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Análise da canção “Béradêro”

“A coisa mais avançada que eu li até hoje como poesia, não foram os irmãos Campos, não foi James Joyce, não foi Maiakóvski, não foi Camus. Foi Zé Limeira! Não é a toa que ele é chamado „O poeta do absurdo‟. Um cara totalmente surrealista e, ao mesmo tempo, com base no real da caatinga, do sertão.” (CÉSAR, 2013, p. 33).

“Quando cheguei a São Paulo, um rapaz que estudava na PUC, semiótica e tal, escutou uma fita de demonstração minha que tinha „Béradêro‟ e outras coisas. Ele falou, „De quem é essa letra?‟. „Minha.‟ „Mas, não sei, tem uma coisa joyceana aqui.‟ „Pô, bicho, sei quem é, sei que existe, mas nunca li James Joyce‟, naquela época eu nunca tinha lido. Somente depois o procurei. „Não, mas é porque aqui tem… desconstrução.‟” (CÉSAR, 2013, p. 33).

“De onde venho há silêncio, pra preencher esse tipo de abismo os homens abóiam e as mulheres cantam benditos.” (CÉSAR, 2010).

“O que são os aboiares senão uma assimilação das zambas e dos hudas cantados pelos tropeiros árabes?” (MELLO, 1908, p. 97).

A peça literomusical “Béradêro”78 é a primeira faixa do álbum “Aos vivos” (1995), do cancionista, compositor, cantor, poeta e jornalista Chico César. Essa obra pertence ao gênero canção-aboio79. Considerando-se que nenhuma teoria se sustenta sem uma práxis e que o universo da significação seja mais uma prática do que um amontoado estável e cristalizado de teorias, fazemos agora uma escansão semiótica de uma canção modal que adota o modo mixolídio.

78

Béradêro: corruptela de “beiradeiro” (etimologicamente: beira+eiro). “1. roceiro. 2. homem interiorano, rústico, que habita nas mediações dos núcleos de moradias sertanejos. 3. habitante de beira de estrada de ferro; pequeno comerciante das margens das estradas de ferro. 4. habitantes das margens dos rios, esp. do Rio São Francisco [...].” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 273).

79

Aboio: “[...] um canto dolente e monótono, geralmente sem palavras, com que os vaqueiros guiam as boiadas ou chamam as reses [...]. 1. conduzir o gado entoando canto plangente ou soltando brados fortes e compassados. 2. cantar monotonamente para acalmar alguém.” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 12).

Os olhos tristes da fita

[1.1]

Seção [1]

Rodando no gravador Uma moça cosendo roupa

[1.2]

Com a linha do Equador E a voz da Santa dizendo

[1.3]

O que é que eu tô fazendo Cá em cima desse andor A tinta pinta o asfalto

[2.1]

Seção [2]

Enfeita a alma motorista É a cor na cor da cidade

[2.2]

Batom no lábio nortista O olhar vê tons tão sudestes

[2.3]

E o beijo que vós me nordestes Arranha céu da boca paulista Cadeiras elétricas da baiana

[3.1]

Seção [3]

Sentença que o turista cheire E os sem amor, os sem teto

[3.2]

Os sem paixão sem alqueire No peito dos sem peito uma seta

[3.3]

E a cigana analfabeta

Lendo a mão de Paulo Freire A contenteza do triste

[4.1]

Seção [4]

Tristezura do contente Vozes de faca cortando

[4.2]

Como o riso da serpente São sons de sins, não contudo

[4.3]

Pé quebrado verso mudo Grito no hospital da gente Iê iê iê, iê iê iê

Aboio

Iê iê Iê, iê iê iê

Catolé do Rocha [5.1] Seção [5] Praça de guerra Catolé do Rocha [5.2]

Onde o homem bode berra Bari bari bari

[6.1]

Seção [6]

Tem uma bala no meu corpo Bari bari bari

[6.2]

E não é bala de coco São sons, são sons de sins

Reiteração [4.3]

São sons, são sons de sins

São sons, são sons de sins

Não contudo

Pé quebrado, verso mudo

Em suas produções há diversificação, multiplicidade de estilos, gêneros e formas. O artista não se deixa rotular com quaisquer epítetos-significantes, como pop, cult, trovador-caatingueiro, erudito, forrozeiro, experimental, baladeiro. Ele é tudo isso, e não só.

