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3 CORPUS

3.2 RELEVÂNCIA DA OBRA E DO AUTOR

John Langshaw Austin (1911–1960), nascido em Lancaster, formou-se em Literae Humaniores — curso da Universidade de Oxford que incluía estudos dos clássicos da Antiguidade romana, grega e latina, além de Filosofia. Assumiu suas primeiras cadeiras de ensino em 1935. Seus principais interesses incluíam Platão, Aristóteles, Kant e Leibnitz, mas também foi influenciado por contemporâneos como George E. Moore, J. Cook Wilson e H. A. Prichard, filósofos que ficariam conhecidos por seguir a subcorrente filosófica do chamado Realismo de Oxford, cuja preocupação maior eram os julgamentos (STANFORD, 2015).

Mais envolvido no ensino, Austin publicou poucos textos até 1939. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele serviu no serviço de inteligência britânico (MI6), recebendo condecorações da Inglaterra, da França e dos EUA. Após a guerra, retornou a Oxford assumindo a cadeira de Filosofia Moral. Somente em 1946, o filósofo realmente começou a publicar com frequência, alcançando o auge da produtividade na década de 1950. Nesse período, mais precisamente em 1955, ele foi convidado a dar um ciclo de palestras na Universidade de Harvard, como parte

das conhecidas William James Lectures59. Austin viria a falecer de câncer de pulmão em 1960, com apenas 48 anos de idade, em pleno auge da produção. Embora prolífico, morreu sem ter publicado obras. Para Searle (2001, p. 227), a relutância de Austin em publicar tinha origem em parte na cultura de Oxford à época, onde pensadores não costumavam publicar em vida, e parte na personalidade do próprio Austin. Diante disso, surgiu um forte interesse em divulgar suas ideias. Assim, após a morte de Austin, J. O. Urmson e G. J. Warnock se encarregaram de organizar a publicar a obra dele. Na mesma época, além de HTW (1962), publicaram outros dois livros de Austin: Philosophical papers (1961) e Sense and sensibilia (1962).

HTW foi organizado a partir das notas que Austin tinha preparado para as William James Lectures, sendo o primeiro livro (de uma série de 19 obras) publicado a partir do conteúdo apresentado por um convidado de Harvard. Em seu prefácio à primeira edição, J. O. Urmson (1962, p. v) diz que, segundo o próprio Austin, as ideias ali apresentadas ganharam corpo em 1939. Urmson acrescenta que as notas das aulas/palestras que abordavam esses conceitos foram sendo gradualmente revistas e apresentadas em eventos a partir de 1946, indo até 1955.

Ainda no prefácio, Urmson destaca que tentou usar as notas de Austin o mais literalmente possível, mas que as notas por vezes perdiam a forma de texto corrido, exigindo uma edição. Para fins de conferência com o conteúdo das notas de Austin, foram usadas também anotações de ouvintes das palestras, bem como a gravação em áudio de uma conferência dada por Austin em 1959. O resultado, conclui Urmson (1962, p. vi-vii), é que aqui e ali pode ter sido usada uma frase que Austin não teria gostado, mas que é muito improvável que qualquer aspecto das principais linhas do pensamento de Austin tenha sido representado equivocadamente.

Uma década depois da primeira edição, Urmson retornou a HTW junto com Marina Sbisà para uma revisão, trabalho que incluiu uma nova comparação da edição de 1962 com notas e glosas do próprio Austin, resultando na segunda e última edição, publicada 1975. Nessa edição, foi incluído um apêndice onde estão indicados comentários, reconstruções de frases e exemplos inseridos, fazendo-se o registro de que essas fontes secundárias foram usadas apenas para fins de conferência, visto que o texto original de Austin precisava de poucos acréscimos,

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The William James Lectures é um programa da Universidade de Harvard iniciado nos anos 1930 pelos Departamentos de Filosofia e Psicologia. Entre os palestrantes figuram nomes célebres como J. Dewey, B. Russell, B. F. Skinner, K. Popper, R. Oppenheimer, H. P. Grice, A. J. Ayer e M. Foucault. Apesar de mais esporádico, o evento ainda existe. A conferência mais recente foi realizada em 2012.

sendo mais completo do que outras fontes. Para os editores (URMSON & SBISÀ, 1975, p. v), esse novo texto ficou mais claro, mais completo e ao mesmo tempo mais fiel às notas que Austin escreveu.

O fato é que a obra introduziu, na filosofia e na linguística, ideias que representaram um marco de ruptura com a tradição lógica da Filosofia Analítica. O livro consolidou postulados teóricos e terminologia que resistiram às críticas e às décadas. Isso é referendado por autores como Hacking (1999, p. 185), que considera Austin “o filósofo quintessencial da linguagem”. Longworth (2011, p. 103) também destaca que seu trabalho com atos de fala causou um impacto significativo e duradouro no mundo filosófico como um todo.

Não cabe neste trabalho, a não ser quando necessário para a compreensão das análises, explicar a teoria contida em HTW. Porém, é importante assinalar que, apesar de ter se inserido na tradição linguística, o diálogo da obra de Austin é majoritariamente com a tradição filosófica analítica. A proposta austiniana das condições de felicidade, por exemplo, representou um contraponto à tradição das condições de verdade que dominavam o campo e ganharam força com filósofos como Gottlob Frege, Bertrand Russell e o Wittgenstein do Tractatus. Como se sabe, o valor de verdade, vindo da lógica, era a forma usada pela filosofia analítica para avaliar se uma proposição era verdadeira ou falsa partindo-se de seu “significado linguístico”, expressão usada por muitos desses filósofos e que indicava que a análise da língua excluía por princípio fatores externos que não fossem o objeto referenciado pelo significado de uma expressão. Para Austin, uma declaração como “O atual rei da França é careca” (para usar o exemplo clássico da filosofia analítica) não seria verdadeira nem falsa, mas simplesmente um ato de fala infeliz.

