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Análise da canção “Bicho de sete cabeças”

“Cena nenhuma tem um sentido, nenhuma avança para um esclarecimento ou uma transformação. A cena não é nem prática ou dialética; ela é luxuosa, ociosa: tão inconsequente quanto um orgasmo perverso; ela não marca, não suja.” (BARTHES, 2001, p. 67).

“Bicho de 7 cabeças”56

é o segundo álbum solo de Geraldo Azevedo, gravado em 1979. A canção “Bicho de sete cabeças”, que dá nome ao disco, tem como coautores Zé Ramalho e Renato Rocha.

Não dá pé não tem pé nem cabeça

Seções

[1] à [8] Parte A

Não tem ninguém que mereça Não tem coração que esqueça Não tem jeito mesmo

Não tem dó no peito Não tem nem talvez

Ter feito o que você me fez Desapareça, cresça e desapareça Não tem dó no peito

Seções

[9] à [16] Parte B

Não tem jeito

Não tem coração que esqueça Não tem ninguém que mereça Não tem pé não tem cabeça Não dá pé não é direito

Não foi nada eu não fiz nada disso

E você fez um bicho de sete cabeças, bicho de sete cabeças

56

A origem da expressão “bicho de sete cabeças” está na mitologia grega, na história de Hidra de Lerna. A Hidra era uma besta metade mulher e metade serpente. O semideus Hércules recebeu a incumbência de realizar doze trabalhos para que pudesse se redimir dos crimes cometidos. O segundo desses trabalhos consistia em vencer a Hidra. Em uma luta corpo a corpo, o monstro se enroscou em torno do corpo de Hércules, que tratava de esmagar as espantosas cabeças com sua espada. Mas cada vez que lhe cortava uma cabeça, via, com assombro, que do pescoço mutilado surgia duas ou três que imediatamente substituía a cabeça que havia sido cortada. Hércules, então, com a ajuda do seu sobrinho Iolau, incendiou o bosque vizinho, e, utilizando o fogo, queimava cada ferida do pescoço de onde as cabeças do monstro haviam sido decepadas, evitando, assim, sua regeneração. Ao fim a ao cabo, a Hidra é morta (VALDAN, 1999). No senso comum, no cotidiano, um “bicho de sete cabeças” é algo complicado, difícil de ser entendido, feito ou resolvido.

Não dá pé não tem pé nem cabeça

Repetição Parte A Não tem ninguém que mereça

Não tem coração que esqueça Não tem jeito mesmo

Não tem dó no peito Não tem nem talvez

Ter feito o que você me fez

Desapareça, bicho de sete cabeças, bicho de sete cabeças

No texto, o antissujeito-performador age sobre o sujeito, ao fazer um “bicho de sete cabeças” em relação ao nada ter feito deste último. Mas tal cena-ação-encenação é considerada pelo sujeito como sendo descabida; ela não é descrita, desvelada no texto. Afinal, o que é o “bicho de sete cabeças”? Que ato do antissujeito “não tem pé nem cabeça”? O sujeito-enunciador (S) reconhece a falta de proporção, o alcance estático e estonteante do ato do antissujeito (“você”). Ele crê que, mesmo não tendo feito nada, tenha provocado a ira do antissujeito, e fez com que esse Outro “virasse bicho”.

Para o sujeito, a ab-reação57 do Outro – reação ao seu não-ter-feito-nada –, é exagerada, puro excesso, é, por fim, só excrescência. O que o antissujeito fez contra o sujeito, aquilo que “não tem pé nem cabeça”, não tem sentido58; o sujeito não aceita, por uma questão de justiça, os atos de retaliação do Outro (atos de fala ou de outro tipo).

No enunciado, o narrador é, ao mesmo tempo, um ator manipulado (“Não tem coração que esqueça”, “Não tem ninguém que mereça”, “Não dá pé, não é direito”) e um ator manipulador-sancionador, quando provoca: “Cresça e desapareça”. A sanção pragmática promovida pelo sujeito (performance ou desempenho) poderá atingir o antissujeito.

A afetividade do sujeito, estando este se sentindo injustiçado, está no auge, e a legibilidade e o entendimento em relação ao fazer do antissujeito são nulos. O amortecimento das valências afetantes não chega a evoluir. O ato ab-reativo, exagerado, por parte do Outro ao nada-ter-feito do sujeito (“Eu não fiz nada e você fez um bicho de sete cabeças”), não cessa de obnubilar, obsedar, saturar o sujeito. Tal ato, cifrado pelo excesso, não é apreendido pelo sujeito senão como algo injustificável, inaceitável, e, por isso mesmo, é algo

57 Ab-reação: “Descarga emocional pela qual um sujeito se liberta do afeto ligado à recordação de um acontecimento traumático, permitindo assim que ele não se torne ou não continue sendo patogênico” (LAPLANCHE, 1998, p. 1).

