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CAPÍTULO III Como as metodologias vestem aqui os propósitos da investigação

3.2. Construção do campo de observação

3.2.1 Quem? onde? quando?

Como observar empiricamente em Portugal as práticas do vestir e os ‘discursos’ sem palavras? A nossa proposta é revisitar a moda através da história das

mulheres, e dos feminismos, desde o presente, até ao tempo em que ainda se usava o espartilho.232 Como? Começando pelas trajectórias de vida e por uma forma autobiográfica de viver o vestuário, através das dimensões da memória, do grupo familiar e societal. Propusémos uma entrevista a cada uma das 41 participantes no estudo que vai percorrer e teorizar ‘o pessoal’ por meio da experiência do vestuário e da apresentação de si, perscrutando o que há de ‘político’ na representação de si ou auto- representação.

Os temas gerais que nos propusémos estudar através destas participantes são: a memória das roupas que (se) vestem, de acordo com ‘as idades da vida’, e o seu registo para a história de vida, através da fotografia; a linguagem do ‘corpo feminino’ através do tempo e na imprensa. No fundo, trata-se de avaliar a libertação do corpo, durante o Estado Novo e pós-1974 até aos dias de hoje.

Para um modelo de análise sociológica da moda, apoiada nos estudos de género e da cultura visual, situamos as outras temáticas, que, ponto por ponto, desenhamos a seguir: a libertação do corpo relativamente ao espartilho; as principais peças de

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126 vestuário e as partes do corpo em destaque; a influência da moda nas diferentes gerações de mulheres.

Para tal queremos fazer uma releitura dos ciclos da moda segundo intervalos temporais, de modo a comparar alguns momentos/factos na história das mulheres e dos seus quotidianos, procurando os diálogos possíveis à volta do poder performativo da roupa e do poder performativo do género. O nosso olhar sobre os dois temas em contexto teórico, moda e identidade, com uma perspectiva de género, teve subjacente eixos de problematização à volta do corpo, do privado/público (no que isso implica também as peças de roupa interior, como o espartilho, e do vestuário exterior) e dos processos de formalização de discursos sobre as diferentes formas de viver a moda- vestuário consoante os tempos e as estratégias de afirmação através do acto de vestir.

As técnicas de recolha de dados estão inseridas em meios mais universais de abordagem do real, a que De Bruyne et al. chamam de modos de investigação, identificados com cinco modos principais: o estudo de casos, a comparação ou o estudo multicasos, a experimentação no campo ou em laboratório e a simulação de modelos.233

Através das técnicas de recolha de informação - a entrevista, a observação (e a observação-participante, aliada à entrevista), o trabalho de campo, e a análise documental - que situações observar? Para o recuo temporal necessário, e para a observação das fontes de imprensa em Portugal, realizámos um levantamento de artigos, ilustração, desenho e fotografia, em notícias, publicidade e páginas de moda, década a década, de modo a situar as unidades conceptuais definidas à partida nesta tese: vestuário, corpo, mulheres, género, identidade, emancipação, feminismo(s), igualdade e desigualdade de género, inscrição, retrato, estereótipo, representação de género. Outras categorias: feminilidades, masculinidades, dominação, submissão, conformismo, rebeldia, idade, liberdade, opressão, afirmação, poder, contestação, sedução, valorização (da roupa).

127 Durante a observação da moda produzida em Portugal234 reuni relatos de impressões pessoais, biografias, interacções e observações no terreno, o que deu origem a um imenso campo de reflexão sobre o fenómeno da moda. Logo desde o início deste projecto de investigação foi útil fazer uma distinção entre, por um lado, o campo da criação (de moda, observável através do campo jornalístico) e, por outro lado, o campo do consumo (dimensão por que optámos).

O método de entrevista, útil e essencial para análise dos sistemas de valores associados aqui à roupa de vestir, aos processos de socialização, representações, e reconstituição de realidades passadas materiais, levou a investigação num primeiro momento para uma fase de entrevistas exploratórias (3), de formato aberto, com abordagem à história de vida e à biografia de cada uma das participantes, numa duração entre os 60 e 120 minutos. Estes retratos biográficos podem ser lidos nos anexos, juntamente com outros, esses sim já elaborados através de um guião de entrevista semi-estruturada, cujo teste foi feito antes da aplicação a um total de 41 mulheres, todas a viver na capital no momento da entrevista, todas europeias, portuguesas na sua maior parte. Baseámos a investigação em três gerações de mulheres, que são elas próprias retratos de diferentes estilos, culturas e individualidades patentes em cada uma das gerações.

