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Analisamos a experiência de revitalização do centro histórico da cidade de João Pessoa em relação ao fenômeno mundial de valorização das áreas históricas urbanas, iniciado em meados da década de 1980. Discutimos as transformações nos espaços públicos dessas áreas, através de sua utilização para consumo visual ou para atividades de lazer, arte e diversão, modificando usos, deslocando populações, atraindo novos atores e formas de participação, e explicitando conflitos existentes entre a idéia de preservar e revitalizar lugares históricos, espaços de origem das cidades, e o desenvolvimento de políticas econômicas vinculadas ao turismo e ao consumo de massa. Indagamos de que modo se forma e se reconfigura, na cidade de João Pessoa, o espaço do centro histórico, analisado como patrimônio cultural que passou, na última década, a ocupar lugar de destaque no lazer e na economia urbana como ponto atrativo de um sistema de circulação de pessoas, bens e capitais.

O centro histórico da cidade de João Pessoa (ver mapa 01 a seguir) está situado às margens do rio Sanhauá, numa planície flúvio-marinha da bacia hidrográfica do rio Paraíba que margeia o centro urbano da cidade e atinge a foz na cidade portuária de Cabedelo (município da Grande João Pessoa), no litoral do extremo oriente do Nordeste brasileiro. Abrange uma superfície de 117 hectares de solo urbano consolidado em 2.193 lotes, sendo 2.087 edificados e 180 correspondentes a trechos urbanos. Foi local de origem da cidade, pela posição e condições estratégicas que o estuário representava em relação à defesa da Capitania de Itamaracá, levando os colonizadores a estabelecerem um porto fluvial como local que serviria de escoamento da produção açucareira, onde se instalaria a alfândega e seriam construídos armazéns para o comércio atacadista.

Nesse lugar se formaria o Varadouro, tradicional bairro de comércio varejista e atacadista da cidade de João Pessoa até a década de 1960. O bairro do Varadouro corresponde a aproximadamente 68% do centro histórico de João Pessoa. Possui atributos naturais e uma paisagem caracterizada por uma topografia de suave relevo, vegetação exuberante ressaltada pela sua situação entre o vale do rio Sanhauá e o mar. Possui 14% de áreas verdes públicas, representando 17 m2/hab. de cobertura vegetal, acima dos padrões exigidos pela Organização das Nações Unidas - ONU.

Fundada em 1585, como Filipéia de Nossa Senhora das Neves, a capital da Paraíba estabeleceu-se, desde sua origem, entre dois espaços urbanos: a cidade alta – concentrando as funções administrativas, residenciais, culturais e religiosas e a cidade baixa – desenvolvida a partir do Porto do Capim, nas margens do rio Sanhauá, concentrando atividades comerciais até 1930. Foi o ponto de saída da produção local para exportação. Após a primeira metade do século XX, o processo de ocupação do solo urbano da cidade de João Pessoa se expandiu em direção ao mar, ficando a cidade baixa e o bairro do Varadouro limitados ao comércio local. Assim, o antigo Porto do Capim, com seus armazéns e grandes edifícios, passou a ser documento histórico de uma época.

As áreas da cidade alta e cidade baixa (ver mapa 02, adiante) não se diferenciam apenas por suas funções, mas também pela estrutura urbana: a primeira corresponde a um traçado regular, enquanto a segunda é composta por quadras irregulares adaptadas à topografia. A Praça Anthenor Navarro e o Largo de São Frei Pedro Gonçalves, alvos das práticas de gentrification mais recentes, localizam-se no bairro do Varadouro (na cidade baixa). Apesar de ser uma área fortemente consolidada, a cidade baixa foi submetida, sobretudo a partir da década de 1960, a um

processo de abandono e degradação do seu espaço urbano e de sua população residente e trabalhadora.

Mapa 01

Referências cartográficas: Mapa do Brasil na América Latina/IBGE. Mapa do Estado da Paraíba

definindo as localizações das principais cidades do Estado e da capital João Pessoa/Álbum de Viagem e Turismo João Pessoa - Paraíba, Editora Abril, Ano 1, Edição 3.

Mapa de delimitação da área de estudo do Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa, definindo a divisão da estrutura urbana em cidade baixa e cidade alta.

Fonte: Acervo da Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico de

João Pessoa – Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa (1987).