58

Sobre a competência receptiva do sujeito em relação aos procedimentos do Outro, na psicanálise, Greimas e Courtés (2008, p. 82) assim discorrem: “O discurso psicanalítico já evidenciou o desvio existente entre os mecanismos que garantem a apreensão da significação e os procedimentos, pouco conhecidos, que presidem à sua apropriação, à sua integral na axiologia já existente. Tudo se passa como se o sujeito receptor não pudesse entrar em plena posse do sentido, a não ser dispondo de antemão de um querer e de um poder-aceitar, ou, em outros termos, a não ser que ele possa ser definido por um certo tipo de competência receptiva”.

que o afeta e perturba. Descrevendo a grandeza “bicho de sete cabeças”, nessa narrativa, a partir de sua imersão no espaço tensivo (Figura 26), temos:

Figura 26 – Representação mítica “bicho de sete cabeças” no eixo tensivo

E ix o d a in te n sid ad

e ”Bicho de sete cabeças” (figura de retórica/figura de linguagem)

Desarrazoabilidade, ininteligibilidade

Legibilidade, intelegibilidade Eixo da extensidade

Fonte: Elaborada pela autora.

A ação ab-reativa do antissujeito ao nada-ter-feito do sujeito é, para este último, não compreensível, e atinge até mesmo sua integralidade psíquica, em uma semiose fulgurante. O sujeito se vê, então, demandado a responder ao excesso do antissujeito, mas, antes, estabelece parâmetros de medida, calcula, quantifica, subjetivamente, o tamanho do exagero nos feitos do antissujeito. S sofreu um ataque injusto e só lhe resta empreender um projeto de recuperação do valor (concreto ou abstrato) que lhe foi subtraído, e rejeitar a imagem de si próprio como alguém conformado com a condição de ofendido e injustiçado. A percepção do exagero no fazer do antissujeito requer a recuperação do mal provocado em S por esta desmedida.

As excrescências do antissujeito produzem estados passionais no sujeito, e indica a necessidade deste interromper as ações descabidas daquele. O excesso provoca em S o ímpeto de parar a continuidade que exorbita; ele percebe como desequilibrada a atuação do antissujeito, na qual impera um recrudescimento irrefreável. Enfim, S sofre pela hiperbolização fórico-tensiva dos atos do Outro. O antissujeito ultrapassa a medida subjetiva do sujeito, sem dúvida; e S clama por um “menos mais”, quer seja, por uma atenuação.

É o enunciador-avaliador-julgador que identifica a ação inadmissível do antagonista, e não suporta os efeitos do excesso deste. O sujeito que reage diz ao Outro: “cresça e desapareça”. O sujeito, ao rejeitar o excesso, precisa reestabelecer seu campo de ação e, no limite, sua própria identidade. A saturação já está instalada de acordo com o julgamento do sujeito; só resta a ele dispensar o excedente instaurado pelo Outro.

O antissujeito causa desagregação, o que leva o sujeito a buscar uma forma de recomposição da sua própria identidade subjetiva, a partir da restauração de sua competência e do confronto direto contra o responsável pela sua perplexidade. O sujeito é um actante

perplexo, pois que se sente aviltado. Para tanto, ele recorre ao imperativo “cresça e desapareça”, lutando para recuperar seus próprios recursos actanciais.

O sujeito não sabe o que desencadeou o fazer inaceitável do antissujeito. Isso pode ser cifrado no quadrado semiótico das estruturas cognitivas demonstrado na Figura 27:

Figura 27 – Estruturas cognitivas do sujeito de “Bicho de sete cabeças” em relação ao fazer do Outro no quadrado semiótico

Escapar (retensivo)

Espantar-se (contensivo)

S1:

Compreender (eutensivo)

Apreender (distensivo) Fonte: Adaptada de Zilberberg (2011, p. 162).

O sujeito incompreende o fazer exagerado do Outro. A heterotopia figural “bicho de sete cabeças” (figura mítico-metafórica) é convertida em fechamento, oclusão do objeto sobre si mesmo, fechamento que vai lhe permitir aparecer como portador de um segredo. As qualidades excessivas do objeto-figura “bicho de sete cabeças” são inimigas do sujeito: ele não as entende, as sofre.59

“Bicho de sete cabeças” tem a forma A-B-A (forma sonata): a narrativa tem oito seções em cada parte. A Parte A é reiterada tanto na grandeza narrativa quanto na musical. A Parte B repete o mesmo projeto melódico da Parte A, e, pela análise imanente do seu plano narrativo, aprendemos que este difere da Parte A. É o que está cifrado no Quadro 7.

