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2 METODOLOGIA

2.1 ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO (ADD)

Podemos dizer que, de modo geral, a ADD é fundada na disciplina que Bakhtin chamou de metalinguística, cujo objeto são as relações dialógicas que todo e qualquer corpus apresenta, visto que o dialogismo está nas próprias fundações da linguagem, como explicamos anteriormente. Podemos, então, passar a discutir a forma de pesquisar pelo viés de uma teoria dialógica.

Em artigo sobre “caminhos possíveis” na pesquisa com ADD, Rohling (2014, p. 45) destaca que esse tipo de investigação tem conceitos básicos (alguns dos quais já discutimos), como enunciado, sujeito, dialogismo, gêneros do discurso e o próprio discurso, com destaque para este último.

Segundo Brait (2006), o que ocorre na ADD é um movimento de recuperação desses conceitos construídos ao longo dos textos bakhtinianos, que têm orientado os estudos da linguagem de caráter histórico e social. Nesse sentido, Rohling (2014, p. 49) afirma que, na ADD:

[...] é preponderante tomar a língua no seu aspecto histórico e concreto, uma vez que o discurso não se constrói sobre uma determinada realidade, mas, sim, na relação de respondibilidade a outro discurso. Não há um acesso à realidade em si, mas a um universo discursivo, que é histórico, concreto e circunscrito a uma dada situação de interação discursiva. Reiteramos, então, que [a ADD] é sempre mediada pela linguagem e realizada sobre a linguagem, pois o sentido se constrói nas relações dialógicas. [grifo da autora]

Esse caráter histórico e situado da linguagem é também a razão pela qual, no âmbito da ADD, o pesquisador parte de práticas discursivas concretas, isto é, enunciados reais, ao mesmo tempo em que leva em conta contextos mais amplos de produção e circulação dos discursos (ROHLING, 2014, p. 47). Embora isso seja prática em outras áreas da linguística e de análise do discurso, no caso da ADD isso tem uma fundamentação filosófica: Bakhtin entende o mundo da teoria e o mundo da vida como sendo indissociáveis, ao mesmo tempo que não podemos chegar diretamente ao real, à vida, mas somente por uma mediação semiótica característica do humano, também não se pode simplesmente teorizar sobre a vida, sob pena de torná-la estanque, esvaziada.

Em suas observações sobre a metodologia da análise que faz em Problemas da Poética de Dostoiévski, Bakhtin (2011, p. 181) fala que a metalinguística seria o estudo dos aspectos da vida da palavra que excedem as fronteiras da linguística. A primeira não pode ignorar a última, devendo inclusive fazer uso dos resultados linguísticos, mas ele destaca que a linguística e a metalinguística estudam o mesmo fenômeno concreto, altamente complexo e multifacetado — a palavra —, mas o fazem de pontos de vista diversos. Como já dissemos, a linguística abstrata não dá conta dos aspectos dialógicos da linguagem.

Em Metodologia das Ciências Humanas, Bakhtin (2010, p. 401) diz que: O texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. Salientemos que esse contato é um contato dialógico entre textos (enunciados), e não um contato mecânico de “oposição”, só possível no âmbito de um texto (mas não do texto e dos contextos) entre os elementos abstratos (os signos no interior do texto) e necessário apenas na primeira etapa da interpretação (da interpretação do significado e não do sentido). Por trás desse contato está o contato entre indivíduos, e não entre coisas (no limite). [...] A coisificação completa, extrema levaria fatalmente ao desaparecimento da infinitude e da insondabilidade do sentido (de qualquer sentido). Assim, temos um aparato de análise bem definido, mas que não estabelece categorias estáticas. Segundo Rohling (2014, p. 47), na ADD, “as categorias emergem das relativas regularidades dos dados, que são observadas/apreendidas no percurso da pesquisa”. Isso permite ao pesquisador enxergar aspectos regulares sobre os quais pode levantar hipóteses e elaborar conclusões. Acreditamos que, dependendo do tipo de fenômeno, é possível extrapolar essas conclusões para um nível em que possamos chegar a uma compreensão, não só do caso específico em estudo, mas da linguagem de modo amplo.

Assim, adotamos a visão de Amorim (2004, p. 18) quando diz que, “se não há pretensão universalizante, não há objeção possível”, ou seja, se o pesquisador expressa única e exclusivamente sua visão, não é possível haver contestação — não haveria espaço para discussão, objeção e, portanto, alteridade na pesquisa.

Dentro desse tema, já falamos sobre como, na visão de Bakhtin, não pode haver a coisificação do sujeito/objeto em ciências humanas. Para Amorim (2003, p. 89), “o pesquisador e o sujeito de pesquisa estão em condição de intersubjetividade, onde necessariamente não há um eu que não se constitua em relação a um tu”. Ela conclui então que “A pesquisa em ciências humanas é entendida enquanto texto que se produz sempre como intertexto” (AMORIM, 2003, p. 89).

