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Nosso foco sobre o Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João

Pessoa refere-se à existência, nas cidades contemporâneas, de espaços de interações

sociais e, em especial, de sociabilidades públicas principalmente em um tipo de cidade que é re-significada para se tornar vitrine, espetáculo, lugar de consumo da tradição pelo marketing das cidades e suas políticas contemporâneas de patrimônio cultural. Podemos localizá-lo como problema desde as primeiras décadas do século XX, com Walter Benjamin (1997) e suas referências às reformas do Barão Haussmann em Paris, no contexto do autoritarismo de Napoleão Bonaparte (pós-1848): embelezar a cidade adequando-a às necessidades do mercado e de circulação de bens, signos e capitais que a cidade industrial exigia. Criou-se uma imagem de cidade moderna e de disciplinamento dos usos dos espaços, que se expandiu nas décadas seguintes para diferentes cidades do mundo.

No Brasil, a partir das primeiras décadas do século XX, grandes cidades, como Recife e Rio de Janeiro, e, até mesmo, pequenas e médias cidades brasileiras, como João Pessoa, Natal e Fortaleza, reformaram seus centros comerciais abrindo largas avenidas, fazendo das ruas comerciais vitrines dos produtos a serem comercializados, definindo limites e segregando os espaços urbanos. Um século depois, as estratégias atuais de gentrification do patrimônio cultural continuam a criar cenários, a embelezar as cidades históricas através destas políticas urbanas, como afirma Leite:

disciplinam certos espaços urbanos para uso extensivo de lazer, turismo e consumo. As novas barricadas urbanas reeditam política e espacialmente formas históricas de desigualdade e exclusão social quando restringem os usos dos lugares da vida cotidiana pública dos moradores e freqüentadores dessas áreas” (2001:02).

O caráter de público e de cotidiano aqui utilizado, atribuído aos espaços e aos usos das áreas históricas, distingue-se de um outro tipo de processo referente aos usos e costumes banais da vida diária e do cotidiano privado, conforme ressalta Martins (2000) ao referir-se aos limites das abordagens que utilizam o cotidiano como relativo à vida privada. Nesse sentido, trata-se de interações, processos representativos e simbólicos de experiências vividas que constroem sociabilidades nos espaços de uma vida pública, no largo e na praça, na rua, na oficina-escola, nos shows artísticos e nas associações. São processos construídos, em grande parte, em torno das experiências de

gentrification do patrimônio cultural, desenvolvidas a partir das últimas décadas do

século XX.

Os resultados mais evidentes dessas políticas de gentrification no Brasil das duas últimas décadas são as alterações na paisagem urbana, com a recuperação de sítios históricos degradados em áreas de entretenimento e de consumo cultural urbano. Os significados de uma localidade histórica foram transformados em um segmento do mercado, considerando a apropriação cultural do espaço a partir do fluxo de capitais. Efetua-se uma “relocalização estética do passado” (Featherstone, 1995; Zukin, 2000; Leite, 2001), resultando num modelo alterado de práticas que mimetizam o espaço

centrais das cidades históricas para serem transformadas em cenários de competitividades num fragmentado espaço de visibilidade pública24.

É possível identificarmos diversas formas de expressão dessa fragmentação, no cotidiano público das cidades, com destaque para os conflitos e disputas por territorialidades, delimitando fronteiras identitárias na diferenciação/separação entre áreas de habitação, de lazer e de trabalho onde muros visíveis e invisíveis são erguidos à parte da cidade, com um sofisticado aparato de segurança particular e de vigilância eletrônica dos seus espaços privados. Ou ainda nas intervenções urbanas das áreas centrais das cidades históricas que muitas vezes segmentam os bairros na sua dimensão política e econômica, sobretudo, a partir das políticas de gentrification do patrimônio cultural que tentam transformar os monumentos e as práticas culturais em mercadorias (Zukin, 2000; Leite, 2001).