Mapa 02

A implantação do Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João

Pessoa, a partir de 1987, apresenta singularidades associadas ao caráter didático e

participativo, a um saber-fazer e a usos, permitindo-nos discutir o elemento paradoxal dessas políticas e planos que, em alguns momentos, vêm incorporando novos agentes e novas formas de gestão dos bens públicos e da relação entre público e privado. Esses atores se organizaram, inicialmente, através da formação de fóruns, seminários,

e a preservação do patrimônio cultural aos direitos culturais e à prática da cidadania. Além disto, a experiência do centro histórico de João Pessoa – nosso objeto de análise empírica - se destaca pelo apoio internacional através do Governo da Espanha na gestão e no financiamento em todas as fases do Projeto de Revitalização, desde 1987. Nesse processo, destacamos a Acehrvo, o Projeto Folia Cidadã e a Oficina-Escola, que serão particularmente analisados nos capítulos 5 e 6.

Com efeito, a experiência da cidade de João Pessoa, no bojo das experiências de revitalização urbana nacionais e internacionais, possibilita a compreensão de aspectos significativos das sociabilidades e da cultura contemporâneas, embora não tenhamos a pretensão de generalização das conclusões a que chegaremos nesta tese, as quais dependerão de outros desdobramentos de pesquisas, que possam comparativamente reafirmar ou refutar o que pudemos apreender a partir da experiência do centro histórico da cidade de João Pessoa. Contudo, não podemos deixar de observar certos traços como ideais-típicos das experiências históricas de intervenção urbana e preservação do patrimônio histórico no Brasil, presentes na experiência de revitalização do centro histórico de João Pessoa. Dentre eles, destacamos:

a) O fato de ser o núcleo original de formação de uma das cidades mais antigas do Brasil. A cidade de João Pessoa, fundada em 1585, conta, desde o início de sua fundação, com um traçado urbano regular e com um desenvolvimento da atividade comercial inicialmente em torno da área portuária banhada pelo rio Sanhauá. O Porto do Capim no bairro do Varadouro – principal alvo da revitalização de 1998 – abria as portas da cidade para o mundo. Localizavam-se, em seu entorno, as primeiras ruas nascidas de frente para o rio, inicialmente tortuosas entre as ladeiras que conduziam à cidade alta. Esta última, desde o início, de traçado regular e estruturada em torno do

eixo formado pelos conjuntos das ordens religiosas dos franciscanos, beneditinos, carmelitas e jesuítas, diferenciava-se da descontração das margens do rio.

b) O patrimônio cultural do centro histórico de João Pessoa envolve sítios com características da arquitetura militar, civil e religiosa brasileiras sob influência européia, com exemplares remanescentes dos seus mais de quatro séculos de existência. No entanto, no que se refere às últimas intervenções realizadas, a área alvo das políticas de gentrification da segunda metade da década de 1990 foi uma praça reformada na década de 1930 após a demolição de um casario oitocentista, a Praça Anthenor Navarro. Os edifícios em seu redor são de arquitetura com fortes traços de influência francesa, art nouveau26 e art déco27. As características urbanísticas e

arquitetônicas evidenciam as reformas das décadas de 1920/1930 na cidade de João Pessoa que podemos identificar como uma protogentrification. Assim, a atual

gentrification da Praça Anthenor Navarro, bem como do Largo de São Pedro

Gonçalves e adjacências, segue um modelo brasileiro (dois exemplos precursores foram Salvador, com o Pelourinho, e Recife, com o Bairro do Recife), ao fazer parte do Programa Integrado de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste – PRODETUR- NE28 financiado pelo BID, a partir de 1998.

26 O art nouveau foi um estilo desenvolvido na Europa entre 1890-1910. Incialmente chamado de style

moderne na França, a partir de 1895, com a inauguração em Paris de uma loja de objetos decorativos,

passou a ser conhecido por art nouveau. Na Alemanha, foi denominado Jugendstil (estilo jovem) devido ao nome de uma revista Jugend. Caracteriza-se pela exuberância decorativa em motivos florais, formas ondulantes, contornos sensuais e requintadas linhas finas e contínuas. O art déco seria uma fase menos decorativa e preparativa para a limpeza do plano e das formas geométricas utilizados a partir da segunda metade do século XX pelo modernismo racionalista.

27 O art déco foi um movimento de artes decorativas que surgiu nos anos 1920 até 1930, inspirado no

cubismo e nos preceitos da nova arquitetura. Buscava o equilíbrio dos volumes, uma certa singeleza linear e fácil adaptação à modulação industrial. O art déco foi também conhecido como arquitetura pragmática.