A melopoética de Chico César parece estar parcial e permanentemente envolvida por uma outra lógica, indiferente aos preceitos dos discursos verbais e musicais formais. Some-se a isso sua relação lúdica com a palavra e com o som, o gosto pelo malabarismo linguístico-musical. O poeta quer a metáfora, o excelente linguístico. Ele desafia com ousadia o discurso letrado, e, ao mesmo tempo, consegue romper com a sisudez desse discurso.

Os significantes sonoros e verbais, nessa composição, causam alumbramento, inebriamento; são significantes especialmente afetantes. Por isso mesmo, o texto cancional “Béradêro”, um cas remarquable do uso do modo mixolídio se presta perfeitamente a uma análise de cunho tensivo.

Em seus poemas e letras de música, Chico César faz jogos semânticos com vocábulos: estes são transpostos, deslocados, condensados, desdobrados, redefinidos, sofrem, por fim, um sofisticado processo de transformação.

A linguagem em função estética, que caracteriza a letra de “Béradêro”80, apresenta os seguintes traços: relevância do plano da expressão, criação de conotações, desautomatização, plurissignificação. O modo de dizer é tão (ou mais) importante quanto o que se diz.

No que tange ao plano do conteúdo, o poeta lança mão de uma estratégia de construção de sentido: a pluriisotopia. O letrista singra uma rota através de várias isotopias díspares. Para exemplificar: “Os olhos tristes da fita / Rodando no gravador / Uma moça cosendo roupa / Com a linha do Equador”. Outro exemplo: “A tinta pinta o asfalto / Enfeita a alma motorista / É a cor na cor da cidade / Batom no lábio nortista”.

80

“Béradêro”, na parte principal, ou Parte A, apresenta quatro estrofes, cada estrofe de sete versos (septilhas), e cada verso com sete sílabas métricas (redondilhas maiores). Segue a parte B, composta por um refrão. São duas estrofes que têm cinco sílabas métricas (redondilhas menores). Eis, em suma, o esquema: a – b – c – b – d – d – b. O filólogo Celso Cunha (1985), em uma pequena recensão histórica, situa os versos pentassilábicos e heptassilábicos já na época trovadoresca. O verso de sete sílabas foi sempre o verso popular, por excelência, das literaturas de língua portuguesa e espanhola. Verso básico da poesia popular, desde os trovadores medievais aos modernos cancioneiros do Nordeste brasileiro, o heptassílabo nunca foi desprezado pelos poetas considerados eruditos. Mesclando características das estéticas medievais-renascentistas (na literatura, música, moda, nos ritos religiosos etc.) com as estéticas do Nordeste do Brasil, o teatrólogo paraibano Ariano Suassuna decidiu propor, com originalidade, que toda a arte que se deixa envolver pelo imaginário sertanejo seria uma arte “armorial”. Esclarece Costa (2007), que com o propósito de explorar a embricação entre a cultura popular e a cultura erudita, o “Movimento Armorial” se posiciona no sentido de ir buscar a primeira na cena nordestina típica (estereotipada), e a segunda naquela situada na cena medievo-renascentista europeia. Num exercício de contextualização, somos levados a considerar que a canção-aboio “Béradêro” seja plasmada pela estética do “Movimento Armorial”.

O sintagma elementar da sintaxe narrativa é complexo, ou seja, constituído por vários programas não-hierarquizados. Nesse caso, não se diferenciam programas narrativos principais (ou de base) dos programas secundários (ou de uso). Por outras palavras, o texto não organiza os acontecimentos e os actantes de forma que garanta o arco dramático, isto é, de sorte que as várias partes da narrativa (início, meio, fim) sejam formalmente reconhecíveis. Não há suspense, golpes de cena, final feliz ou infeliz. Dessa maneira, a peça desconstrói a sequência narrativa canônica greimasiana que define o sentido do andamento da ação: virtualização, atualização e realização.