Há uma variedade de experiências desse tipo que, apesar das diferenças e singularidades dependentes das localidades, estão integradas por esta perspectiva orientada pelo e para o econômico, articulando restauração do patrimônio, mudanças dos usos dos espaços da cidade e reformas na infra-estrutura urbana. Essas políticas urbanas geram polêmicas e dividem as opiniões, recolocando o debate sobre o patrimônio cultural a partir do questionamento de temas discutidos nas ciências sociais como identidade, cidadania, memória e democracia, tendo o consumo cultural como uma espécie de fio condutor. O debate sobre as cidades históricas fica, assim, num dilema entre a suposta autenticidade da tradição e a cenografia das fachadas históricas para consumo visual.

24 Esse caráter fragmentário refere-se ao aspecto espacializado das relações sociais nas experiências

O conceito de tradição continua sendo o argumento central que justifica as atuais intervenções, embora pressuponha o acréscimo à idéia de patrimônio cultural da concepção mercadológica. As duas formas de intervenção - a que se apóia na idéia de memória nacional (ou local) e a que se fundamenta no patrimônio cultural como mercadoria cultural - são formas de intervenção e apropriação simbólicas construídas com base em concepções sociais específicas. Enquanto esta última volta-se para as ações de consumo no interior do mercado cultural (Leite, 2001), a primeira apela para uma discutível memória coletiva e compartilhada, para tornar eficazes as ações convergentes dentro de uma nação ou localidade.

As intervenções voltadas para a lógica da memória nacional se desenvolveram a partir de políticas culturais centralizadas pelo Estado e se fundamentaram numa concepção de patrimônio como lugar político para a construção da idéia de nação, relacionando espaço público e cidadania. Os projetos de gentrification contemporâneos possuem a mesma justificativa quanto à centralidade do patrimônio para a tradição nacional, pois denotam uma concepção de mercado que resulta numa gestão mista entre Estado e iniciativa privada como forma de intervir no patrimônio como mercadoria cultural, alterando o sentido político do lugar ao referir-se ao cidadão como

consumidor. Embora haja uma re-significação da tradição em ambos os casos, parece-

nos que a sociabilidade pública que pode se desenvolver em cada um deles indica concepções diferentes de espaço público.

Entretanto, ao considerarmos a dupla inserção da dimensão do consumo à concepção de cidadania, percebemos que, além da perspectiva econômica do consumo, estratificada por renda e poder aquisitivo, pelas possibilidades reais de aquisição de bens e de participar no mercado de produtos e serviços, há uma cultura de consumo. Trata-se de uma dimensão que ultrapassa a dinâmica de troca econômica, como

destaca Featherstone (1995) quando se refere a uma lógica mais ampla de estruturação da sociedade, baseada no princípio da troca, que não se esgota no ato em si das trocas, mas que toma este princípio como ponto de partida para organizar e modelar relações sociais.

Canclini afirma que “o consumo serve para pensar” (1995:51-66), referindo-se justamente a esta dimensão política e cultural das práticas de consumo como parte das interações socioculturais mais complexas. Certeau (1994:93-102), por sua vez, reabilita a atividade de consumo, tomada no seu sentido mais amplo, principalmente no uso que se faz dos produtos culturais. Ele define cultura popular como sendo uma ‘cultura de consumo’. Para uma produção racionalizada, padronizada, expansionista e ao mesmo tempo centralizada, corresponde a uma outra produção: o consumo.

Trata-se aqui de uma produção, pois, apesar de não se caracterizar por produtos próprios, ela se distingue pelas maneiras de viver com esses produtos, ou seja, pelas maneiras de utilizar os produtos impostos pela ordem econômica dominante. Em outras palavras, o consumidor não poderia ser identificado ou qualificado a partir dos produtos que assimila. É preciso encontrar o autor sob o consumidor: entre ele (que usa o produto) e os produtos (índices da ordem cultural que se impõem a ele), há uma defasagem do uso que ele dá aos produtos. Certeau refere-se especificamente aos bens culturais, afirmando:

“Depois dos trabalhos, muitos deles notáveis, que analisaram os ‘bens culturais’, o sistema de sua produção, o mapa de sua distribuição e a distribuição dos consumidores nesse mapa, parece possível considerar esses bens não apenas como dados a partir dos quais se pode estabelecer os quadros estatísticos de sua circulação ou constatar os funcionamentos com o qual os usuários procedem a operações próprias” (Certeau, 1994:93).

