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Análise e Discussão da entrevista com Doroty 1 A Crise

Análise e Discussão da entrevista com Doroty

3. Análise e Discussão da entrevista com Doroty 1 A Crise

A análise da entrevista de Doroty mostra que ela viveu uma profunda crise existencial por volta dos 50 anos de idade. Embora, segundo Moffatt (1982)75, crises evolutivas sejam freqüentes na passagem da vida adulta para a

maturidade, a crise vivida por Doroty apresentou-se em proporções maiores do que as previstas na maturidade.

O sentimento de paralização, descrito por Moffatt como experiência de parada da continuidade da vida, atingiu todas as dimensões de sua existência, modificando-a significativamente.

Oriunda de uma família católica, Doroty, estudou em um colégio católico e teve formação religiosa. Declarou, na entrevista, que era uma “católica conservadora”, e descreveu seu modo de viver a religião como submissão a

um conjunto de regras e normas às quais deveria sujeitar-se. Seu modo de viver a fé equiparava-se ao que Fowler (1992)76 identifica como uma fé mítico-

literal, na qual a pessoa se guia por uma interpretação literal e fundamentalista dos preceitos da sua religião.

Nesta perspectiva religiosa, Doroty considerava que deveria submeter- se ao seu marido e suportar uma vida insatisfatória, pois, separar-se, seria ir contra as regras da religião que pautava a sua vida. Nesse caminho, Doroty conta que “se deixava dominar pelo marido”. Para Doroty, as normas e as

regras católicas ordenavam que devia “anular-se e submeter-se” e ela investia

profundamente em uma vida conforme à regra, tomando a obediência à religião, como a entendia, como uma garantia de sua integridade.

Ao redor dos 50 anos de idade, Doroty começou a rever retrospectivamente o seu passado e a reconhecer-se apenas como “doméstica e serviçal”, sem voz nas decisões da vida familiar, privada da possibilidade de

emitir opiniões. Nessa tomada de consciência da situação em que vivia, Doroty, como diz Pereira (2009)77, viu negados os seus recursos e as suas potencialidades e bloqueado o seu futuro. Em suas palavras, “reconheceu que perdia a sua identidade”.

Em crise, Doroty questiona o seu modo de vida, vê a sua relação com o marido como patológica e se defronta com a necessidade de romper o seu casamento. Reconhece que se encontra paralisada, pois, esse modo de vida é desistir do próprio eu e da própria voz mas, por outro lado, separar-se do

76 James W. FOWLER, Estágios da Fé. A psicologia do Desenvolvimento Humano e a Busca de Sentido,

p. 130-147.

77 Leidilene Cristina PEREIRA, A interface entre o aconselhamento psicológico e o aconselhamento

marido é romper com os valores religiosos que até o momento regeram a sua vida.

Diante do conflito, Doroty decide conversar com o padre de sua paróquia.

Forghieri (2007)78 lembra que por mais doente que o indivíduo esteja

sempre apresenta indícios de saúde existencial.

Neste sentido, o movimento de Doroty, de buscar ajuda, apresenta-se como um movimento saudável que rompe a paralização característica da crise. Doroty afirma em sua entrevista “foi então que abri os olhos para o mundo e fui buscar ajuda”. A crise que ameaçou a integridade de Doroty e colocou à prova os seus recursos levou-a a procurar novas maneiras para lidar com as situações que vivia.

A escolha de buscar direção na igreja e “pedir conselhos ao Padre Tomé79”, mostra, um enfrentamento religioso positivo, como estratégia utilizada

para lidar com a crise. Neste enfrentamento, segundo Pargament e cols. (198880, 199781, 1998ª82, 200083), Doroty recorre aos seus recursos internos disponíveis e se volta para Deus, representado pelo padre, para uma redefinição de sua vida. De fato, Doroty busca resolver seus problemas sem romper com os seus valores.

Escutada pelo Padre Tomé, Doroty ampliou sua percepção e descobriu um caminho que antes não via e não conhecia, ou seja, “podia romper o

78 Yolanda Cintrão FORGHIERI, Aconselhamento Terapêutico: origens, fundamentos e prática, p. 44. 79 Nome fictício.

80 K. I. PARGAMENT & Cols. Religion and the problem-solving process: three styles of coping, p. 94-

104.

81 K. I. PARGAMENT. The psychology of religion and coping: theory, research, practice, 548p.

82 K. I. PARGAMENT; B. W. SMITH; H. G. KOENING; L. M. PEREZ, Patterns of positive and

negative religious coping with major life stressors, p. 710-724.

83 K. I. PARGAMENT & Cols. The many methods of religious coping: development and initial validation

casamento” e continuar na igreja e ela se deu por satisfeita, naquele momento

específico, para continuar seu percurso existencial, (PEREIRA, 2009)84.

Poder falar e ser ouvida, e sentir-se acolhida pelo Padre Tomé, iniciou um processo de transformação. Pode-se dizer, com Bellak e Small (1978/1980)85 que um pequeno input tem o potencial para efetuar uma

mudança, desproporcionalmente maior que ele próprio. Ou seja, neste processo, as potencialidades mobilizadas de Doroty foram intensificadas pela escuta e pelo acolhimento que facilitaram o encaminhamento da resolução da crise.