A peça em análise concorre para a construção daquilo que a semiótica chama de desiconização: nela o poeta não assenta sobre a denegação de um universo figurativo referencial, mas, com engenho e apuro, promove uma desrealização desse universo. Catolé do Rocha (sertão da Paraíba), cidade natal do autor e o Leitmotiv da obra, é uma tela figurativa. Catolé é uma “tela do parecer” (GREIMAS, 2002) percebida e descrita pelo destinador por meio de um ethos contemplativo. Esta tela repleta de dados sensíveis é inconsistente do ponto de vista referencial por conta da articulação de incompatibilidades figurativas (são os “olhos” da fita que rodam no gravador, é a moça que cose roupa com a linha do Equador). Tais incongruências não se deixam resolver na dimensão temática, pois não há sema isotopante. Por isso, estes arranjos sintagmáticos inusitados findam por conferir ao texto uma espécie de

nonsense figurativo, a mesma falta de sentido já verificada no nível narrativo.

O estatuto do destinador da canção é transcendente, em oposição ao estatuto imanente do sujeito narrativo. O destinador transcendente não interpreta, não controla, não se investe do poder de persuasão, não manipula nem julga, parece até estar apartado das modalidades do querer e do poder. Tanto é assim que somente na seção [2.3], “E o beijo que vós me nordestes arranha céu da boca paulista”, o pronome reflexivo “me”, em tom passivo, promove uma debreagem enunciativa, enquanto todo o restante do texto opera com a debreagem enunciva.

Do ponto de vista temporal (dêixis temporal), acontecimentos eufóricos (portadores de valores emissivos) evoluem em concomitância com valores remissivos. Uns com os outros se misturam, se combinam. Todavia, pelo percurso gerativo do sentido, o sujeito enuncia, com prevalência, estado de disjunção em relação ao seu objeto-valor: S  O(o sertão: Catolé do Rocha). O beijo até arranha o céu da boca. Falta amor, paixão, teto e

“sins”, mas o corpo está baleado, o pé quebrado, o verso é mudo81

e soam gritos no “hospital da gente”.

A peça tem grande potencial imagético. Como nas narrativas pré-modernas medievais, representações de animais que se comportam como humanos (“riso da serpente”), e seres híbridos, metade homem metade animal (a imagem do “homem-bode”82) é gerada pelo encontro de duas isotopias figurativas que se distinguem. Em geral, o espaço em que habitam tais seres híbridos é diferente do território do homem comum civilizado. É como se eles só pudessem existir em outro reino: um pântano, uma gruta, um lago, o inferno, ou a região agreste, rude, quase anecúmena, do Nordeste brasileiro.

A narrativa cesariana, em “Béradêro”, evoca figuras do imaginário do sertão nordestino antigo (“santa”, “andor”, etc.) e também do sertão contemporâneo (“gravador”, “asfalto”, etc.). O texto discorre sobre o mundo dos afazeres usuais, rotineiros. São pequenas ações do cotidiano, atividades prosaicas que traduzem a estereotipada “sensaboria” da vida no sertão “catolaico” – termo cunhado pelo poeta-letrista na canção “A prosa impúrpura do Caicó” (1995), que nos remete a significantes como Catolé (do Rocha), católico e laico. Porém, qualquer acontecimento, por mais trivial que seja, constitui um bom motivo para o fusionamento do real com o fantástico, do sonho com a realidade, do sacro com o profano. Interessa à narrativa o domínio do surreal, do irreal, do onírico. O poeta vai e vem entre os mundos natural e sobrenatural. Ele termina por negar a materialidade da noção de espaço (dêixis espacial). Na letra da canção inexiste o tempo linear. A dêixis actancial se apresenta misturada. O efeito de sentido é o mundo contado pelo avesso.

