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2 METODOLOGIA

2.2 MÉTODO COMPARATIVO DIFERENCIAL

Heidmann (2005, 2010a, 2011) propõe um método de comparação que aplica tanto à literatura quanto à tradução. O termo “diferencial” não é à toa: trata-se de um aparato que se concentra na diferença, isto é, na compreensão das particularidades de cada cultura e de cada língua, mas partindo do texto. A autora compartilha da visão de Borutti quando esta diz que não podemos nos apartar da língua, já que “habitamos radicalmente nossa própria língua, seus jogos linguísticos, suas teorias e trazemos em nós as reificações, as ontologias, as formas de construção do mundo” (apud Heidmann, 2010b, p. 63). Por isso, Heidmann critica abordagens que perdem de vista o texto, como nos Estudos Culturais. Ela se preocupa primordialmente com o texto enquanto discurso, adotando a definição de Maingueneau (2008, p. 172) de que discurso é uma “maneira de apreender a linguagem”.

Na exposição desse método, a autora destaca os princípios epistemológicos fundamentais, que passamos a apresentar sucintamente agora. O primeiro ponto que Heidmann (2005, p. 102) destaca é o fato de que comparar, por definição, implica que os fenômenos ou textos são de algum modo diferentes. Isso é fundamental também para a nossa abordagem aqui, visto que partimos do princípio de que tradução e texto-fonte são dois enunciados distintos, conforme discutimos anteriormente (COSTA E SILVA, 2011). Segundo Borutti (2013, p. 25-26), a tradução é, no fundo, mostrar e aceitar a diferença e, ao mesmo tempo, tem como tarefa fundamental estabelecer uma comunicação dinâmica entre as diferenças.

O segundo é que é preciso conceber a abordagem comparativa como um ato de construção. Para Heidmann (2011, p. 354), esta evidência epistemológica é frequentemente esquecida em favor de uma essencialização ou reificação dos conceitos. Heidmann retoma então o pressuposto, com o qual concordamos, de que “todas as teorias, todas as noções e unidades de análise e todas as identidades são construções de objeto” (HEIDMANN, 2005, p. 103). É a tese já relativamente difundida de que a neutralidade científica é um mito, pois nossa própria abordagem condiciona a análise do objeto; pelo fato de que, como já dissemos neste texto, não temos acesso direto à realidade. Por isso, como diz Heidmann (2005, p. 103), importa explicitar as razões de ser e os pressupostos dessa construção para que seja o mais pertinente e fecunda possível no plano heurístico. E, no caso de uma abordagem comparativa diferencial, importa também construir um eixo de comparação suficientemente pertinente e complexo para dar conta ao mesmo tempo dos traços comuns que observarmos e das diferenças fundamentais dos fenômenos a serem comparados (HEIDMANN, 2005, p. 103).

O terceiro ponto crucial é que, nesse eixo de comparação construído por nós, os textos estejam “em um mesmo plano, isto é, em uma relação não hierárquica”, em que os critérios de comparação não privilegiem nem um nem outro texto; caso contrário, “não estamos mais em um processo de comparação, mas de avaliação ou hierarquização”, diz ela (2010b, p. 67). Isso porque, para Heidmann (2011, p. 357):

O pressuposto hierárquico deixa logo em desvantagem um dos textos ou um dos termos da comparação e não permite mais uma verdadeira análise comparativa. Essa análise exige como eixo de comparação um critério que atribui aos enunciados e textos a serem comparados a mesma atitude de construir efeitos de sentido57.

Em outras palavras, quando avaliamos, um dos textos torna-se parâmetro estático de comparação, objeto monolítico que o outro texto deve espelhar. Portanto, não podemos em nossa análise “avaliar” a tradução em relação ao texto-fonte, pois isso impediria uma análise comparativa que observe essa construção de sentidos em ambos os textos. Além do mais, uma consequência ainda mais grave de se fazer uma avaliação é que com isso estaríamos admitindo a existência de uma única “interpretação correta” desse “original” hierarquicamente superior, o que seria admitir também a existência de uma única tradução “verdadeira” para cada texto, argumento que já questionamos antes (COSTA E SILVA, 2011).

57 “Falar de ‘efeitos de sentido’ é dizer que não há sentidos fixos numa língua que seriam equivalentes a outros sentidos fixos em outra língua” (SOBRAL, 2008, p. 82).