Embora nem todas as ideias de Austin tenham tido a mesma aceitação que a teoria dos atos de fala, o livro teve alcance mundial60, sendo traduzido para diversas línguas, como francês, alemão, espanhol e português. No Brasil, uma pesquisa rápida no currículo de cursos de Letras e Filosofia mostra que é difícil encontrar, principalmente nas universidades mais importantes do País, cursos que não incluam a Teoria dos Atos de Fala.

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O Google Scholar, que contabiliza referências em textos acadêmicos, registra mais de 30 mil citações da obra em inglês, quase 3 mil da versão francesa, cerca de 2.500 da tradução para o espanhol e perto de mil da edição brasileira.

Como se sabe, é creditado a Austin, bem como a Ludwig Wittgenstein (cada um em sua linha, como apontam Cohen, 1997, p. 36, e Searle, 2010), o pioneirismo na chamada filosofia da linguagem ordinária. A vertente que se desenvolveu em Oxford envolvia, além de Austin, nomes como Gilbert Ryle e Alfred Jules Ayer já nos primórdios e, posteriormente, Peter Strawson, Richard Hare, entre outros. No caso de Austin, o principal fator para essa “virada” talvez seja o mote que permeia sua obra: sua rejeição em avaliar enunciados simplesmente em verdadeiro ou falso, como fazia a filosofia analítica. Segundo Cohen (1997, p. 36), a filosofia da linguagem ordinária forneceu o primeiro sistema de ideias frutífero para as bases da pragmática61. Searle (2001, p. 226-227) diz que Austin ofereceu um novo modelo de fazer filosofia, mas que este não achava que seu método fosse a única forma correta de abordar o assunto.

Austin tinha uma preocupação particular com as palavras. Em seu texto A plea for excuses (1961), em que analisa expressões usadas pelas pessoas para se justificarem, ele faz observações sobre as palavras (AUSTIN, 1970, p. 181):

Em primeiro lugar, as palavras são nossas ferramentas, e, no mínimo, deveríamos usar ferramentas limpas: deveríamos saber o que queremos dizer e o que não queremos, e temos que nos resguardar contra as armadilhas que a língua arma para nós. Segundo, as palavras não são (a não ser no seu cantinho particular) fatos ou coisas: temos então que arrancá-las do mundo, para mantê-las afastadas dele e contra ele, para que possamos perceber as inadequações e arbitrariedades delas, aí podemos olhar novamente para o mundo sem antolhos. Terceiro, [...] nosso estoque comum de palavras incorpora todas as distinções que os homens acharam que valia a pena no curso da vida de muitas gerações.

Essa ideia de afiar, limpar, como metáfora para definir e precisar sentidos pode ser encontrada em vários pontos da obra de Austin, pois era algo fundamental na visão dele. A definição, diz Austin (1970, p. 189), deve estar no topo de nossos objetivos. E nisso o filósofo tinha uma preocupação também etimológica e histórica62, pois defendia a tese de que uma palavra raramente se livra de sua etimologia e de sua formação, a despeito de todas as extensões e acréscimos aos seus sentidos (1970, p. 201).

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A pragmática deu seus primeiros passos como área com Charles Morris, contemporâneo de Austin. Em 1938, na esteira de J. Locke e C. S. Pierce, Morris estabeleceu como ramos da semiótica (ciência dos signos) a sintaxe, a semântica e a pragmática (LEVINSON, 2007, p. 1).

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Em A plea for excuses (1970, p. 182), Austin diz que preferia que esse campo já não estivesse tão saturado na filosofia tradicional e que até a filosofia ordinária muitas vezes era “infectada” pelo “jargão de teorias extintas” e também por “nossos próprios preconceitos”. Ele sugere que melhor seria, “ao menos uma vez”, não ter que pensar em Kant, Aristóteles ou Platão para abordar certos tópicos.

Essa preocupação com a precisão de sentido é apontada também por Searle (2001, p. 222), quando diz que é característico da abordagem de Austin mostrar que o que parecem dois sinônimos (ou quase sinônimos) são na verdade bem diferentes, assim como prestar atenção aos mínimos detalhes da linguagem (p. 226). Aliás, a sua filosofia é baseada nisso: Austin defendia que o primeiro passo da filosofia deveria ser uma análise extremamente cuidadosa do uso ordinário das expressões linguísticas.

Não é à toa que, ao criar a terminologia de sua teoria de atos de fala, Austin redefiniu termos conhecidos, adotou palavras pouco usuais em inglês ou até mesmo criou novas palavras, muitas vezes com raízes no grego ou no latim, como revelam as notas de rodapé de HTW — fato que também pesou para este livro se tornar corpus da nossa pesquisa.

Nos últimos anos, Austin vem ganhando novamente destaque com coletâneas de ensaios como The Philosophy of J. L. Austin (GUSTAFSSON & SORLI, 2011), publicado pela Universidade de Oxford; Symposium on J. L. Austin (FANN, 2012), republicação da editora Routledge; e J. L. Austin on Language (GARVEY, 2014), da Palgrave Macmillan, incluindo textos de J. Searle e M. Sbisà. Isso mostra o quanto a obra e a filosofia de Austin de modo geral ainda são consideradas relevantes.