De fato, os três procedimentos constitutivos da sintaxe discursiva (actorialização, espacialização e temporalização) são arranjados no texto “Béradêro” de maneira fora do comum: nele se misturam acontecimentos ordinários e extraordinários. O destinador, entregando-se a essa espécie de apreensão estética especial, participa, simultaneamente, de dois percursos narrativos, o mundo epifânico e outro, o cotidiano. O tratamento isotópico de toda a narrativa é farto de coordenadas visuais que oscilam entre figuras que não podem ser (ou acontecimentos que não podem ocorrer) até as imagens mais comezinhas. Não há, portanto, oposições paradigmáticas (ou...ou) entre os acontecimentos desses dois domínios. O autor epifaniza acontecimentos mundanos com figuras de linguagem; o texto é repleto de

81 Por extensão e deslocamento, o verso é também quebrado. Verso de pé quebrado “[...] é aquele em que a métrica e/ou o ritmo não são perfeitos, faltando ou sobrando sílabas, ou com a sílaba tônica fora do lugar [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1938).

82 Bode: “1. o macho da cabra; 2. cabrão; 3. indivíduo feio, repugnante; 4. homem libidinoso, lascivo [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 304).

metáforas e metonímias ousadas, impactantes, criativas e nada convencionais. Com isso, acontecimentos diários ganham a mesma cifra tensiva de acontecimentos que não se coadunam com a realidade e vice-versa. Num processo de equalização, os acontecimentos recebem o mesmo quantum tensivo, o que dá existência a uma espécie de tônus tensivo básico que perfaz toda a extensão da narrativa; todos os acontecimentos parecem ter a mesma densidade tensiva, mesma densidade simbólica no universo semântico criado pelo poeta.

Podemos pensar que as figuras da narrativa se enquadram no que Tatit (2010, p. 113) propõe chamar de práticas desvairadas,

[...] aquelas que conservam a autonomia das figuras parciais, até mesmo valorizando-as para que jamais se esvaziem de seus sentidos localizados nem se alinhem na constituição de um projeto geral [...]. Cada imagem traz sua própria carga semântica e não se dirige nem se integra a um sentido mais amplo, o que elimina também a possibilidade de servir de âncora poética às articulações externas do conteúdo.

Nas práticas desvairadas da letra de “Béradêro”, o que está em jogo é: embora seja impossível que isso aconteça, desta vez está acontecendo. O impossível se hipertrofia, não cessa de aumentar seu coeficiente tônico, é que o texto não tem mesmo qualquer compromisso inarredável com o aspecto da modalidade veridictória.

Ainda para Tatit (2010), o pensamento concessivo, ou estilo concessivo, está na base da adesão do destinador a crer no inacreditável. O destinador, nessa peça, crê naquilo que o encanta, mesmo que inacreditável, já que promove a conciliação do mundo englobado (absurdo, inverossímil) com o mundo englobante (ordinário, habitual, comum).

Em “Béradêro”, não há indícios de logicidade nas estruturas elementares da significação83, pois que o autor não recua dos contrários e das contradições. Além disso, os elementos, não são, necessariamente, complementares. Nesse sentido, as operações da significação não são, aqui, encaradas como lugar de “enformação” (ou mise en forme) dos conteúdos: os conteúdos da semântica (stricto sensu), se projetados sobre o quadrado semiótico, não são articuláveis em posições previsíveis, nem constituíveis em categorias. O poeta, dessa maneira, amplia as possibilidades que a “enformação” semântico-linguística instrumentalizada não pode antecipar, ou seja, ele abre amplamente o portão às artes do significado.

83 No corpus teórico da semântica, que “[...] o conceito de estrutura elementar só pode tornar-se operatório se submetido a uma interpretação e a uma formulação lógicas. É a tipologia das relações elementares (contradição, contrariedade, complementaridade) que abre caminho para novas gerações de termos interdefmidos” (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 85).