Uma vez que, de acordo com Heidmann (2010b, p. 86-87), “toda concepção de linguagem e de literatura que instaura hierarquias de valor impossibilita uma verdadeira comparação interlinguística e intercultural”, torna-se indispensável uma concepção que não incorra nesse entrave epistemológico. A autora (2010b, p. 70) conclui então que:

Para uma comparação que respeite o princípio da relação não hierárquica, é necessário, portanto, mudar de ótica e focalizar em uma dimensão tão pertinente para o texto de partida quanto para o texto da tradução. A enunciação é uma dessas dimensões. O texto primeiro é, com efeito, enunciado em um contexto espaço-temporal específico e é em interação com este que ele produz efeitos de sentido singulares. Isso vale igualmente para o texto da tradução que se enuncia em um contexto linguístico e cultural diferente, produzindo obrigatoriamente efeitos de sentido próprios e diferentes. Podemos, então, comparar dois textos em uma relação não hierárquica com a condição de considerá-los cada um como uma enunciação singular que constrói seus efeitos de sentido ligando-se de forma significativa a seu próprio contexto sociocultural e linguístico.

Dentre as possíveis teorias da enunciação, a autora evoca particularmente a visão de Bakhtin. A concepção dialógica, segundo Heidmann (2010a, p. 82), “torna possível uma comparação diferencial que respeite as exigências epistemológicas inerentes à comparação como método e como instrumento heurístico”. Em outro texto, a autora (2011, p. 351) explica sua opção por essa concepção:

Nesta ótica, cada texto, enquanto enunciado e discurso, constrói seus efeitos de sentido

em resposta a outros textos e discursos, ou seja, em resposta ao que se disse,

anteriormente, em um jogo perpétuo de diferenciação, de variação e de renovação de sentido.

De fato, a natureza dialógica da linguagem nos permite colocar ambos os textos envolvidos na tradução (fonte e alvo) em um mesmo plano. Em termos bakhtinianos, podemos dizer que ambos são enunciados que retomam o já-dito e se dirigem a um ouvinte ativo, sendo elos da cadeia infinita da comunicação humana. Assim, como conclui a própria autora (2010a, p. 82), “nessa perspectiva, comparar quer dizer, então, fazer dialogar”.

Portanto, sendo também uma enunciação, a tradução põe-se naturalmente em diálogo com o texto-fonte que ela re-enuncia, mas também estabelece um diálogo com outros textos e seu próprio contexto — diálogos estes que pretendemos observar e examinar neste trabalho. O que o método comparativo permite concretamente é comparar “a forma de criar efeitos de sentido do texto a traduzir com a de criar efeitos de sentido próprios da tradução”; em outras palavras, “podemos comparar duas formas, necessariamente diferentes, de significar” (HEIDMANN, 2010b, p. 87).

Expusemos e comentamos até aqui os principais princípios do método comparativo tal como proposto por Heidmann. Para fins de clareza, podemos resumir nos seguintes pontos as razões pelas quais consideramos esse método como o mais adequado para a abordagem que pretendemos empreender:

 Na elaboração do método comparativo, Heidmann baseou-se em P. V. Zima, estudioso checo que pensou a abordagem comparativa como instrumento heurístico não somente para a literatura, mas também para as ciências religiosas, políticas, sociais e econômicas (Heidmann, 2005, p. 101). Isso torna o método ainda mais relevante para o nosso objeto, que consiste em texto acadêmico.

 O método comparativo prevê que os objetos a serem comparados são diferentes entre si — sejam a tradução e seu texto-fonte, sejam duas traduções de um mesmo texto. O reconhecimento da diferença, isto é, de que a tradução não é “o mesmo texto em outra língua”, é fundamental para que se possa enxergar as diferentes formas pelas quais eles foram construídos.

 Admitindo que nossos objetos de pesquisa são sempre de algum modo construídos, vemos no método proposto por Heidmann a melhor forma de construir esses objetos comparáveis, principalmente porque está definida nossa opção teórica de entender a tradução como re-enunciação, o que não nos permitiria tentar analisá-la sob perspectivas tradicionais como a equivalência, por exemplo.

 O método comparativo requer que os textos sejam vistos sob uma concepção não hierarquizante da linguagem, razão pela qual é baseado em parte visão dialógica proposta por Bakhtin — concepção esta que é também a base do nosso trabalho investigativo.

 Apesar de tê-lo usado primeiramente na literatura comparada, a autora enxergou no método potencial para abordagem da tradução, inclusive de textos traduzidos não literários, como mostra em Heidmann 2005, 2010b. Portanto, o método comparativo é um conjunto de princípios epistemológicos norteadores da análise — e é justamente esse método que possibilita uma análise focada nas relações dialógicas e nas formas de construir sentidos dos textos em questão (que é, de modo mais geral, o que pretendemos investigar).