Como seleccionámos os casos? Uma vez interessada em recolher informação contextualizada, havia que optar pela perspectiva biográfica. De fácil acesso, tal como sugere Robert Stake235, e de modo a que possam servir de informantes privilegiadas, as participantes situam-se em várias classes etárias, de modo a abranger um arco temporal generoso: dos 12 aos 29 anos, geração da democracia, do euro, e do hiperconsumo; dos 30-45 anos, as primeiras, a terem - no Ocidente, em meio urbano - pai e mãe a trabalhar

234 Nos anos de 1988 a 2004. 235

Robert E. Stake, A Arte da Investigação com Estudos de Caso, 3ªedição (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012).

128 fora de casa, viveram a juventude no período da recessão, crise do petróleo, Guerra Fria, e, em Portugal, assistiram ao 25 de Abril de 1974; dos 45 anos aos 80 e mais, inclui a primeira geração de mulheres a conseguir autonomia através do trabalho, e a geração

baby-boomers (nascida após a Segunda Guerra Mundial).

Todas elas viviam à altura da entrevista em Lisboa236, mesmo as de nacionalidade estrangeira. Foram escolhidas não só pelo leque de idades proporcionado, mas por reunirem características motivadoras do seu interesse pela moda-vestuário, que inspiraram a recolha das suas biografias e histórias de vida. Na fronteira entre o método biográfico e o método etnográfico, propusémo-nos recolher os seus quotidianos quanto à memória da roupa que vestem, e à experiência socializadora daí advinda através da família, do grupo de pares/amigos e sub-culturas de influência, quando isso se verificou. As entrevistas foram completadas com recolha dos materiais visuais junto das participantes no estudo, o que permitiu fazer a abordagem etnográfica, com recurso aos contextos quotidianos, quer segundo relato oral, quer segundo fontes pessoais, documentais ou outras. As fotografias que retratam as mulheres (entrevistadas) nas suas roupas, desde a adolescência à actualidade, vieram assim enriquecer as entrevistas e alimentar um diário de bordo, para o qual contribuíram tanto o texto como a imagem.237

Graças a um método etnográfico de observação recuperamos histórias dos hábitos de vestir e, por extensão, da moda em Portugal desde 1926, ano do golpe militar que deu origem ao Estado Novo, até ao golpe militar de 25 de Abril que devolveu a liberdade e instaurou a democracia na sociedade portuguesa em 1974. Daí, até ao «presente» dilatado, criámos assim um arquivo de história oral, com entrevistas gravadas em audio às participantes nascidas no período abrangido: 1926-2000. Na nossa metodologia, demos ainda especial relevo a uma noção a explorar, de conhecimento

236

Lisboa, 20012-13.

237

Maria Adriana da Costa Baptista, Interacções texto/imagem - O caso particular da legenda de fotografia (Lisboa: FCG, 209).

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habitado. Forma de conhecimento do mundo, o método biográfico permitiu uma

abordagem às 41 histórias pessoais, através de narrativas também visuais.

A nossa única condicionante à selecção dos casos foi o interesse que as mulheres convidadas a participar demonstraram pela entrevista e pelo projecto. Essa selecção dependeu inicialmente de uma rede de conhecimentos, de fácil acesso, entre nós e participantes, e entre si, nalguns dos casos, já que contactámos com mães e filhas; por vezes, amigas de umas levaram-nos a outras.

De forma a abranger mais do que uma geração relativamente ao fenómeno estudado, optámos então por uma entrevista semi-estruturada, o que nos permitiu construir um conjunto de perguntas direccionadas para os nossos temas, mas com alguma abertura para dar às entrevistadas a oportunidade de exprimir a sua subjectividade. Para cada entrevistada, construiu-se uma ficha de registo das características sociográficas da convidada, e também do contexto da entrevista, incluindo os três momentos de observação-participante:

1) pesquisa de fontes de imprensa relacionadas, seja nas bibliotecas ou centros de documentação;

2) recolha de documentos visuais, de imprensa e, por vezes, materiais têxteis nos espólios pessoais das participantes no estudo;

3) (auto)etnografia.