O autor investe na abertura de várias redes relacionais. As redes são múltiplas e se enleiam sem que nenhuma tenha prevalência sobre as outras. As figuras estão sempre prontas para absorverem novos significados e sentidos e se apresentam como intrigantes, embaraçosas e sedutoras pelo que elas próprias são e pelas cadeias em que podem ser inseridas.

O cancionista monta um processo de significação que não tem em mira qualquer ponto de objetivação final em forma reificada, funcionando, ao invés disso, de maneira livre e desabrida, através de muitas veredas. E continua incompleto e aberto... O significado só existe no instante mesmo da semiotização do texto e morre completamente com ela.

As ligações entre as isotopias sugerem estar a serviço de uma simultaneidade entre as diferentes linhas temático-figurativas. Trabalhamos com a hipótese de que o autor, compondo um estado de coisa correlato a um estado de alma, cria uma espessura semântica em que todos os planos isotópicos, em conjunto, orquestrados, encadeiam o efeito de sentido final da letra da canção: tocar a carne viva do sertão profundo contemporâneo.

A base morfológica de “Béradêro” é a repetição com variações; tais repetições das frases melódicas ocorrem com sutis modificações intervalares. Para confirmar essas afirmativas, apresentamos o mapeamento da letra/melodia (Figura 35) dessa canção:

Figura 35 – Mapeamento dos contornos letra/melodia de “Béradêro”

Sol Fá Mi Ré o - lhos fi dan va Dó tes do gra Si Os tris da ta Ro no dor Lá Sol Fá Mi Sol Fá Mi Ré Dó Si co dor

Lá sen rou qua

Sol Uma mo - ça do Com a li - nha do E

Sol Fá voz Mi da Ré E a San di Dó Si ta zen que eu Lá tô zen Sol do O que é fa Fá do Mi Sol Fá Mi Ré Dó Si ma Lá des dor Sol Cá em ci se an (ô) ... Fá Mi

Fonte: Elaborada pela autora.

A Parte A é ligada à Parte B (parte contrastante ou refrão) por uma ponte constituída pelo aboio propriamente dito: “iê, iê, iê...”, que são recursos vocais onomatopaicos. E, para dar sentido de coerência e equilíbrio à forma da peça, no final acontece a repetição de trecho da Parte A (reiterações frasais, tanto do plano melódico quanto do plano verbal), o que pode ser conferido no Quadro 12.

Quadro 12 – Forma de “Béradêro”

Forma A - B - A’

Parte A Parte B

(parte contrastante)

Parte A’

(repetição de trecho da Parte A)

Plano verbal Seções [1], [2], [3] e [4] ponte Seções [5] e [6] Reiteração da seção [4.3] Plano musical

Partes a‟, a‟‟, a‟‟‟ e a‟‟‟‟

ponte

Partes b e c

Repetição de trecho da parte a‟‟‟‟ Fonte: Elaborado pela autora.

Pela acepção da Gestalt, percebemos, então, que há uma solidez estrutural, um adensamento que garante o efeito de sentido de coesão do conjunto dessa canção.

“Béradêro” é composta para ser executada monofonicamente84

, à capela, “a palo seco”85. Sua melodia é tecida finamente com sons ordenados, depurados pelo autor.

A canção investe tensivamente no próprio contorno melódico, ampliando seu campo de tessitura, ampliando, também, as durações vocálicas (exemplo: “andor-(ô)”) e fazendo pequenas pausas entre as frases melódicas (tempo da cesura ou pausa). Assim, há tendência para amplos saltos intervalares e para a exploração da região aguda, onde as cordas vocais manifestam fisicamente a intensidade.

Na peça, o prolongamento das durações faz desacelerar o andamento, amplia o espaço de articulação das alturas melódicas rumo à região aguda da tessitura, atenua a pulsação rítmica e dilui a marcação do tempo forte.

No desenho melódico, o polo de tensividade das ascendências e das suspensões indica a continuidade do discurso, em oposição à terminatividade das descendências tonemáticas.

