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“As estrelas brilhavam. Nunca mais essa felicidade voltará tal qual. A anamnésia me faz transbordar e me magoa.” (BARTHES, 2001, p. 210).

“Brega” faz parte do álbum “Compacto e Simples” (2005), do cancionista e poeta Chico César.

Brega brega brega brega, me deixou

refrão

Eu sou o fruto brega da semente brega que você plantou Olhar etíope devora seu retrato

Parte A Braços antílopes me apertam o coração

Amore míope, vê se enxerga o firmamento E lembra do juramento que foi feito com paixão Brega brega brega brega, me deixou

refrão

Eu sou o fruto brega da semente brega que você plantou Na Sibéria afetiva em que fui enclausurado

Parte B Sinto gelado o beijo do desamor

Amore míope, vê se enxerga o firmamento E lembra do juramento que foi feito com paixão

O texto é monotemático. O tema é a ruptura da relação amorosa, a coita.

Para além da qualidade da criação “Brega” significa, nesse caso, inflexão passional da melodia e da letra da canção, que promove a circulação dos conteúdos afetivos do sujeito. É saliente a reiteração do item lexical “brega”. Com efeito, essa entidade é repetida 49 vezes, se contarmos com o refrão e com a ancoragem do próprio título da canção.

Na canção em pauta, o destinador enuncia estado de disjunção em relação ao seu objeto-valor, ou seja, em relação ao seu objeto-amado-ido-embora (S  objeto-valor: objeto-amado-abandonador). Na sintaxe narrativa de “Brega”, o acontecimento do deixamento amoroso é o elemento monopolizador. O destinador, fora-de-si, sujeito do estupor, largado, abandonado, queixoso, enuncia que, por ter sido deixado (forma passiva), foi transformado, ele próprio, por um processo de transubstanciação corpórea, em um objeto, objeto abjeto, objeto brega: “Eu sou o fruto brega da semente brega que você plantou”.

O sujeito-destinador, quase docemente, mas com algum índice de ironia, provoca (manipulação) o destinatário: “Amore míope, vê se enxerga o firmamento e lembra do

juramento que foi feito com paixão”. Contudo, esse sujeito derrelito continua em estado de privação (falta não-liquidada) até o final do projeto narrativo da canção.

No projeto verbal dessa peça cancional, o investimento figurativo ilumina o temático; no discurso, atua, com predominância, a figurativização passional. Em um movimento dicotômico, as isotopias figurativas do calor, ou seja, as iterações sêmicas africanas (“olhar etíope”, “braços antílopes”) são seguidas pelas isotopias figurativas do frio, pelas iterações sêmicas siberianas, frígidas e crípticas (“Na Sibéria afetiva em que fui enclausurado / Sinto gelado o beijo do desamor”).

Pela semiótica das paixões, de Greimas e Fontanille (1993), o sujeito passional é o que sofre o efeito de ações anteriores que de algum modo o imobilizam. No nível narrativo, esse sujeito responde, modalmente, aos processos que o levam à perda ou à reaquisição do objeto, mas o que acaba definindo, cabalmente, suas oscilações tensivo-passionais é a construção de expectativas em relação aos outros sujeitos. O não-cumprimento dos juramentos, quer seja, a ruptura dos contratos fiduciários – que, por vezes, sequer são explícitos – estabelecidos entre os actantes, é a principal razão dos sentimentos de decepção e mágoa, que levam, não raro, a retaliações contundentes.

Em acordo com a semântica narrativa, examinemos a dimensão modal do texto “Brega” e as paixões dela decorrentes: ocorre que o destinador lírico-passional sofre uma tempestade modal. Vemos aí o sofrer suplantar o agir: o enunciador, paralisado, imobilizado pragmaticamente, constata que seu autocontrole modal (quase) se extingue. Ele, o destinador não mais rege, mas, de forma passiva (“Na Sibéria afetiva em que fui enclausurado”), é regido, pois até perde a capacidade de reagir ao sofrimento com algum contraprograma.

