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3. Procedimentos de pesquisa

3.2. Análise das informações

No tratamento dos dados da pesquisa, para analisarmos a relação entre

sociabilidades e mercado, procuramos articular os conceitos e as teorias desenvolvidos

por Simmel, em especial, o conceito de sociabilidade e as análises sobre o moderno

estilo de vida urbano, com as interpretações e contribuições teóricas de Featherstone e

Canclini voltadas para as formas de produção e recepção das práticas culturais na contemporaneidade. A aproximação entre estes autores se coloca em termos da possibilidade de analisar, de um lado, com Canclini e Featherstone, a política em termos de proteção e preservação do patrimônio histórico administrada pelo Estado, buscando na arte e na cultura um tipo de crédito simbólico ao aparecer como representantes da história nacional, e as empresas como voltadas para o lucro através da cultura de ponta, renovadora, uma imagem não interessada de sua expansão econômica. Ou seja, a socialização ou democratização da cultura realizada pelas instituições culturais - em posse quase sempre de empresas privadas ou dos poderes públicos - gerando espaços de confronto entre a lógica sócio-econômica do crescimento do mercado e a lógica voluntarista do culturalismo político.

Após o acompanhamento dessas transformações estruturais, buscamos averiguar se, apesar de ser essa a dinâmica da expansão e segmentação do mercado, os diversos agentes sociais e culturais – usuários, produtores de cultura e moradores das áreas cujo patrimônio cultural passou por revalorização nos últimos anos – redimensionam suas práticas e seus relatos ante tais contradições ou como imaginam que poderiam fazê-lo. Trabalhamos, portanto, as experiências e interações sociais que se constroem, hoje, a partir de ações que se voltam para divulgar e socializar a cultura, revalorizar a arte popular e estimular a participação em associações comunitárias e organizações não-governamentais. Procuramos analisar os relatos e as ações explicitando o paradoxo entre a lógica da sociabilidade e a do mercado, dando atenção simultânea às referências e práticas de lazer e cultura nas quais as ações de estar juntos e compartilhar espaços e sentimentos comuns propiciam uma identificação, de um lado, dos setores sociais médios e, de outro lado, da população pobre, de baixa renda que circula no centro histórico em foco.

Procuramos, nesse sentido, construir um percurso de análise, identificando inicialmente, as diferentes formas e conteúdos das interações sociais que se desenvolveram ou se fortaleceram nos espaços do centro histórico da cidade de João Pessoa nos últimos anos do século XX e início do século XXI. Com relação aos

conteúdos referimo-nos, sobretudo, aos interesses e conflitos que mantêm unidos os

indivíduos e grupos em seus elementos de modo permanente ou passageiro. Quanto às

formas de interação social, analisamos os modos como os indivíduos se agrupam em

unidades que satisfazem seus interesses ou, simplesmente, o sentimento de compartilhar com outros, de fazer sociedade. Esse esforço se fundamenta numa visão

metodológica30 que busca os fios que levam da superfície à profundidade. Como esclarece Simmel:

“Consiste em abstrair a forma de sociação dos estados concretos, dos interesses, dos sentimentos que constituem seu conteúdo. Nem a fome, nem o amor, nem o trabalho, nem a religiosidade, nem a técnica, nem os produtos intelectuais são, por si mesmos, de natureza social: contudo, é o próprio fato da sociação que dá a todas essas coisas a sua realidade” (1983:57).

Desse modo, optamos por conduzir uma interpretação das informações em dois níveis: o primeiro é o campo dos acontecimentos históricos. Estabelecido na fase exploratória da investigação, trata-se do contexto sócio-histórico e cultural que constitui o marco teórico fundamental para a análise do confronto entre a lógica sócio- econômica do crescimento do mercado e a lógica voluntarista do culturalismo político. No segundo, de caráter interpretativo, consideramos a análise interna dos relatos dos agentes envolvidos durante as entrevistas abertas individuais e as reuniões da Acehrvo, observando referências a comportamentos, sentimentos de solidariedade, prazer,