A Parte A da canção expressa grande investimento tensivo-emotivo. A valência “andamento” anuncia a opção por movimentos lentos, desapressados (mas nem tanto), e privilegia os alongamentos das vogais. É atuante aí, portanto, a figurativização passional.

Na Parte B, o andamento é mais avexado. Nela predomina o processo temático e a conjunção com o estado somático, em contraponto com a Parte A da canção.

Enquanto a canção tonal avança, a canção modal faz girar. Pará a semiótica, perceber esta característica determinante da essência do modalismo e do tonalismo é a pedra de toque que introduz um outro sentido tensivo das músicas e das canções86. “Béradêro”, assim como outras canções que adotam o sistema escalar modal (mixolídio), soa reiterativa, repetitiva, circulando em torno da nota finalis. Esta permanece constante enquanto a melodia

84 De forma esquemática, existem, basicamente, três maneiras de se “tecer” uma música: tessitura monofônica: constituída por uma única linha melodia, destituída de qualquer espécie de harmonia; tessitura polifônica: duas ou mais linhas melódicas entretecidas ao mesmo tempo (às vezes, também chamada de tessitura contrapontística); e tessitura homofônica: uma única melodia é ouvida contra um acompanhamento de acordes. Diferentemente, porém. Tatit (1997) emprega o termo “tessitura” para indicar a amplitude que os intervalos melódicos alcançam na notação do diagrama letra/melodia.

85

“Se diz a paio seco / o cante sem guitarra; o cante sem o cante; o cante sem mais nada; // Se diz a paio seco / a esse cante despido: / ao cante que se canta / sob o silêncio a pino. // O cante a paio seco / é o cante mais só: / é cantar num deserto / devassado de sol; / é o mesmo que cantar / num deserto sem sombra / em que só a voz dispõe / do que ela mesma ponha. / [...] O cante a pulo seco / não é um cante a esmo; / exige ser cantado / com todo o ser aberto; // é um cante que exige / o ser-se ao meio-dia / que é quando a sombra foge / e não medra a magia” (MELO NETO, 1994, p. 247-248).

86 Wisnik (1989), no ensaio “O som e o sentido: uma outra história das músicas”, discorre, com originalidade e pertinência, sobre tal traço diferenciador da música modal em relação à tonal (tudo a sugerir que Wisnik, instigado pelo título e pelo conteúdo do livro Seis lições sobre o som e o sentido do linguista russo Roman Jakobson (1977), intitulou o seu aludido ensaio).

gira. A canção-aboio em análise, por ter movimento no sentido giratório, não tem clímax, ápice. Assim seria a representação gráfica de seu sentido melódico (Figura 36):

Figura 36 – Sentido circular da entoação melódica de “Béradêro”

Fonte: Elaborada pela autora.

Em “Béradêro”, a sensação do tempo alentecido é dada pela afinação espiritual e corporal. Os acentos organizam o tempo, mas não o articulam. O metro é ordem, mas não medida; é que o tempo desta canção não é um conceito de quantidade, mas um fator de qualidade, relativo à disposição subjetiva do sujeito e isento de mediação racional por relógio ou metrônomo (tempo cronológico). Não há métrica87 definida, portanto não existe regularidade na pulsação. Não seria possível determinarmos o compasso88 da obra: ele é binário (2/4), ternário (3/4), quaternário (4/4)?

Isso significa a impossibilidade de se anotar com precisão, em partitura (enunciado), muitas indicações de entoação. Exemplo bem claro de que a competência do cancionista-intérprete é uma competência irredutível à simples execução (enunciação) do que está registrado por escrito pelo compositor.

O efeito de sentido da melodia mixolídia desse cântico profano, composta em torno de uma finalis fixa, constante, é uma espécie de “estaticidade movente” (WISNIK, 1989, p, 105). No plano verbal, é promovido o mesmo efeito de circularidade, de “estaticidade em movimento” constatado em sua melodia. “Béradêro” é um presente perpétuo; todo ele é