• Nenhum resultado encontrado

As entrevistas-retratos: herstory, ou a biografia através do sistema da moda

No documento O género como espartilho: moda e feminismo(s) (páginas 149-153)

CAPÍTULO III Como as metodologias vestem aqui os propósitos da investigação

3.3 As entrevistas-retratos: herstory, ou a biografia através do sistema da moda

De entre as entrevistas realizadas, algumas, pela sua importância sociológica para o objecto de estudo, transformaram-se em estudos de caso.

Os estudos de caso aplicam-se quando queremos tratar os fenómenos contemporâneos, situados sobre um contexto real da vida actual. Já que abraçámos a categoria «mulheres», fizémos delas/com elas o nosso estudo e elaborámos um primeiro mapa de convidadas a serem entrevistadas. No decorrer da entrevista, foi proposto a cada mulher que cedesse fotografias do seu espólio pessoal, uma por década, da sua adolescência ao presente. Posteriormente, haveriam de enviar por correio electrónico ou EM (em mãos) os ‘retratos’ a solo ou em grupo, que, através das metodologias visuais de interpretação da cultura material, imagem incluída, ajudaram a dialogar com cada década.

Entre os primeiros critérios de selecção das mulheres a entrevistar: a facilidade de acesso, com vista a uma disponibilidade real para, em primeiro lugar serem mais que nossas informadoras, participantes do nosso estudo, e nessa qualidade falarem e reflectirem sobre os principais temas à luz dos seus quotidianos, das suas socializações familiares e de grupo, e partilharem assim as suas experiências sobre aquilo que a nossa vida tem de mais privado e público ao mesmo tempo: o vestir.

Que lugar ocupa o vestuário nas nossas vidas? Seguindo o conceito moda-vestuário de Roland Barthes, a conversa com cada uma (de)correu entre uma a duas horas, numa ou em duas partes, em Lisboa, fosse casa ou ao ar livre. Em qualquer dos casos, como salienta Robert Stake, o/a investigador/a qualitativo/a «enfantiza os episódios

136 significativos, a sequencialidade dos acontecimentos em contexto, a totalidade do indíviduo.»248

Interessava-nos mobilizar vários estudos de caso ao mesmo tempo e nesse sentido começámos por três entrevistas de natureza exploratória, aberta e semi-directiva, de carácter biográfico. Foram elas três a artista Maria Keil249, a pedagoga Maria Ivone Leal250 e a investigadora Clara Queiroz251.

Com cada uma das entrevistadas, quisémos reflectir sobre essa construção do vestuário «feminino» e sobre a construção do olhar sobre o corpo das mulheres, bem como sobre o que as predispõe a utilizarem/estruturarem a moda-vestuário como discurso com fins de capacitação social. Viémos a construir com o material recolhido um retrato de cada uma delas que reflecte não só a sua história (herstory), como traça a história de uma geração de mulheres.

O sistema relativo ao vestuário é regional/local ou internacional/global, nunca nacional, diz-nos Roland Barthes. Nesse sentido, quisemos ter participantes não só nacionais, como europeias, de passagem ou em permanência na capital, para melhor podermos caracterizar a actriz social ou a mulher plural que habita não só Lisboa, como outros ‘palcos’ urbanos.

248

Robert E. Stake, «A Arte da Investigação com Estudos de Caso» (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012), 12.

249

Maria Keil foi entrevistada no Outono de 2011, na Residência Faria Mantero (Santa Casa da Misericóridia), onde a artista morava, e viria a falecer no ano seguinte.

250

Maria Ivone Leal (n.Évora, 1924) foi entrevistada na Primavera de 2011 na sua residência pessoal, na Avenida Infante Santo, em Lisboa, onde faleceu em Junho de 2013.

251

Clara Queiroz foi professora catedrática (Genética), é co-organizadora de «Ciência e Género Quatro Textos de Quatro Mulheres», com Teresa Levy, editado por Cadernos de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, em 2005. É autora de vários estudos sobre história das mulheres, sendo o mais recentemente publicado «Quem tem medo de Frankestein?, Viagem ao Mundo de Mary Shelley» (Lisboa: Guerra e Paz, 2014).

137 Sujeitos da moda e do(s) feminismo(s), as mulheres são o que ousarem ser, nos fragmentos temporais que transportam com elas e que são reveladores de mudanças e permanências no sentido do domínio/afirmação e/ou clausura do (seu) corpo vestido, bem como de uma acção/reivindicação. Os diálogos (im)possíveis entre a história da moda e a história dos feminismos levaram-nos numa pesquisa através do tempo na imprensa, da linguagem da moda e do corpo.