28 Criado em 29 de novembro de 1991, o PRODETUR-NE tem sido uma das principais agências de

indução de investimentos para infra-estrutura do turismo urbano no Nordeste. Os recursos vêm do Banco do Nordeste e do BID. Parte significativa dos recursos deste Programa tem apoiado as políticas

Em termos nacionais, teve início a partir de um projeto estratégico de revitalização de um patrimônio eclético do início do século que, à semelhança do

Projeto Cores da Cidade (Projeto da Fundação Roberto Marinho e empresas privadas

desenvolvido inicialmente no Rio de Janeiro e Recife), embora sem essa vinculação institucional, seguiu os seguintes princípios: criar cenários urbanos ecléticos em áreas antigas de comércio que perderam a função habitacional e são consideradas áreas “abandonadas ou degradadas”, a partir de uma parceria entre iniciativa privada e órgãos públicos, voltando-se, sobretudo, para o turismo cultural local.

Além disto, desde o ano de 2001, a Prefeitura Municipal da cidade de João Pessoa encontra-se em negociações com o Ministério da Cultura, com o objetivo de inserir-se na segunda fase do Programa Monumenta BID. João Pessoa foi selecionada dentre as vinte cidades históricas, de uma lista de mais de cem cidades elaborada pelo

Programa Monumenta. Com certeza, o trabalho já realizado através do convênio

Brasil/Espanha desde 1987 no centro histórico de João Pessoa teve uma influência decisiva nesta seleção, bem como a formação das organizações não-governamentais – ONGs, das oficinas e demais associações que deram visibilidade a essas áreas nos últimos anos. Entretanto, a revalorização de um patrimônio arquitetônico do início do século XX só pareceu possível à equipe técnica da Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico de João Pessoa após a experiência de

Revitalização do Bairro do Recife que resultou no tombamento pelo IPHAN do

referido bairro num processo pioneiro em termos nacionais, no qual um conjunto eclético foi considerado patrimônio nacional por ser um remanescente íntegro do pensamento urbano e arquitetônico da belle époque no Brasil (Leite, 2001:12).

c) O processo de revalorização do patrimônio cultural na cidade de João Pessoa apresenta, também, suas singularidades por ter acontecido, de fato, em função de

aspectos conjunturais nacionais e internacionais. Destaque-se a presença do paraibano Celso Furtado no Ministério da Cultura quando da proposta do Governo da Espanha ao governo do Brasil de estabelecimento de um convênio para preservação e revitalização do patrimônio cultural de cidades de origem ibérica. Assim, o Projeto de Revitalização

do Centro Histórico de João Pessoa manteve-se até meados da década de 1990, com

mais de 70% dos recursos e iniciativas oriundos do convênio Brasil/Espanha, só passando a ter um apoio maior dos poderes estadual e municipal a partir de 1996, coincidindo com a propaganda da experiência exitosa de gentrification do patrimônio cultural na cidade do Recife e, em parte, da experiência de Salvador.

O fato da cidade de João Pessoa entrar nessa competição entre cidades, através de seus recursos culturais e simbólicos, foi um elemento decisivo para a obtenção do apoio dos poderes públicos locais. Entretanto, foi a partir da iniciativa de uma agência transnacional, a Agência Espanhola de Cooperação Internacional – AECI, que acabara de entrar para a Comunidade Econômica Européia e que tinha como um de seus esteios a relação entre patrimônio e desenvolvimento econômico sustentável, que se iniciou o processo de revalorização do patrimônio cultural da cidade de João Pessoa e se introduziu o uso do termo “centro histórico” e sua relação com a tradição, a memória e o patrimônio comum entre culturas.

d) Destacamos, ainda, a experiência de implantação da Oficina-Escola de Revitalização do Patrimônio Cultural, ponto mais importante de todas as contribuições do convênio internacional e que garante não apenas outra singularidade do processo de revitalização do centro histórico de João Pessoa - carregada de afetividades, de sentimentos de compartilhar, de ser solidário -, mas também um elemento de reconstrução do saber-fazer, da arte de fazer que a prática da restauração dos bens

de ter chance de conseguir um trabalho, os alunos da Oficina-Escola aprendem a valorizar a memória, o uso público e coletivo dos espaços e dos seus símbolos, a importância da preservação da história e da natureza para a população das cidades.

