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1 INTRODUÇÃO TRAJETÓRIAS TEÓRICAS

1.3 A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM

1.3.2 Ponto de vista

“Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. [...] Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila de nossos olhos.”

M. Bakhtin, Estética da Criação Verbal Assim como Bakhtin, Frédéric François entende o sujeito como alguém que enuncia de um lugar único, com todas as contingências que isso envolve, o que fornece um ponto de contato relevante para trabalharmos as visões de ambos e as consequências para a tradução. Para começar a discutir essa noção, podemos tomar o que diz Cunha (2015, p. 96), também baseada no dialogismo:

O mesmo objeto em um espaço único será visto de modo diferente em decorrência do campo de visão das pessoas que o observam. Vale dizer que essa diversidade não diz respeito somente ao espaço físico, que não pode ser separado do tempo, mas da pluralidade de “visões de mundo”, de pontos de vista.

A visão de mundo constrói as atitudes (sendo que tudo pode ser compreendido por dentro como atitude), dá unidade à orientação semântica progressiva da vida, unidade de responsabilidade, unidade de sobrepujança de si mesmo, de superação da vida por si mesma.

A partir da visão dialógica, François (1994) desenvolveu a noção de “ponto de vista”, isto é, de que se fala sempre de um lugar sócio-histórico e axiológico único, que condiciona as escolha discursivas. Ele opõe a ideia de “ponto de vista” à de “objetividade”. Para ele, existe, por um lado, uma realidade comum aos falantes e, por outro, uma diferença de ponto de vista, e essa relação é essencial ao estudo desse tema, pois, sem algo em comum e sem diferença, não há ponto de vista (FRANÇOIS, 2015). De fato, Bakhtin (2010, p. 21-22) afirma que:

Essa distância concreta só de mim e de todos os outros indivíduos — sem exceção — para mim, e o excedente de minha visão por ele condicionado em relação a cada um deles [...] são superados pelo conhecimento, que constrói um universo único e de significado geral, em todos os sentidos totalmente independente daquela posição única e concreta ocupada por esse ou aquele indivíduo; [...] “eu e o outro” para o conhecimento, por serem concebidos, constituem uma relação relativa e reversível, uma vez que o sujeito do conhecimento como tal não ocupa um lugar concreto determinado na existência. [...] [Porém,] a percepção efetiva de um todo concreto pressupõe o lugar plenamente definido do contemplador, sua singularidade e possibilidade de encarnação; o mundo do conhecimento e cada um de seus elementos só podem ser supostos.

Siblot (2004, p. 334), outro autor que adota a base dialógica nesse tema, também endossa essa posição quando explora as consequências da polissemia e conclui que um mesmo objeto pode ser visto sob diferentes ângulos, sob “pontos de vista que privilegiam um ou outro aspecto, um ou outro uso, uma ou outra intenção”.

É por essa razão que insistimos em discutir o prejuízo da abordagem cientificista que discutimos anteriormente. Para Bakhtin (2010, p. 54), “o cientificismo positivista reduziu definitivamente o eu e o outro a um só denominador”, e isso para ele é problemático, pois nesse processo o sujeito é subsumido numa consciência única. Ou seja, não há como enxergar alteridade dessa perspectiva, não há como haver a dubiedade das diferentes posições sociais e axiológicas.

Mas foi justamente essa característica que atraiu as ciências humanas, pois isso é o que teoricamente possibilitaria um exame objetivo do real, qualidade atribuída às ciências naturais e, em vários momentos, desejada pelas ciências humanas. Nessa visão, o conhecimento é algo estanque, que pode ser alcançado (e não construído) e ser abstraído do acontecimento real, pois independe do humano. Nessa linha de pensamento, tomemos o que diz o filósofo russo (2010, p. 80-81):

Essas teorias empobrecedoras, que tomam por base da criação cultural a rejeição ao lugar único que ocupo e à minha contraposição aos outros, a incorporação a uma

consciência única, a solidariedade e até a fusão [...] encontram explicação no

gnosiologismo de toda a cultura filosófica dos séculos XIX e XX; a teoria do conhecimento tornou-se modelo para todas as teorias de todos os outros domínios da cultura [...], e o sujeito, participante do acontecimento, torna-se o sujeito de um conhecimento puramente teórico sem participação no acontecimento.