Durante muito tempo – e ainda actualmente – as mulheres estão associadas à confecção de roupas. Desde a preparação da matéria-prima (ou do material cru), fiação, por exemplo, até à costura e arranjo de vestuário em casa, à manufactura das peças de roupa esteve durante séculos nas mãos das mulheres. Foi assim criado um mundo de sentidos que, ulteriormente, transmite a sua história.

Para além de estarem associadas à confecção das roupas, aos têxteis e ao consumo, ao mesmo tempo existiu também uma associação metafórica entre ‘feminilidade’ e a própria ideia da moda. Segundo Jennifer Jones252, que estuda o género e o consumo numa perspectiva histórica, interessando-se por história social e cultural do século XVIII em França, as mulheres foram associadas com inconstância e mudança, características que também descrevem a moda.

O sistema da moda tem um calendário, que existe para que tudo se repita, nos ciclos de produção e reprodução de colecções de roupa, mas também de estereótipos de género (a ilusão de mudança será ilusão de género?).

A moda ajudou na emancipação/libertação (do corpo) das mulheres (um fenómeno localizado em determinados momentos da história da moda), como aconteceu com a libertação do espartilho nos anos 20, o «flower power» dos 60 e a cultura hippie, e depois com o pronto-a-vestir que veio democratizar a moda. O fenómeno social da

252

Jennifer Jones screveu sobre moda e cultura no antigo regime em França, e trabalha actualmente num livro sobre género, Iluminismo, e sociabilidade urbana, centrado em Therese Levasseur, a amante de Jean-Jacques Rousseau.

138 moda enquanto mínimo denominador comum da vida em sociedade é gerador de um sentimento colectivo que traduz a singeleza do que é ‘estar em grupo’, ‘pertencer a uma geração’, e ao mesmo tempo, assumir a sua ‘individualidade’ através da ‘diferença’. Seguimos aqui Bernard Lahire e a sua sociologia à escala individual:

«Estudar o social individualizado, ou seja, o social refractado num corpo individual que tem a particularidade de atravessar instituições, grupos, campos de forças e de lutas ou cenas diferentes, é estudar a realidade social na sua forma incorporada, interiorizada. Como é que a realidade exterior, mais ou menos heterogénea, se faz corpo? Como é que as experiências socializadoras múltiplas podem (co)habitar (n)o mesmo corpo? Como é que tais experiências se instalam de modo mais ou menos duradouro em cada corpo e como é que elas intervêm nos diferentes momentos da vida social ou da biografia de um indivíduo?»253

Cada nova geração tem de aprender os modelos da sociedade em que irá viver, pois esses modelos (culturais) apresentam a característica essencial de não estarem inscritos à nascença no organismo biológico do ser humano, não sendo transmitidos hereditariamente de uma geração a outra.

A roupa como um aspecto da cultura é uma característica crucial na produção de masculinidade(s) e feminilidade(s), transformando a natureza em cultura e dando sentidos culturais ao corpo. Não há relação natural entre um item de roupa, ‘feminilidade’ e ‘masculinidade’, mas existe um conjunto arbitrário de associações que são culturalmente específicas: feminilidade é servida pelos decotes, saias, cintura marcada/espartilhada, delicadeza dos tecidos; a masculinidade usa calças, gravatas,

253

Bernard Lahire, «Patrimónios Individuais de Disposições, Para uma Sociologia à Escala Individual», Sociologia, Problemas e Práticas nº49 (2005), 14.

139 tecidos mais pesados, ombros marcados e largos, roupa de ar livre.254 Contudo, a forma como o vestuário conota a feminilidade ou a masculinidade varia de cultura para cultura. Enquanto as distinções de género produzidas pela roupa são arbitrárias, elas tornam-se fundamentais para a nossa leitura ‘senso comum’ dos corpos. Neste ponto, a moda também transforma a cultura em natureza, isto é, naturaliza a nossa cultura. Nas mulheres, a moda e vestuário têm sido historicamente reguladas ao longo das linhas de género e sexualidade, mas também das linhas do social, da classe, e da distinção.

As entrevistas permitem desenhar o retrato de mulheres, mães e filhas, ou avós, e o retrato de mulheres que designámos a solo, seguindo o tema proposto por Jean- Claude Kaufmann, no seu inquérito sobre a vida a solo255, ou seja, mulheres a uma só voz, cuja entrevista individual (como a maior parte das entrevistas realizadas, com excepção das entrevistas de grupo) e participação não esteve ligada por relação familiar a nenhuma outra entrevistada. Seguem-se as características gerais das participantes e os quadros de duas e de três gerações de mulheres entrevistadas.

No documento O género como espartilho: moda e feminismo(s) (páginas 149-153)

Documentos relacionados