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“Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: – mais nada.” (MEIRELES, 1967, p. 103).

Esta canção de José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski foi lançada em 2011, no álbum “Indizível”.

Sílabas do meu canto

Seções

[1] à [6] Parte A

Letras de fogo e ar Gritos do nosso espanto Vozes do som do mar Fazei-nos acalanto Fazei-nos descansar Piscinas de silêncio Seções [7] à [12] Parte B

Hinos do sem lugar Uivos na noite imensa Sóis que inda vão vingar Dai-nos alguma bênção Dai-nos com que sonhar

O acalanto é uma cantiga para embalar criança, para fazê-la adormecer; é, por isso, uma canção de circunstância, que indica, com bastante nitidez, um “na ocasião de ...”.

O plano narrativo da canção em pauta constitui, sem margem para ambiguidades, uma metalinguagem: essa canção é um elogio, uma ode lírica ao canto. O canto é uma graça49. Nesse texto estão, fundamentalmente, três sujeitos: o sujeito-orador (S1), sujeito individual; o sujeito-canto (S2), também individual; e o sujeito “nós” (S3), coletivo. S1 pede a S2 para si próprio, assim como para S3. Na prática significante que é essa canção-prece, vemos que a modalização aparece como relação factiva entre três sujeitos-actantes hierarquicamente distintos: o actante-enunciador, o “eu”, aquele que pede; o actante do fazer, o canto; e o actante “nós”, potencialmente beneficiário da prece de S1, caso esta seja atendida. A relação entre os três sujeitos-actantes está integrada dentro de um programa estratégico, por parte de S1, para a realização de ações do canto (S2), cuja competência pragmática é virtualizada. Está no programa de S1 o fazer-fazer, fazer com que o canto nos acalante, nos livre do cansaço, nos abençoe, e nos faça sonhar.

49

Graça: “1. Favor que se dispensa ou recebe; mercê, dádiva. 2. Teologia: Dom que Deus concede aos homens e que os torna capazes de alcançar a salvação. 3. Teologia: Favor ou benefício concedido por Deus a um fiel [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 981).

O actante-destinador (S1) outorga poderes infinitos ao canto. A entidade “canto” é fonte e garantia do “Bem” aristotélico, é a representação figurativa de uma grandeza superior, sobrenatural, de um ser quase divino. Tanto é assim que o sujeito-pedinte não se dirige a Deus, mas se encaminha, sem mediação, ao próprio canto. Deus, dêixis de “pessoa”, seria apenas uma realidade ao lado de outras. O orador se apresenta como praticante de um ato ritualístico não-secular. Portanto, nesse acalanto mundano, não falta a espessura humana carnal que o rito oficial sacro recalca50.

A peça tem caráter religioso, ainda que não tematize, explicitamente, assuntos religiosos. Parece evidente que a mistura, a não-triagem, do sagrado e do profano é conseguido da maneira formidável. Em “Acalanto”, o gênero “oração” escapa, sem sanções maiores, ao controle e à gestão do capital simbólico religioso por parte dos detentores desse monopólio; o acalantar é um rito doméstico, privado, deixado à iniciativa da crença de quem o pratica. “Acalanto”, sendo uma oração popular, é uma prática litúrgica não-ortodóxica que toma de empréstimo alguns aspectos enunciativos de textos sacros.

Essa peça de Wisnik e Nestrovski pode ser considerada uma oração popular, não-espiritualista, em que a percepção sensório-corporal é reconhecida. O canto é venerado por sua virtude, e sua força (virtus) está em seu poder-fazer, está na função que ele desempenha.

O canto acode ao sujeito sofrente, angustiado, espantado, que enfrenta uma “noite imensa”. Para tanto, é pressuposto que tenha um absoluto de competência modal. Com efeito, pela instância enunciativa da peça, é extraordinária a competência modal do canto: pelo fenômeno da catexia51, o sujeito estesiado é tocado, invadido, tomado e invocado pelo canto. O canto pode acalentar, fazer descansar, abençoar, e pode até dar a alguém com o que sonhar. O canto tem, por tudo isso, imenso poder sobre o estado de alma dos sujeitos, promovendo mudanças nas disposições afetivas fundamentais destes, quer seja, o canto modula, altera a timia dos sujeitos estésicos.

Nesse texto, a tensividade aspectual instalada é traduzida figurativamente. A isotopia em que a figura nuclear é o canto articula uma cadeia sintagmática sensório-

50

Recalque: “Operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão. O recalque produz-se nos casos em que a satisfação de uma pulsão – suscetível de proporcionar prazer por si mesma – ameaçaria provocar desprazer relativamente a outras exigências” (LAPLANCHE, 1998, p. 430).

51

Catexia: “A tradução habitual de Besetzung é „catexia‟ ou „investimento‟. [...]. O verbo Besetzung evoca a imagem de um espalhamento que preenche, ocupa e bloqueia os espaços. O termo também possui um sentido de „colocar pessoas‟, „ativar‟”. (HANNS, 1996, p. 89).

auditiva profunda e patemizada: “Gritos do nosso espanto”, “Vozes do som do mar”, “Piscinas de silêncio”, “Hinos do sem lugar”, “Uivos na noite imensa”.