Segundo Bakhtin (2010, p. 81), “A consciência gnosiológica, a consciência da ciência, é uma consciência única e singular (ou melhor, uma consciência só)”, ou seja, não admite outra consciência autônoma além de si própria, assim: “Essa consciência única cria e forma seu objeto somente enquanto objeto, e não enquanto sujeito, e o sujeito não passa de objeto para ela”.

Como já discutimos, seria desastroso para a ciência humana tratar o sujeito como objeto, no sentido de excluir aquilo que faz dele uma consciência autônoma, que pode dialogar. No entanto, a busca por uma verdade no âmbito do discurso é exatamente isso: uma objetificação do sujeito sob uma semântica conteudística, que vê as palavras apenas como sinais portadores de significados decodificáveis, independentes dos sujeitos falantes, herméticas e impermeáveis a quem as usa. Essa postura exclui a possibilidade de existência de um enunciador/tradutor e do seu ponto de vista singular. Muito se fala sobre ética da tradução, questionando-se afiliações teóricas e ideológicas dos tradutores. Como seria possível, então, sob a ótica de uma teoria cientificista da tradução, investigar essas posturas, isto é, esse lugar de onde fala o tradutor, essas tomadas de posição? Simplesmente não seria possível, pois a voz enunciativa está excluída nessa visão.

Sendo a natureza da linguagem dialógica, é impossível assumir uma postura desse tipo em relação à linguagem e, por conseguinte, à tradução. Primeiro, porque da ótica cientificista o enunciado é algo autossuficiente (como unidade da língua, “oração”), desprezando-se portanto um fator constitutivo da linguagem — o fato de que um enunciado sempre dialoga com outros enunciados; segundo, porque exclui os sujeitos do acontecimento (no caso em estudo, o autor, o tradutor e o público- alvo); se o enunciado não faz parte do diálogo social, se ele pode ser isolado, fica excluída a possibilidade da existência de vozes enunciativas do(s) sujeito(s), especialmente na tradução. Terceiro, porque o cientificismo ignora a apreciação valorativa, que já vimos ser parte inerente a qualquer enunciado da vida real, uma vez que resulta da entonação expressiva que expressa os valores (certo, errado; verdade, mentira) do sujeito concreto da enunciação.

Faz sentido que Bakhtin rejeite completamente a possibilidade da fusão entre sujeitos, consequência dessa postura gnosiológica. Disso se conclui, por oposição, que ele valoriza a multiplicidade de pontos de vista, como diz no trecho abaixo:

O que enriqueceria o acontecimento se eu me fundisse com outra pessoa, se de dois passássemos a um? Que vantagem teria eu se o outro se fundisse comigo? Ele veria e saberia apenas o que eu vejo e sei, ele somente reproduziria em si mesmo o impasse de minha vida; é bom que ele permaneça fora de mim, porque dessa sua posição ele pode ver e saber o que eu não vejo nem sei a partir de minha posição, e pode enriquecer substancialmente o acontecimento da minha vida. Se apenas me fundo com a vida do outro, não vou além de aprofundar a sua inviabilidade e duplicá-la numericamente. [...] [Assim,] minha vida é vivenciada empaticamente por ele em nova forma, em nova categoria axiológica como vida do outro, que tem colorido axiológico diferente e é aceita e justificada diferentemente da própria vida dele (BAKHTIN, 2010, p. 80).

Para não restarem dúvidas: nenhuma dessas posturas cientificistas abarca a complexidade do funcionamento concreto (e não abstrato) da linguagem viva. No funcionamento da linguagem, os incontáveis fios dialógicos são acionados a cada nova enunciação de um sujeito, e a retomada do enunciado provoca um conflito de enunciações entre as vozes de vários sujeitos, sendo o ponto de vista apenas uma consequência direta do lugar discursivo de onde o tradutor fala e da posição assumida no ato da enunciação.

Voltando à questão principal desta seção, podemos dizer (embora Bakhtin não se refira diretamente a isso) que o ponto de vista é resultante do excedente de visão, um conceito muito caro à filosofia desse autor.

Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse — excedente sempre em face de qualquer outro indivíduo — é condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim (BAKHTIN, 2010, p. 21).

Para Bakhtin (2010, p. 190), isso tem consequências seriíssimas, pois o fato de estarmos situados em um lugar único no mundo implica que nossa existência é única, donde ele conclui que “não podemos mostrar nosso álibi no acontecimento de existir”; para ele, em qualquer circunstância em que se tenta usar de álibi no enunciado, isto é, esvaziá-lo do sujeito ou abstraí-lo do real, “não pode haver nada de responsável, sério nem significativo”.

Cunha (2015, p. 95) oferece um comentário sobre essa “não coincidência de visões”, explicando que não podemos ter a mesma percepção, os mesmos sentimentos, desejos, valores — em suma, os mesmos pontos de vista — do outro, sendo possível haver apenas haver semelhanças e diferenças entre pontos de vistas de diferentes sujeitos.

A nosso ver, considerar a existência de um ponto de vista é uma consequência lógica (e inescapável até) do fato de que não temos acesso ao mundo real e material senão através de nossa própria experiência — é somente porque existe um real que pode existir um ponto de vista em relação a ele. Nesse sentido, François (2015, p. 6) pondera que se pode falar em “diferenças de orientação”, “modos de considerar os problemas”, “acentuações” ou “panos de fundo” nesse mesmo sentido em que ele explora a noção de ponto de vista, que ele considera uma tomada de posição em relação ao mundo. Comentando a abordagem de Ducrot sobre o tema, Cunha (2015, p. 89) também aproxima as noções de ponto de vista e tomada de posição e afirma que o locutor não fala do mundo como tal, mas o faz de um ponto de vista que nem sempre está explícito (CUNHA, 2015, p. 92). O importante, como diz François (2015, p. 8), é que, através do dito, se manifesta uma espécie de “atitude global”, uma forma de se relacionar com o mundo41

. É isso que uma análise que tem como objeto os pontos de vista busca desvendar, embora sabendo que não há como apreender de forma exata, apenas ler indícios (ou, como diz Cunha, “marcas linguísticas”) desses pontos de vista.

Não podemos perder de vista que toda experiência e, portanto, todo enunciado concreto estão imbuídos de um tom emotivo-volitivo de corrente dos modos de percepção, do background e dos valores de cada sujeito. O que terá a consequência fundamental para a tradução de não existirem enunciados neutros, como já vimos antes.

A noção de ponto de vista também desestabiliza a semântica conteudista. Cunha (2015, p. 97) aponta que essa noção está ligada à de linguagem como um lugar heterogêneo, onde o uso das unidades da língua produz sentidos diferentes de acordo com a situação, contexto, recepção e o horizonte no qual se encontra. Isso parece claro, tendo em vista que, na visão dialógica, o enunciado concreto é situado por uma série de “parâmetros” (não deterministas, claro), entre os quais estão os sujeitos e a situação mais imediata. Não quer dizer que haja um total relativismo do sentido, do contrário não haveria comunicação. Existe, como já explicamos antes com base em Volóchinov, o significado enquanto instância inferior da capacidade de significar. Mas os significados cristalizados são apenas carregados de potencial, ou seja, “o texto não é uma unidade em que já há sentidos prontos e acabados, mas feixes de possibilidade de sentido”, como diz Sobral (2008, p. 58).

41 François também aventa a possibilidade de se falar em “modos de estruturação da experiência”, uma formulação que nos parece muito adequada.

Em suma, como explica François (2015, p. 14), os usuários da língua não se reportam ao “significado” das palavras. A questão é que, ao enunciar o sujeito enquanto falante parte desses usos prévios para produzir sentidos, acentuando suas palavras a partir de seu ponto de vista, de sua visão de mundo, através da entonação expressiva do enunciado.

Para resumir, podemos dizer que estamos sempre diante de pontos de vista, que são nossa maneira de ser, de sentir, de pensar, de dizer, como define François (apud CUNHA, 2015, p. 98).

Passemos a discutir um pouco a questão da nominação, que é importante para nossa hipótese de que a tradução trabalha com relações dialógicas (tendo a palavra como “arena”) e está relacionada à do ponto de vista, como se verá.