30 Observamos uma aproximação, nesse aspecto, com a linha de pensamento da hermenêutica de Dilthey

(1989) e Gadamer (1998) no sentido de que Simmel não reconhece a história como ciência natural, causal. O conhecimento objetivo é o fato histórico, mas este, diferentemente do fato da ciência natural, encontra-se no passado e não pode ser diretamente observável. Este fato terá que ser reconstituído pelo historiador diante dos documentos e dos outros elementos auxiliares (Simmel, 1983:15-16). Além disto, Simmel afirma que, para que a seleção dos fatos históricos não se torne arbitrária e meramente subjetiva, deve-se recorrer à idéia de “umbral da consciência histórica” (1983:17). Parece haver essa mesma visão na crítica de Gadamer à busca de objetividade das ciências humanas, em especial, a visão de Dilthey relativa à legitimidade das ciências humanas requererem sua fundamentação metodológica. Gadamer descreve a tensão no trabalho de Dilthey como algo entre a filosofia da vida (Lebensphilosofie) e o objetivismo cartesiano. Esta discussão está centrada nos conceitos de experiência e de compreensão. A hermenêutica, como Gadamer a concebe, não deve ser vista como um discurso sobre os métodos de compreensão “objetiva”. Ela não busca mais formular um conjunto de regras interpretativas. Ao referir- se às suas análises como “hermenêutica filosófica”, Gadamer volta-se para as questões das condições de possibilidade da compreensão em geral, condições que em sua visão solapam a fé nas idéias de ambos: método e objetividade. As abordagens metodológicas para ambos os fenômenos (naturais e humanos) são enraizadas na história. A compreensão é, a partir daí, enraizada em preconceitos e o modo no qual nós entendemos é amplamente condicionado pelo passado e pelo que Gadamer chama de “história efetiva”, próxima da idéia de “umbral da consciência histórica” de Simmel. Esta influência do passado alcança nossa compreensão estética, nossa própria compreensão social e psicológica e todas as formas de compreensão científica. A objetividade de nosso conhecimento é, portanto, significativamente encoberta por sua dependência da tradição - uma linguagem transmitida na qual vivemos -, e esta dependência o método não pode, de maneira nenhuma, transcender (Gadamer, Verdade e Método,

aversão, competição etc., bem como aos interesses e objetivos relativos às áreas revitalizadas do centro histórico de João Pessoa.

Em relação às interações sociais, trabalhamos com a análise dos relatos dos moradores, comerciantes e usuários das áreas revitalizadas do centro histórico e dos alunos da Oficina-Escola de Revitalização do Patrimônio Cultural de João Pessoa, verificando os sentimentos, interesses e objetivos que possibilitam as interações e os conflitos sociais nesses espaços. Neste sentido, a análise perpassa a descrição do conteúdo lingüístico dos textos, a interpretação das relações entre esses conteúdos e o contexto de elaboração dos mesmos, bem como a interpretação destes processos, relacionando-os com os processos sociais e político-culturais.

Analisamos, dessa forma, através das categorias de sociabilidade e da análise do estilo moderno de vida presente nos estudos de Simmel (1978, 1983, 1986, 2000, entre outros), desenvolvidos entre o final do século XIX e o início do século XX, em articulação com as discussões sobre cultura e política na sociedade contemporânea realizadas por Canclini (1989, 1995) e Featherstone (1995, 1997), dentre outros autores, os usos e contra-usos (Certeau, 1994; Leite, 2001) dos espaços históricos, as relações entre os grupos que circulam nesses espaços e a percepção destes quanto ao patrimônio cultural e a revitalização do centro histórico.