As entrevistas semi-estruturadas foram feitas em suporte audio às 41 mulheres residentes na área da grande Lisboa (2012/13), todas elas nascidas nas fronteiras temporais em análise, incluindo duas mulheres italianas (mãe e filha), uma polaca, uma francesa, e uma espanhola. Ao objecto de investigação, juntamos uma agenda (de investigação) que vai valorizar a relação entre agentes sociais, através da ausência de protocolos e com acesso a redes de familiaridade/sororidade e a suportes de

130 investigação que vão para além do som técnico e fazem pontes para outros campos (visuais).

Começámos as entrevistas em Julho de 2012, após o teste do guião de acordo com uma metodologia de história de vida. Elas foram marcadas, realizadas e sequencialmente transcritas para suporte informático (computador). Foram solicitadas fotografias e por vezes deu-se o registo fotográfico de peças têxteis que acompanharam os encontros. Todas as participantes foram escolhidas pessoalmente, o que quer isto dizer que as conhecíamos quase todas. Das 42 convidadas a participar, apenas uma declinou o convite para ser entrevistada. De origens sociais, geográficas e culturais diversas, ligava-as quatro pontos fundamentais: 1. viverem na capital (área da grande Lisboa, zona centro, cosmopolita e de moda); 2. aceitarem colaborar com o nosso estudo de uma forma não-anónima, fornecendo fotografias, dando assim visibilidade à sua história e relato pessoal de vida; 3. terem entre si laços familiares, na maior parte dos casos; 4. quererem debater os temas do estudo.238 O acesso às fotografias não foi difícil na maior parte dos casos. Entre o álbum de fotografias e as fotografias tiradas com o telemóvel como notas visuais de campo, o acervo geral deste estudo foi constituído segundo vários suportes de imagem (papel e digital).

Após o levantamento de fontes de imprensa, artigos, fotografias, de fontes literárias e científicas e de filmografia, a recolha de factos/momentos na história da moda desde 1926 levou a investigação a seleccionar ocorrências que revelassem mudanças no sentido da dominação simbólica, da clausura ou da afirmação do corpo, e por via desta uma qualquer acção/reivindicação feminista. Graças a um método auto- etnográfico de observação recuperam-se episódios da moda vivida em Portugal desde o Estado Novo, ao pós 1974 e num ‘presente’ dilatado.

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Clare Lomas, «O uso e o valor da história oral» (tradução da autora), in Pamela Church Gibson, Stella Bruzzi, Fashion cultures (Nova Iorque: Routledge, 2000), 363.

131 Os testemunhos orais sobre o vestuário e os têxteis fornecem-nos uma visão sobre os quotidianos pessoais, singulares, e de geração, iluminando a experiência comum segundo Paul Thompson239, que é muitas vezes esquecida nos livros de história da moda e dos têxteis que deixam o/a consumidor/a fora do quadro.

A vida das mulheres era tão restrita como as suas roupas, e Jacqueline Winspear fala-nos disso no artigo «The tragic, heroic women of World War I»:

«A young woman in pre-World War I Britain would likely expect her life to follow that of her mother and grandmother. Depending on her “station” in life, she might work in a factory, in domestic service, a shop, or in an office. If she were from the middle or upper classes, she would remain at home until marriage, hopefully before the age of 21. Women’s lives were as restricted as their clothing (…)».240

O consumo de moda-vestuário pelas mulheres é relatado através de narrativas pessoais, histórias de vida, experiências individuais. Três entrevistas exploratórias de pendor biográfico antecederam a identificação do grupo de mulheres entrevistadas, cujas anos de nascimento se situam entre 1926 e 2000. Especificamente, interessava abordar um período que começa nos anos de 1920, com o fim do uso do espartilho, que é rapidamente substituído por outros dispositivos de controlo e dominação do corpo da(s) mulher(es), perseguindo e prosseguindo por todo o Estado Novo, desde o tempo do cabelo (curto) à joãozinho, às calças, à mini-saia, à democratização da moda através do pronto a vestir.

239

Paul Thompson, The Voice of the Past, Oral History (Oxford: Oxford University Press, 1978).

240

The daily beast (Consulta a 30.07.14) http://www.thedailybeast.com/articles/2014/06/29/the-tragic- heroic-women-of-world-war-i.html

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No documento O género como espartilho: moda e feminismo(s) (páginas 139-146)

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