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Análise compreensiva: tirar o retrato sociologicamente falando

No documento O género como espartilho: moda e feminismo(s) (páginas 165-170)

CAPÍTULO III Como as metodologias vestem aqui os propósitos da investigação

3.5 Análise compreensiva: tirar o retrato sociologicamente falando

Dentro das técnicas qualitativas de análise da informação, a análise de dados documentais e a análise de conteúdo face às entrevistas e temáticas abordadas contribuem para os retratos sociológicos que propomos, onde revisitaremos também os ciclos da moda através da imprensa especializada, da história das mulheres e dos feminismos. O nosso critério de categorização é semântico, isto é, segundo categorias temáticas.

Qualquer análise de conteúdo passa pela análise da própria mensagem, afirma Laurence Bardin, e segundo ela a análise categorial de conteúdo funciona por operações de divisão do texto em unidades, em categorias segundo reagrupamentos analógicos. «O sistema de categorias não é fornecido, antes resulta da classificação analógica e progressiva dos elementos. Este é o procedimento por “acervo”. O título conceptual de cada categoria somente é definido no final da operação.»274

Para tal, elaborámos um conjunto de quatro temas que definem as categorias que servem o guião275 de entrevista e respectiva análise das respostas, para o que recorremos à parte mais qualitativa da análise de conteúdo.

A) Tipo de relação/ligação com a roupa de vestir no seu processo (social) de crescimento (infância/adolescência/adulta);

B) Ser/vestir feminino/masculino; Moda-vestuário: função do desempenho de género; afirmação de si: vestir-se é afirmar-se; questões da auto-imagem e das ‘normas’ do vestuário;

C) Questões do olhar (construído) e a ‘representação de si’: o dispositivo da moda;

274

Bardin, op cit 147.

275

Anexo I. As três entrevistas exploratórias no anexo III, e os retratos-entrevista, conferência-entrevista, e sínteses narrativas no anexo IV.

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D) Peças de vestuário ‘memoráveis’ ou que ficaram na memória – sentimentos despertados por uma peça de roupa do passado (da família/ da história da moda). A relação quotidiana com a roupa. Valorização da roupa e consumo.

Há que utilizar a singularidade individual para alcançar o social – e como fazê-lo? Seguimos as três fases indicadas por Bardin: a pré-análise de todo o material, que implica a organização e selecção do corpus que vai ser submetido à análise; a exploração do material, que consiste na escolha das unidades de contexto, e das categorias; e a inferência, a interpretação dos resultados obtidos no sentido de salientar novas dimensões teóricas ou descobertas inesperadas

A entrevista permitiu-nos ouvir os relatos das memórias pessoais, e o processo não é apenas feito num sentido. As vozes das mulheres relatam, cada uma por si, uma experiência social, e ao mesmo tempo individual, e é através desta história oral que conseguimos entrar em aspectos que, de outra forma, nos seria difícil captar: a ‘genderização’ do gosto, e a ‘naturalização’ do corpo da mulher como objecto do olhar na fotografia e na arte, e o peso das técnicas visuais de comunicação (fotografia, televisão, internet, cinema).

Procurar as questões da identidade no olhar do outro ajuda-nos a definir a identidade do ser humano, e a problematizar o peso do olhar, avaliando-se aqui a imagem como algo que é um fardo. Como é que o corpo das mulheres é mediatizado desde o século passado? A moda-vestuário tem sido historicamente trabalhada ao longo das linhas de género e da sexualidade, mas também do social, da classe, e da identidade. A construção da identidade feminina recorrendo a uma linguagem mais gráfica, afastando-se ou não de uma linguagem plástica e da figuração do corpo, as estratégias de visualização do corpo, a violência no olhar, os mecanismos de reprodução da violência contra as mulheres, incluindo a produção de uma cultura de tolerância da violência (contra as mulheres) constituem neste estudo linhas de reflexão que vão no

153 sentido do conhecimento científico. Esta violência assenta também num olhar construído a partir de uma identidade social masculina, questionando-se aqui uma ligação estreita entre a violência contra as mulheres e a construção social das masculinidades.276

Vamos levantar a cortina e à moda de Goffman, fazer a apresentação de si e do

comportamento em lugares públicos.277 E, assim, ao reexaminar a sociedade e a expressão da individualidade a falar por si própria no contexto da acção e da socialização, lançamos luz sobre a reflexividade que permite aos indíviduos pensarem conscientemente sobre si mesmos, e tendo por referência as (suas) circunstâncias sociais.

Fig.20 - Ilustração Portuguesa, 9.5.1910

Volto agora à primeira questão de partida por nós formulada: em que circunstância social o género funciona como um espartilho? Para propor respostas, procurámos os vários «eus» sociais que ocorrem no interface da estrutura e agência.

276 Suzanne Hatty, Masculinities, violence and culture (Sage series on violence against women, 2000). 277

Erving Goffman, 1993. A apresentação do eu na vida de todos os dias (Lisboa: Relógio d’Água). Edição original: The Presentation of Self in Everyday Life, 1959. Erving Goffman, 1963. Behavior in Public Places, Notes on the Social Organization of Gatherings (Nova Iorque: Free Press).

154 «The account of how structures influence agents (...) is entirely dependent upon the proposition that our human powers of reflexivity have causal efficacy – towards ourselves, our society and relations between them.»278

Na abordagem que Margaret Archer faz aos modos de reflexividade quando investiga as conversas interiores (internal conversations) a socióloga procura manter a vida privada do sujeito social e defender a reflexividade subjectiva como um poder pessoal. «Each mode of reflexivity is a distinctive way of deliberating about oneself in relation to one’s society.»279 Também aqui nos interessa este argumento, no que toca à discussão acerca dos modos de vestir, da socialização dos mesmos, da capacidade e da afirmação de uma linguagem pensada no privado, para desempenho e representação de si no público.

278

Margaret Archer, 2003. Structure, Agency and Internal Conversation (Cambridge: Cambridge University Press), 9.

279

155 Clothes have, as they say, more important offices than merely to keep us warm. They change our view of the world and the world's view of us.

Um chapéu bonito num salão de chá – como a moda reanima o olhar! E as velhas incrustradas como conchas, faces de rouge, enfeitadas, cadavéricas, no salão de chá. A criada de algodão enxadrezado.

Virginia Woolf280

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As citações em epígrafe pertencem à escritora Virginia Woolf. A primeira é retirada de Orlando (1928). Selected Works of Virginia Woolf (Londres: Wordsworth Editions, 2005); a segunda encontra-se no Diário Segundo Volume 1927-1941, «Sábado 8 de Março 1941», Bertrand Editora, 1987 [1977, 1978].

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No documento O género como espartilho: moda e feminismo(s) (páginas 165-170)

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