Foi dentro desse processo que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN tombou o saber-fazer e o prédio da Fábrica de Vinhos de Caju Tito Silva, onde funciona a Oficina-Escola, representando mudanças em termos nacionais, conforme destaca Fonseca (1997:241), quando avalia os tombamentos e as políticas federais implementadas através do IPHAN, a partir da década de 1970:

“Quanto aos tipos de bens que foram objeto de tombamento, decresceu significativamente o número de bens da arquitetura religiosa e militar, aumentando o número de conjuntos. Mas o fato mais característico desse período é a diversificação dos bens de arquitetura civil, e o tombamento de bens ‘inusitados’, como o da Fábrica de Vinho de Caju Tito Silva (na Paraíba), já mencionado, proposto pelo programa de Tecnologias Patrimoniais da Área de Referência da Dinâmica Cultural da Fundação Nacional Pró-Memória, cuja finalidade não era propriamente a proteção do imóvel e do equipamento, mas desses enquanto suporte de um ‘fazer’ intimamente relacionado com as características regionais do processo cultural brasileiro”.

Ressaltamos, assim, a inserção das práticas de revitalização do patrimônio cultural de João Pessoa, dentro das mudanças no interior do próprio Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, quanto aos novos programas apresentados: bens representativos da etnia afro-brasileira (Terreiro da Casa Branca, na Bahia e Serra da Barriga, em Alagoas); diferentes correntes de imigração (Casa Presser, no Rio Grande do Sul, Casa do Professor e Escola Rural, e Cemitério Protestante, em Santa Catarina), testemunhos da imigração alemã e outros testemunhos da imigração japonesa em São Paulo e italiana no Rio Grande do Sul; marcos da história da ciência e tecnologia no Brasil (Casa de Saúde Carlos Chagas, Estação Ferroviária de Lassance em Minas Gerais, entre outras); vários exemplares da

arquitetura do ferro como pontes, mercados, caixas d’água etc. e novos exemplares da arquitetura civil como curtumes, fábricas e conjuntos habitacionais populares.

Tudo isto culminou, em 1998, com o tombamento do Bairro do Recife, um conjunto eclético considerado patrimônio nacional, não só por ser o “único remanescente íntegro completo do pensamento urbano e arquitetônico da belle époque no Brasil”, mas também por representar uma submissão do IPHAN às exigências do financiamento do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), subvertendo uma histórica tradição de preservação nas políticas nacionais de preservação do patrimônio (Leite, 2001:12), ampliando uma nova etapa na atuação do IPHAN, iniciada na década de 1980.

Dessa forma, a experiência de revitalização do centro histórico de João Pessoa situa-se em um contexto de forte afirmação da cultura local. Na Paraíba, a difícil relação, que discutiremos ao longo de alguns capítulos desta tese, entre tradição e

estilo de vida moderno está colocada de modo marcante e ambíguo, bem como a

relação também ambígua entre patrimônio e mercado. Essas características possibilitam tomar a experiência de revitalização do centro histórico de João Pessoa como uma combinação de aspectos singulares e aspectos mais gerais, presentes em outras localidades e experiências, e que lhe são comuns.

Identificamos os usos desses espaços através dos relatos da população que vive e circula nas áreas em processo de revitalização. Foram importantes também as observações de campo, nas visitas ao bar Parahyba Café, um dos eixos em redor dos quais a revitalização se mantém, apesar das dificuldades enfrentadas após cessar uma certa euforia criada em torno do processo de gentrification do patrimônio cultural, arquitetônico e urbano na capital paraibana. Trabalhamos, também, com as imagens

CD-ROM, arquivo fotográfico) relocalizados em suas tradições pelas ações de

gentrification empreendidas pela Prefeitura Municipal de João Pessoa no final da

década de 1990. Mostramos, além disso, através das imagens, as reformas urbanas e sanitaristas de 1920/30 e as práticas de gentrification, utilizadas na maioria das cidades brasileiras na atualidade, sobretudo nas áreas da Praça Anthenor Navarro e imediações, alvos diretos dessas mudanças de uso do patrimônio cultural urbano. Destacaremos as sociabilidades e os usos nessas áreas. Identificaremos, também, as ações da população da favela, que aproveita festas, lançamentos de livros, shows etc. e o movimento diário mesmo dos bares para vender pipocas, bebidas, guardar e lavar carros, engraxar sapatos, entre outras atividades, contrariando as expectativas das políticas de

gentrification.