Do ponto de vista da semiótica tensiva, dessa maneira se apresentaria o gráfico zilbergbergiano do actante-destinador desarrazoado, sujeito do descomedimento, da desmedida, em “Brega” (Figura 42):

Figura 42 – Posição do sujeito brega em “Brega” no eixo tensivo

Sujeito brega

Paroxismo do sofrimento, assomo, coup (golpe), esfera do sobrevir Função inversa (correlação inversa)

Ação resolutiva, fois (vez), esfera do pervir Fonte: Adaptada de Zilberberg (2011).

Nesse ponto, é importante, para a continuação da análise dessa obra, que sejam expostos o quadro da forma (Quadro 16) e o mapeamento dos contornos letra/melodia (Figura 43).

Quadro 16 – Forma de “Brega”

Forma A - B (forma binária)

Introdução: segmento instrumental Refrão (2 vezes)

Parte A Seção narrativa A

Parte musical A Refrão (2 vezes)

Parte B Seção narrativa B

Parte musical A (repetição) Refrão (2 vezes)

Final: segmento instrumental Fonte: Elaborado pela autora.

Figura 43 – Mapeamento dos contornos letra/melodia de “Brega” Parte A (refrão) – Seção [1] – Lá m (modo eólico)

Sol# Fá

Mi me

Ré Bre bre bre bre - ga dei

Dó xou Si ô ô Sol# Fá ga ga ga Mi Ré Dó Si Sol# Fá Mi

Ré Eu sou o fru bre men

Dó to ga da se te cê Si plan tou Sol# bre Fá Mi ga que vo Ré Dó Si

Sol# Fá Mi Ré seu Dó tra Si tí vo re a O - lhar e o de ra to Sol# pe Fá Mi Ré Dó Si Sol# Fá Mi Ré co Dó ção Si tí per ra Bra - ços an lo me a

Sol# pes tam o

Fá Mi Ré Dó Si Sol# Fá Mi ma Ré xer - ga o fir Dó A men Si en to Sol# mo Fá re Mi mí Ré o Dó pe vê se en Si

Sol# Fá que foi Mi Ré lem - bra Dó E do pai Si ju com ra- men (Lá#) - to (Lá#) to xão ... Sol# fei Fá Mi Ré Dó Si

Fonte: Elaborada pela autora.

Extraímos do projeto melódico-entoativo da canção em análise os seguintes dados:

 A sintaxe melódico-passional é descendente, com predominância dos intervalos de 6ª Maior descendente e de 3ª menor (grandeza que caracteriza, aspectualmente, o modo eólico, modo escalar menor);

 Os movimentos intervalares são disjuntos. Os saltos grandes, largos e passionalizados, entre um tonema e outro, são descendentes;

 Pela direção intervalar descendente, o vetor cursivo tende à nulidade tensiva; a estesia caminha para a anestesia. A atenuação, então, é um dos analisadores da descendência tensiva, e supõe a “adição” de um “menos” (minimização). Assim como ocorre 49 vezes a repetição da entidade lexical “brega”, no projeto verbal, é também reiterada 49 vezes a entidade sonora intervalar de 6ª Maior descendente. Esse é um dos aspectos que manifestam a perfeita compatibilidade entre letra e melodia do prisma entoativo do texto; outro é a escolha semiótica, na melodia, pela modalidade menorizada.

Pela gramática tensivo-musical, é importante salientar que o cancionista da obra em análise opta por compor a melodia com base na escala eólica, ou seja, no modo de Lá.

Há, em “Brega”, o traço da tonalização do sistema modal eólico, devido ao tonema Sol sustenizado (Sol#). Porém, lato sensu, é pertinente que o plano melódico dessa peça seja considerado como sendo de matriz eólica, posto que é marcado pelo intervalo de 3ª menor – intervalo que caracteriza os modos escalares menores.

O efeito de sentido do modo menor é o de tristeza, enternecimento, de fechamento e remisividade.