Isso se coaduna com o método de investigação da metalinguística bakhtiniana, que é de natureza dialógica, “constituído pelo diálogo entre sujeito- pesquisador e o sujeito-autor do texto estudado”, como aponta Grillo (2006, p. 122). Para tomar as palavras do próprio Bakhtin (2010, p. 319):

A investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo. Nós não perguntamos à natureza, e ela não nos responde. Colocamos as perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a experiência para obtermos a resposta. Quando estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar seu significado.

É por isso que não podemos deixar de refletir sobre as consequências da teoria dialógica da linguagem para o próprio pesquisador, uma vez que as relações dialógicas são justamente o que está para além da materialidade verbal, ou seja, não é apenas algo que o investigador vai procurar no interior do texto, mas algo que permeia o mundo humano. Sendo assim, esse sujeito que pesquisa é alguém constituído na e pela linguagem, sócio-historicamente, e sua relação com o objeto de pesquisa será sempre, do mesmo modo, dialógica, valorativa e nunca neutra. Isso quer dizer que o objeto não é dado previamente, mas construído no processo de pesquisa. Mas qual a consequência prática disso? Uma delas é que a pesquisa é um recorte feito do ponto de vista do pesquisador que usa como lente o aparato teórico para observar o objeto. Outra consequência é que a forma de se colocar no texto é levada em consideração. Além da tradição do gênero textual, a escolha do plural de modéstia (com seus prós e contras) na escrita deste trabalho foi ponderada e assumimos a responsabilidade dos efeitos que aponta Amorim (2004, p. 100):

[...] o nós do orador ou do autor atenua a afirmação categórica de um eu, por prudência ou por modéstia, numa expressão mais ampla e difusa. Donde sua alternância com o uso do se (acredita-se...), marca de terceira pessoa que exprime uma indefinição de

pessoa. O caráter de polidez dessas formas resulta do fato de que elas atenuam a focalização sobre a pessoa estrita e sua singularidade, e protegem de uma atitude invasiva da intimidade e do âmbito pessoal.

Isto posto, concordamos com Rohling (2014, p. 47-48) quando afirma que “o trabalho do pesquisador se inscreve na posição de um observador atencioso; ele é um outro (não neutro) no diálogo com os dados (discursos)” e também quando diz que “estabelecer o objeto, gerar os dados de pesquisa e circunscrever os espaços de pesquisas (suas delimitações) constitui um trabalho teórico-metodológico do pesquisador cuja base é de natureza dialógica e axiológica”.

Assim, “na pesquisa de cunho dialógico há, sim, análise das marcas linguísticas. Contudo, trata-se de um olhar para a língua vista na condição de discurso”, isto é, uma análise que “leva em conta as relações extralinguísticas, históricas e concretas, que se materializam nos enunciados, com vistas a construir compreensões sobre os sentidos promovidos no bojo das relações dialógicas” (ROHLING, 2014, p. 49).

Nesse sentido, François (2015, p. 35) aponta como opção para a pesquisa: [...] explicitar os movimentos do texto, em particular a forma como se articulam os movimentos locais e a totalidade do texto. É um dos aspectos conhecidos do que chamamos de interpretação. Isso partindo da distinção entre as significações ditas “frontalmente” pelos enunciados e as que são indicadas, desenhadas, por movimentos do texto, seus modos de repetição ou, ao contrário, suas mudanças de perspectiva. Buscamos adotar essas abordagens para nossa pesquisa, partindo de marcas linguísticas presentes no texto, explicitando movimentos discursivos, para chegar a explicações mais amplas, que levam em conta as relações dialógicas, buscando compreender a construção de sentidos e os fatores axiológicos.

Diante do que foi apresentado, podemos retomar os parâmetros que Rohling (2014, p. 50) apresenta, a partir das análises dos próprios autores estudados, como possíveis elementos balizadores de uma pesquisa que adote a ótica dialógica:

 O estudo da esfera da atividade humana em que se dão as interações discursivas em foco.

 A descrição dos papéis assumidos pelos participantes da interação discursiva, analisando as relações simétricas/assimétricas entre os interlocutores na produção do discurso.

 O estudo do cronotopo (o espaço-tempo discursivo) dos enunciados.

 O estudo do horizonte temático-valorativo dos enunciados.

 A análise das relações dialógicas que apontam para a presença de assimilação de discursos já-ditos e discursos prefigurados, discursos bivocais, apagamentos de sentidos, contraposições, enquadramentos, re-enunciação de discursos e reacentuações de discursos.

É claro que diferentes pesquisas podem se concentrar mais em determinados elementos, ou seja, não necessariamente aparecem todos ao mesmo tempo. O importante é que tais parâmetros não devem ser examinados isoladamente, pois são facetas do discurso que situam o texto social, histórica e culturalmente. No nosso caso, a análise tem como foco as relações dialógicas para entender melhor a tradução como uma esfera da atividade humana que tem interações discursivas específicas, envolvendo interlocutores que ocupam espaços discursivos distintos e têm suas próprias vozes, valores, crenças, critérios, etc.

Para olharmos especificamente a tradução, precisamos complementar nosso aparato metodológico com algo mais direcionado a ela, embora ainda partindo da mesma visão de linguagem. Assim, chegamos ao método comparativo.