Os usos seriam, assim, autênticas artes do fazer, por meio das quais os consumidores dão uma outra função aos produtos materiais e simbólicos e operam

contra-usos diferentes daqueles que haviam sido projetados para eles. As novas

experiências de revitalização urbana fazem esta articulação entre consumo, tradição e patrimônio, ao revalorizarem localidades. Isso é feito, por um lado, através do destaque dos centros históricos como lugares de convergência da população para um suposto passado e para identidades comuns, representantes da memória da nação, da tradição e da cidadania e, por outro, ao considerarem essas intervenções como formas de recuperação de localidades enquanto espaços públicos de lazer, entretenimento e consumo da população.

Isso ocorre mesmo que o sentido público desses espaços esteja condicionado às práticas de consumo que acabam por transformar os centros históricos em áreas de lazer, turismo e consumo cultural das camadas médias urbanas (Featherstone, 1995). Entretanto, convém registrar que outros autores, a exemplo de Sennet (1998) e Baudrillard (1991, 1996)25, consideram essa reativação do espaço público pelas

práticas de consumo como contribuinte de um processo de esvaziamento e morte do espaço público. Há ainda outros, como Fortuna e Silva (In: Santos org., 2002) que consideram que essas práticas podem estar gerando apenas formas de sociabilidades efêmeras, restritas ao tempo e ao ato real de consumo.

25 Em A troca simbólica e a morte (1996), Baudrillard supõe a existência de mecanismos atuantes além

do psiquismo individual e do valor econômico puro e simples, embora sugira que a única coisa que pode resistir às incursões do código repressivo é a morte, reduzindo-se na obra de Baudrillard a confiança na possibilidade de resistir aos domínios dos signos e, conseqüentemente, à lógica utilitarista e à simples troca. Baudrillard argumenta que há uma ordem generalizada do consumo que não permite dar, retribuir ou trocar, mas simplesmente tomar e usar (apropriação, valor de uso individualizado) e que, assim, tanto o consumo de bens quanto o de mensagens significam uma interdição sobre toda a forma de resposta e de reciprocidade. Ele considera pura ilusão estratégica a possibilidade de desviar os media no seu poder de reação em cadeia e utilizá-los em sua função de generalização instantânea de informação, retirando, assim, a possibilidade de reversão, de instituição de uma lógica contrária àquela do consumo e da simples troca com suas conseqüências e efeitos.

Argumentamos, ao contrário, que, embora tais políticas culturais e práticas sociais segreguem esses espaços para o consumo restrito, isso não significa, necessariamente, o esvaziamento desses espaços urbanos enquanto espaços públicos de interações sociais. Por outro lado, não impedem novas formas cotidianas de apropriação política dos lugares, enquanto espaços de publicização e politização das diferenças e lugares a partir dos quais podem desenvolver-se novos usos, contra-usos e reciprocidades que acentuam, politicamente, as formas reivindicativas e participativas nas decisões sobre os bairros, praças e ruas das cidades. Consideramos, assim, que o espaço público tem uma dimensão sociológica enquanto lugar cujos usos das demarcações físicas e simbólicas, das fronteiras no espaço o qualificam e lhe atribuem sentidos de aproximação e afastamento, de pertencimento, orientando ações sociais e sendo por estas delimitadas reflexivamente.

É importante, portanto, verificar que, apesar das restrições que a transformação do patrimônio em mercadoria cultural impõe às características políticas do espaço público, resultantes das relações de mercado e dos limites de acesso ao consumo, esses processos de gentrification podem potencializar formas de interação a partir da diversificação dos usos expandidos com a própria dinâmica das interações intensificadas nesses espaços revitalizados. Além disto, essas políticas dos usos cotidianos e públicos dos espaços e do patrimônio podem demarcar diferenças e criar transgressões na paisagem urbana, ao subverterem os usos esperados. Constituem-se, assim, em lugares que configuram e qualificam os espaços urbanos como espaços públicos, na medida em que se tornam locais de disputas práticas e simbólicas sobre o direito de estar na cidade, de ocupar seus espaços, de traçar itinerários, de pertencer e ter identidade.