e o tempo da pressa que os conceitos de “cultura autêntica” e “pseudo-cultura”, tão presentes na escrita nietzschiana podem ser estabelecidos.

É preciso elucidarmos que muitas expressões utilizadas por Nietzsche podem soar estranhas ou se julgadas por algum cunho ideológico levaria a um viés justificador de concepções extremistas. Sendo um filósofo intempestivo e crítico do seu tempo, Nietzsche ao falar de cultura, tal qual ele compreende, a cultura autêntica, é aquela que não está presa a um fim utilitário e pragmático. A cultura não pode estar a serviço do desenvolvimento de aptidões utilitárias, sejam questões políticas, militares ou formação profissional, isto inviabilizaria o desenvolvimento da própria cultura na concepção nietzschiana.

Nietzsche entende por cultura autêntica ou verdadeira cultura aquela que permite ao homem aceder ao seu próprio ser criador. A cultura, neste sentido, não pode estar a serviço de bens materiais ou o desenvolvimento de aptidões utilitárias. Este tipo de cultura exige muitas renúncias, trabalho e restrições a poucas coisas e autodomínio, pois são habilidades adquiridas lentamente, que “só tem início numa atmosfera que está acima deste mundo das necessidades, da luta pela existência, da miséria” (EE. §III, p.103).

Diante das incessantes contradições da cultura, encontra-se o homem moderno, carente de identidade, de sentido e esvaziado de si. O homem preso ao julgo de imposições de diferentes sistemas e organizações se prende ao seu próprio individualismo e isolamento. Na busca por um sentido para a vida o homem anseia encontrar a si mesmo. Porém, mergulhado em uma concepção racionalista, o homem da modernidade depositará toda sua crença na ciência como uma entidade que explicaria o sentido do mundo. Segundo Lima (2012) a ciência prioriza a razão, que busca a verdade e a exatidão, não deixando espaço para a ilusão, para a intuição e, especialmente para a criatividade. Porém, como nos mostra Nietzsche, não existe uma verdade ou uma essência por trás da aparência. O homem moderno ao

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perceber-31

se incapaz de produzir uma cultura autêntica, depara-se com o nada, mergulhado no

niilismo19 decadente.

Sendo o niilismo caracterizado pela ausência de valores afirmativos e de condutas que potencializam a vida, podemos então afirmar que, a modernidade é caracterizada por uma decadência. Segundo Giacoia (2007) a lógica da decadência opera-se devido à perda de potência e dos valores esvaziados, pois a pseudocultura busca adquirir certos privilégios, na acessão dos funcionários, burgueses e no funcionalismo público. De modo que:

Não é o niilismo a causa da decadência cultural, antes pelo contrário: ele é antes o resultado necessário de um lento, até então insuspeitado, processo de declínio e perda de potência, pois nessa escalada são extraídas as consequências lógicas inexoráveis das pretensões sustentadas com base nesses mesmos valores que se esvaziam (GIACÓIA, 2007, p. 26-27).

Segundo Giacoia (2007), deparamo-nos com uma cultura fragmentada, em meio à ausência de valores que se sustentem sem coesão e integridade, caracterizando uma pseudocultura vazia de “amor e pensamento”. Na obra

Schopenhauer como Educador, encontramos a caracterização deste cenário moderno

tão em evidência:

As ciências, praticadas sem medida e abandonadas ao mais cego

laissez-faire, se retalham e dissolvem tudo em que se acredita

firmemente; as classes cultas e os Estados civilizados são arrastados por uma corrente de dinheiro gigantesca e desprezível. Jamais o mundo foi mais mundano, mais pobre de amor e de bondade. As classes cultas não são mais os faróis ou os asilos em meio a todo esse turbilhão de espírito secular. A cada dia, elas se tornam mais inquietas, mais vazias de amor e pensamento. Tudo está a serviço da barbárie que vem vindo, tudo, aí incluídas a arte e a ciência desta época. O homem culto degenerou até se tornar o maior inimigo da cultura, pois ele quer negar com mentiras a doença geral e é um estorvo para os médicos (SE, §3, p.166).

Neste sentido, o homem moderno interessa-se por aquilo que é útil, “tudo gira em torno das necessidades, da luta pela existência” (EE, §III, p. 103) como, por

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exemplo, um “posto de funcionário ou um ganho material” (EE, §III, p. 104). Afirma Giacoia (2007), a cultura moderna:

[...] desde seus primórdios, mantém uma íntima relação com as referências de valor atualmente em vias de dissolução. Pois a forma geral da racionalidade lógica provém de uma inspiração

congenitamente socrático-platônica, nela predominando o

pensamento de tipo teórico, em sua busca incessante de causas, razões e princípios que explicam a essência, existência e os modos de ações dos entes e de seus processos de transformação (GIACOIA, 2007, p.23).