“Acalanto”, como as orações em geral, é um ato de linguagem que utiliza a categoria do performativo. A prece não serve apenas para transmitir uma simples informação ou descrever um acontecimento, ou, ainda, um “estado de alma” ou um “estado de coisa” (GREIMAS; FONTANILLE, 1993), mas, antes, adequa-se à realização de um ato determinado: um pedido, uma súplica.

No plano narrativo do percurso gerativo de sentido desse texto, a instauração do sujeito competentíssimo, o canto, corresponde à qualificação desse mesmo sujeito e à passagem das modalidades querer-fazer, poder-fazer e saber-fazer. O canto se constitui o sujeito-do-fazer, operador qualificado. Sua qualificação, em vista do desempenho, é atestada pelo orador: as sílabas do canto são “letras de fogo e ar”, “gritos do nosso espanto”, “vozes do som do mar”, “piscinas de silêncio”, “hinos do sem lugar”, “uivos na noite imensa”. Cada um desses atributos representa um juízo de inerência; os predicados entram na própria definição desse sujeito. Tais aspectos qualitativos já indicam os respectivos papéis temáticos de S2: acalentar, descansar, abençoar, dar com o que sonhar.

Na canção-oração em análise, o rito do acalentamento conjunge sujeito e natureza. O canto é elemento natural e não um objeto construído, um produto da subjetividade humana: as sílabas do canto são fogo, ar, sons do mar, noites imensas, sóis. E o papel de tal poderosa entidade é reestabelecer o nível de constância, o equilíbrio (possível) do universo psíquico dos sujeitos. Esse texto-oração, no plano semântico-narrativo, manifesta a busca do autocontrole dos sujeitos, o fortalecimento dos seus espíritos e dos seus corpos, a calma, a quietude, a serenidade e a evitação dos seus mal-estares. O objetivo dessa prece tem alta virtude: o alcance da forma de vida perfeita. O texto, irreligioso, é a afirmação da condição existencial plena do ser humano em decorrência da capitulação niilista à vontade de viver.

A Gestalt (macroestrutura) de “Acalanto” é manifestada conforme mostra o Quadro 5, a seguir:

Quadro 5 – Forma de “Acalanto”

Forma A - B (forma binária)

Parte A Parte B

Plano verbal

Parte A: Seções [1] à [6] Parte B: Seções [7] à [12]

Plano musical

Parte a Parte a: repetição

A simplicidade do eixo melódico, que tem uma “pegada” rítmica bossanovista, contrasta com a complexidade da narrativa. No âmbito da extensão, não há desdobramentos melódicos; a traça da melodia não se desfaz, nem se torna outras, desmembrando-se. No plano musical, não existe, por isso, a Parte B, ou “outra parte”, ou, ainda, “segunda-parte”52.

A canção “Acalanto” apresenta um perfil melódico expandido, quer dizer, explora grande extensão entre as alturas dos graus mais graves e os mais agudos. Nessa instância enunciativa, o intervalo terminativo descendente (Figura 24) incide apenas e justamente sobre os verbos “descansar” e “sonhar”. Consideremos que, pela gramática tensiva e pelos universais da entoação da semiótica da canção, os intervalos descendentes denotam, em geral, asseveração. No projeto entoativo de “Acalanto”, não há exceção: os intervalos descendentes promovem o fechamento da grandeza melódica, exatamente quando os semas “descansar” e “sonhar” são enunciados.

Figura 24 – Mapeamento dos contornos letra/melodia de “Acalanto”

Parte A Dó to Si Lá can ar Sol meu e Fá Sí - la - bas do Le - tras de fo - go Mi Gri - tos do Dó nos - so Si Lá es to mar Sol pan do Fá Vo - zes do som Mi Fa - zei - nos Dó a Si Lá ca to

Sol lan des

Fá Fa - zei - nos can

Mi

sar

Parte B Dó cio Si Lá lên gar Sol si lu

Fá Pis - ci - nas de Hi - nos do sem

Mi Ui - vos na Dó noi Si Lá te i sa gar

Sol men vin

Fá Só - is que in - da vão Mi Dai - nos al Dó gu Si Lá ma ção Sol bên que

Fá Dai - nos com so

Mi

nhar

Fonte: Elaborada pela autora.

O sentido melódico-entoativo desse texto tem inspiração (matriz) no modo dórico autêntico (escala de Ré natural)53, o que significa que todo o projeto musical da obra gravita em torno do II grau da escala maior modelo (escala de Dó natural). Isso pode ser observado no mapeamento letra/melodia da peça (Figura 24), que cifra, na coluna vertical à esquerda, na íntegra e sem acidentes (sustenidos e/ou bemóis), com a precisão de uma oitava, a escala de Ré natural.

O sentido entoativo da peça bem se coaduna com a descrição fenomenológico- aspectual da escala dórica: a canção tem efeito de sentido de sublimação, moderação, temperança e comedimento. A oração “Acalanto” é plasmada pela ética do ascetismo.

53 O plano musical de “Acalanto” é analisado, aqui, como tendo sido composto no modo dórico. Percebe-se, porém, que, no mapeamento dos contornos letra/melodia exposto, não há o aparecimento do intervalo que mais identifica este modo, que é a 6ª Maior – nota Si. Isso, então, gera ambiguidade: o texto “Acalanto” pode ser considerado dórico ou eólico.