59 O tema da identificação do sujeito nos “excessos”, nos “demais”, faz parte do texto “Pensamentos”, do filósofo francês Pascal (1979, p. 52): “[...] as coisas extremas são para nós como se não existissem, não estamos dentro de suas proporções: escapam-nos ou lhe escapamos”. Ainda segundo esse pensador, as exorbitâncias contêm infinitos, para mais ou para menos, inacessíveis, que não fazem outra coisa a não ser reiterar a insignificância de nossa apreensão e compreensão perante o “tudo” e o “nada”, além de nos restringir a uma faixa limitadíssima de considerações quantitativas. E é justamente nessa faixa que residem as imprecisões e as inseguranças com as quais temos de conviver. Nadamos em meio-termo, sempre incertos e oscilantes, levados de um lado para outro. Com efeito, em nossas avaliações cotidianas rejeitamos os extremos, como se os processos de significação funcionassem melhor nas fases medianas, comedidas, da quantificação e da qualificação. A respeito disso, escreve Tatit (2016) que aprendemos a confiar em nossas medidas subjetivas, e as utilizamos em nossos julgamentos, procurando escolher direções e seus pontos estratégicos, estimados a partir da distância que mantém dos limites máximo e mínimo.

Quadro 7 – Forma de “Bicho de sete cabeças”

Forma A - B (forma binária)

Parte A Parte B

Plano verbal

Parte A: Seções [1] à [6] Parte B: Seções [7] à [12]

Plano musical

Parte a Parte a: repetição

Fonte: Elaborado pela autora.

De início, os sintagmas entoativos já se manifestam com algum grau de tensividade. Ainda assim, pelo direcionamento da peça, em uma evidente rota progressiva, a ascendência recrudesce (“mais mais” ou “aumento de mais”), convertendo-se em uma espécie de saturação, que torna urgente, ou inevitável, a diminuição dos elementos considerados excessivos.

Em “Bicho de sete cabeças”, é marcante a atenuação, que é um dos analisadores da minimização da descendência tensiva. A série simples de semitons descendentes (direção descendente) promove a atenuação da tonicidade: a descida sintagmática dessa melodia supõe a adição de um menos (a atenuação é o correlato a quo da minimização).

Vejamos como se dá o percurso gerativo de sentido no mapeamento letra/melodia da canção em análise na Figura 28:

Figura 28 – Mapeamento dos contornos letra/melodia de “Bicho de sete cabeças”

Mi

Ré re

Dó be Não tem nin que me(Dó#)

Si Não não tem ca guém

Lá Sol Fá ça(Fá#) Mi dá pé pé nem ça Fá Mi

Ré Não tem co que tem jei

Dó ra que es

Si ção

Sol ça Não to mes - mo

Mi Não no pei tem nem

Si

Lá tem dó to Não tal - vez(Lá#)

Sol

Mi

Fá vo - cê(Fá#) cres

Mi Ter fei o que me ça

Ré to (Ré#) fez(Ré#) e Dó De de Si sa sa Lá pa pa Sol re re Fá ça(Fá#) ça(Fá#) Mi

Fonte: Elaborada pela autora.

O serpenteamento dessa melodia degressiva se dá pela descida sistemática dos graus tonemáticos cromáticos (a escala cromática se constitui de doze semitons sucessivos, ou seja, de sintagmas intervalares de 2ª menor, em sequência). Pela audição da peça e pela leitura do mapeamento, podemos constatar que o movimento sintagmático cromático descendente é reiterado dezesseis vezes, e é também modulado. Tais entidades entoativas degressivas são repetitivas e denotam asseveração, firmeza na afirmação do sujeito-enunciador. Em uma dimensão retórico-entoativa, esse procedimento cria um efeito de dizer verdadeiro, efeito de veridicção.

Além do mais, a ordem sintagmática teleológica descendente, no caso, não busca a explicação discursiva do “acontecimento” (o “bicho-de-sete-cabeças”) e não intenciona a “resolução” tensiva desse “acontecimento”. Antes, descreve o antiprograma narrativo no formato da recusa da manipulação: o sujeito-narrador não se permite deixar manipular pelo Outro (“você”), este que é descrito como um sem-dó-no-peito, um fazedor de bichos-de-sete- cabeças contra ele (sujeito), logo contra ele, um inocente que nada fez.

Nessa canção, pelas instâncias mais profundas do processo gerativo do sentido, apreendemos que seu plano melódico tem como matriz a forma lógico-semântica frígia, cujo intervalo característico é o de 2ª menor. Em “Bicho de sete cabeças”, as sequências musicais cromáticas, com vetores para baixo, podem ser interpretadas como tendo o efeito de sentido de sinuosidade, ininteligibilidade, tortuosidade e falta de clareza.