Nietzsche, ao diagnosticar a decadência cultural da Alemanha, procurou na Grécia arcaica a exemplaridade de uma cultura autêntica. Segundo o filósofo, os gregos em um momento de sua história sentiram o perigo de perder sua cultura em fusão com culturas estrangeiras (egípcias, semitas, lídias e babilônicas). Para manter a autenticidade e a personalidade de sua cultura20, os gregos souberam contornar a

situação e organizar o caos. Nos fala Nietzsche:

Os gregos aprenderam pouco a pouco a organizar o caos, voltando-se para si próprios, conforme o ensinamento délfico, dando ouvidos às suas autênticas necessidades e deixando morrer as suas necessidades artificiais. Foi assim que eles retomaram a posse da sua própria personalidade; não permaneceram durante muito tempo como herdeiros e epígonos oprimidos do Oriente. Eles tiveram mesmo a felicidade, graças à aplicação prática desta máxima, depois de um difícil combate entre eles mesmos, de aumentar e enriquecer o tesouro que tinham herdado com o que se tornaram os precursores exemplares de todos os povos civilizados do futuro (SE, §3, p.176-177).

Desde os primeiros escritos é notório o apreço que Nietzsche manteve aos gregos principalmente a Grécia pré-socrática ocupando um lugar de destaque em suas reflexões, que segundo Weber (2003, p. 50) constitui-se referência obrigatória para a compreensão do seu pensamento. Se houve uma mudança no decorrer do

20Diferentemente, nosso processo cultural, ao contrário de perder-se com a mistura de culturas

diversas, criou formas e perspectivas próprias com todas as rupturas e resistências de seu povo diante das diversas contradições culturais, criando uma miscelânea de sincretismos e complexidade.

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tempo, houve também uma coerência. Pois, até os últimos momentos de vida lúcida, Nietzsche proclamou-se discípulo do deus Dionísio.

Segundo o filósofo Weber (2003) à volta aos gregos não é característica exclusiva do pensamento nietzschiano. A cultura grega expressava uma fonte de inspiração para a criação de novas maneiras de pensar o homem, a cultura, a vida corporal e espiritual, os tornando únicos e exemplares na criação da arte, do pensamento e, principalmente da vida. Voltar-se aos gregos assumia o sentido de volta à origem na qual “a vida não estava medida pela visão científica utilitária, sendo estes alguns dos pressupostos observados nos empreendimentos literários, artísticos e até mesmo filosóficos na Alemanha em fins do século XVIII e no século XIX” (WEBER, 2003 p. 50). Nietzsche admitindo a necessidade de uma renovação na cultura de sua época, buscando encontrar uma “verdadeira cultura”, admitirá a Grécia como “cultura exemplar”.

2.3 FORÇAS ATUANTES: APOLO E DIONÍSO

Na obra Nascimento da tragédia (1873), Nietzsche demonstra que o desenvolvimento da tragédia ática está relacionado ao resultado de um duplo caráter: o Apolíneo e o Dionisíaco, duas forças que ora se abraçam, ora se chocam. O deus Apolo, equivale à aparência, a fantasia, o sonho, a arte plástica e ao mesmo tempo é o deus do equilíbrio, moderador, ou seja, a força racionalizante que estabelece limites às emoções mais selvagens. Apolo expressaria também o princípio de individuação, isto é, o homem individual resgatado dos tecidos da ilusão, a consciência de si que se reflete no indivíduo, no Estado e o no patriotismo. Já Dionísio, equivale à arte sem forma, à música, à embriaguez, fazendo cessar todas as limitações e as individuações, destrói a ilusão e manifestam-se o desmedido. Dionísio representa a sensibilidade e as forças vitais do espírito humano promovendo a reconciliação do homem com sua origem e sua natureza.