Quanto à organização expositiva do nosso trabalho, no capitulo 1, analisaremos os antecedentes da atual valorização da idéia de patrimônio cultural urbano, passando de uma concepção do patrimônio baseada em valores históricos e artísticos e na idéia de preservação de monumentos nacionais para a possibilidade de valorização de outros bens e para a idéia de patrimônio cultural urbano. Consideramos a importância estratégica dessa ampliação da concepção de patrimônio histórico e artístico/monumento para a de patrimônio cultural urbano/documento e memória,

presente nas políticas de revitalização urbana desenvolvidas, sobretudo, a partir da década de 1980. Em termos internacionais, destacamos as contribuições teóricas francesas e inglesas e, em âmbito nacional, a participação dos intelectuais modernistas na construção dessa idéia e na sua institucionalização desde 1937. Discutiremos, também, a emergência de novos usos e sociabilidades ligados ao patrimônio cultural, como parte de uma re-significação e de uma relocalização da tradição nas cidades contemporâneas.

No capítulo 2, analisaremos o centro histórico da cidade de João Pessoa em seus aspectos históricos e sua importância na formação urbana da cidade, acentuando- se a relação existente entre a construção das paisagens modernas e das sociabilidades públicas no início do século XX, com demolição de parte do patrimônio arquitetônico e cultural oitocentista da cidade e a criação de novas centralidades e formas de uso e apropriação dos espaços públicos da cidade de João Pessoa, reinventadas, no final do século XX, pelas práticas de gentrification. Analisaremos estes elementos, considerando também o cenário nacional, uma vez que este fenômeno não está restrito ou limitado à cidade de João Pessoa.

No capítulo 3, começaremos por apresentar os planos e as ações desenvolvidas para a revitalização do centro histórico de João Pessoa e, em seguida, discutiremos a própria dinâmica de implementação destas idéias. Para tanto, dividiremos o capítulo em três itens, iniciando por observar a invenção da idéia de centro histórico na cidade através da implementação do Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João

Pessoa no período de 1987 a 1996, passando à fase de gentrification e de reinvenção

da centralidade e da tradição histórica de um lugar na cidade, referindo-se ao período de 1996 a 2002. Concluiremos o capítulo apontando as novas formas de interação

Nos capítulos 4 e 5, aprofundaremos a análise das interações sociais e dos novos usos dos espaços históricos em estudo, marcados pela ambigüidade de estarem ao mesmo tempo voltados para o consumo cultural, lazer e diversão e para ações de melhoria da qualidade de vida da comunidade, para a construção de uma consciência cidadã, para a recuperação de crianças e jovens através da educação e do trabalho, estimulando processos de busca de direitos sociais e culturais e de formas alternativas de participação popular, além de criar uma consciência sobre a importância da memória e dos bens culturais para a formação da cultura de uma nação. Particularmente, no capítulo 4, destacaremos a experiência da Oficina-Escola de Revitalização do Patrimônio Cultural de João Pessoa e, no capítulo 5, a formação da Acehrvo e a ampliação da participação da Associação Folia de Rua, através do Projeto Folia Cidadã e, ainda, os usos e contra-usos identificados nas festas populares, shows artísticos e demais atividades desenvolvidas no centro histórico de João Pessoa, a partir de meados da década de 1990.

Por fim, reconstituiremos em síntese o processo de análise desenvolvido nesta tese para concluir que as demarcações sócio-espaciais e os usos resultaram em formas diferentes de subverter os usos esperados dos espaços urbanos enobrecidos, cujo patrimônio foi transformado em mercadoria cultural. Ressaltaremos que os processos de construção de sociabilidades e vínculos sociais foram reforçados em resposta à exclusão sócio-espacial, evidenciando a existência de iniciativas concretas por parte dos atores sociais no sentido da ampliação da participação popular, da reciprocidade e da solidariedade. Trata-se de uma reapropriação que vem contribuindo, no caso de João Pessoa, para uma repolitização da vida e dos espaços públicos ao incorporarem parte da população de crianças e adolescentes da favela Porto do Capim e de outros bairros pobres e favelas da cidade, através da Oficina-Escola de Revitalização do

Patrimônio Cultural da Cidade de João Pessoa, do Projeto Folia Cidadã, junto com o Instituto Ayrton Sena e de outros projetos sociais voltados para a “revitalização” dos que moram e circulam cotidianamente no centro histórico.