Tendo uma sensibilidade para o sofrimento e para a dor, o grego poderia apresentar um perigo para a vida: o pessimismo ocasionado pela percepção da

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dolorosa violência da existência. Nietzsche ressalta que os deuses olímpicos não foram criados no sentido de um “escapamento do mundo” ou fuga da realidade. Mas, como uma expressão de religião que respira vida, imanente e que diviniza o existente, tornando tudo à sua volta belo (embelezando), a saber, o sofrimento, as perdas, a morte, as lutas, sendo a vida possibilitada pelas imagens artísticas da criação humana. Neste sentido, pergunta Nietzsche: “de que outra maneira poderia aquele povo tão suscetível ao sensitivo, tão impetuoso no desejo, tão singularmente apto ao

sofrimento, suportar a existência, se esta, banhada de uma glória mais alta, não lhe

fosse mostrada em suas divindades? (NT, §3, p. 36- 37).” Segundo Roberto Machado (2002) os gregos encontravam nos mitos e nas artes e expressados nos deuses as forças necessárias para criar um tipo de ordem, não de forma racionalizada, mas uma ordenação estética que se expressava na sua cultura,

[...] todas as forças do espírito e do corpo se manifestavam nos deuses olímpicos de modo esplendoroso e ilimitado. A primeira grande ordem que os gregos criaram e seguiram, portanto, fundada na mitologia e na arte, não era uma ordem racional, mas estética. A beleza possibilita um tipo de ordenação, de medida, e foi por meio desta medida que os gregos ordenaram sua cultura (MACHADO, 2002, p. 17).

Apolo e Dionísio para Nietzsche são considerados como impulsos artísticos advindos da natureza, ambos são reconciliados pelos povos helenos. Como tal junção ocorreu? Segundo Nietzsche, a primeira e mais simples união do apolíneo e o dionisíaco apresentam-se na poesia lírica e na canção popular: a união entre a Palavra e a Música. Segundo Rosa Dias (1994), Nietzsche “identifica nessas manifestações artísticas o mesmo mecanismo que dá origem à tragédia: a música, gerando as imagens e as palavras, e a linguagem, procurando imitar a música” (DIAS, 1994, p.13). Foi a partir de sua própria existência que os gregos puderam exaltar a vida, com o mundo das divindades, os infortúnios, o sofrimento e toda a realidade eram mostrados como “espelho transfigurador”, ou seja, “os deuses legitimam a vida humana pelo fato deles próprios a viverem” (NT, §3, p. 37).

A música para Nietzsche assume um papel fundamental na tragédia ática. A tragédia seria originária do espírito da música, configurada no coro trágico “essa tradição nos diz com inteira nitidez que a tragédia surgiu do coro trágico e que,

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originariamente, ela era só coro e nada mais que coro” (NT, §7, p. 52). O elemento da união apolíneo-dionisíaco é encontrado na tragédia, iniciando com o coro entoado pelo grupo de adoradores de Dionísio e, pouco a pouco foi sendo inserido à representação dramática. Segundo Weber:

A irrupção do trágico no coro dionisíaco – forma primitiva da tragédia – foi posteriormente incorporado à representação dramática, por meio do qual, Ésquilo e Sófocles criaram a arte da tragédia na qual o espírito da música, engendrando o drama, os sofrimentos de Dionísio, eram representados na relação ondulante entre a figura de um herói mascarado – máscara de Dionísio – e o coro – manifestação primitiva de Dionísio. Aos olhos de Nietzsche, a tragédia grega na representação esquiliana e sofocliana é a forma artística por excelência pois foi construída sobre a intuição do exato limite entre música e drama, sendo que a ‘serenidade grega’ repousando sobre um fundo aterrador permite que o terror seja representado como belo, posto que essência do mundo, signo da vida (WEBER, 2003, p. 25-26).

A relação da música na representação da tragédia é caracterizada, por Nietzsche, como a afirmação da existência. O filósofo exalta a cultura helênica por compreender que encontrara um povo que soube suportar os perigos e as tensões de existir sem sucumbir ou desvanecer sendo fortes exatamente porque não renegou a dor e o sofrimento. Pois os gregos, para Nietzsche, possuíam a sabedoria mítica e a arte trágica que lhes possibilitava viver apesar do sofrimento e da dor. De acordo com Rosa Dias (1994), a tragédia para Nietzsche:

não é apenas uma nova forma de arte ou um novo capítulo na história da arte; ela tem função de transformar o sentimento de desgosto causado pelo horror e absurdo da existência, numa força capaz de tornar a vida possível e digna de ser vivida. Toda verdadeira tragédia traz um ‘consolo metafísico’: ‘a vida no fundo das coisas, a despeito de toda mudança dos fenômenos, é indestrutivelmente poderosa e alegre’ (DIAS, 1994, p. 59).

Diante disso, a Grécia para Nietzsche, segundo Lima (2011) não era apenas como modelo estético a ser imitado ou até mesmo contemplado, tão comum no ocidente do século XIX, considerava os helenos pela sua sensibilidade com a vida. Segundo Nietzsche, a música “difere de todas as outras artes pelo fato de não ser

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