3.2 - O acolhimento

Ser escutada pelo Padre de sua igreja proporcionou para Doroty uma experiência de acolhimento que deu início a um processo de mudanças no seu modo de ser e de se relacionar com as pessoas. A escuta, já dizia Rogers (1997)86, proporciona uma “expressão e uma utilização mais funcional dos recursos internos latentes”. Doroty não estava acostumada a falar, “não podia

ter opinião nas decisões da vida familiar”, conseguir falar com alguém que a

escutou permitiu começar a apropriar-se da sua existência.

A escuta do Padre Tomé desencadeou um fluxo de expressividade por meio do qual ela retomou a atualização do seu ser.

84 Leidilene Cristina PEREIRA, A interface entre o aconselhamento psicológico e o aconselhamento

espiritual, p. 17.

85 Leopold BELLAK & Leonard SMALL, Psicoterapia de Emergência & Psicoterapia Breve, p. 44. 86 Carl R. ROGERS, Psicologia e Consulta Psicológica, p. 46.

Amatuzzi (1989)87 lembra que ouvir sem esquemas seletivos, dar o tempo necessário e não interromper a fala nem mudar de assunto requer também que se fale para que o outro saiba que está sendo ouvido e compreendido no que diz.

Pisaneschi (2009)88 relata que a escuta do padre deve possibilitar à

pessoa que está sendo ouvida o reconhecimento de ser amada, o que pode provocar mudanças em sua vida.

Doroty diz que “no casamento perdia a sua identidade”, não era ouvida,

assim, ao ser escutada, começou um movimento para recuperar a sua identidade. Ao ver compreendidas as experiências que lhe eram importantes, ela se abriu a um processo de mudanças, (ROGERS, 2007)89.

O apoio do Padre Tomé proporcionou uma modificação no seu modo de ser religiosa. Doroty compreendeu que, em sua religião, quando o casamento fica insustentável pode divorciar-se e que isso não implica no rompimento na sua relação com Deus e com a Igreja.

Foi a partir das conversas com o Padre Tomé, que Doroty “começou a frequentar na sua paróquia um grupo de Renovação Carismática Católica”. Ela

começou a sentir-se parte integrante de um grupo que aderia ao mesmo sistema de crenças seu e que, portanto, mantinha um elevado nível de coesão (GALANTER, M. 1978)90.

Para Doroty, sentir-se acolhida em seu sofrimento e na intenção de separar-se do marido, possibilitou revisitar elementos doloridos da sua história,

87 Mauro Martins AMATUZZI, O Resgate da Fala Autêntica, Filosofia de Psicoterapia e da Educação, p.

172.

88 Vandro PISANESCHI, Contribuições do aconselhamento psicológico para a prática de direção

espiritual, p. 84.

89 Carl R. ROGERS, Um Jeito de Ser, p. 6.

90M. GALANTER, The “relief effect”: A sosiobiological model for neurotic distress and large-group

reconhecer suas dificuldades e redefinir a sua vida, estabelecendo outros objetivos e escolhas dentro de suas possibilidades, (FORGHIERI, 2007)91.

Conforme Amatuzzi (1999)92, retomar estágios vividos anteriormente, ser acolhida e poder confiar em alguém que escute e acolha, permite retomar a atualização e o desenvolvimento de potenciais.

Doroty se identifica com o grupo que escolhe. Conforme Amatuzzi (1999)93, o sentido para vida expresso pela fé e pela confiança se manifesta

nesse outro que é o grupo escolhido que permite fazer experiências significativas.

A partir da escuta e do acolhimento do Padre Tomé, Doroty reviu o modo como entendia a sua religião. Ela pôde re-significar sua compreensão das regras e normas às quais se sujeitava, e iniciou a retomada do equilíbrio emocional abalado pela situação de stress na qual vivia.

O fato de Doroty frequentar regularmente o Santuário, e encontrar sempre o mesmo espaço, os mesmos lugares, as mesmas pessoas, os encontros e conversas freqüentes com o Padre Marcelo, criou uma situação de sustentação, de holding. Em uma perspectiva winnicottiana, Barreto diz que a

“função do holding é tudo que no ambiente, fornecerá a uma pessoa a experiência de uma continuidade, de uma constância tanto física, quanto psíquica” (BARRETTO, 1998)94.

Doroty vinculou-se ao grupo de colaboradores voluntários no Santuário e a estruturação do lugar e do trabalho contribuíram para que ela se reinserisse

91 Yolanda Cintrão FORGHIERI, Aconselhamento Terapêutico: origens, fundamentos e práticas, p. 44. 92 Mauro Martins AMATUZZI, Desenvolvimento Psicológico e Desenvolvimento Religioso: uma

hipótese descritiva. In: Marina MASSINI & Miguel MAHFOUD (Org.), Diante do Mistério: Psicologia e Senso Religioso, p. 133.

93 Idem, p. 134.

94 Kleber Duarte BARRETTO, Ética e Técnica no acompanhamento terapêutico. Andanças com Dom

socialmente. Conforme Moffatt (1982)95 no relacionamento com outros voluntários e no relacionamento com o sagrado no qual re-significou a sua vida, ela encontrou um espaço para compartilhar suas vivências. O grupo ofereceu uma série de estímulos organizados que a sustentaram na re-organização de sua vida.

A crise vivida finaliza à medida em que ela encontra um novo sentido para sua vida, recupera o sentido de continuidade da sua existência e pode projetar algo para o futuro, (MOFFAT, 1982)96. Ela mantêm a sua posição de servir, porém, agora, o faz em um contexto onde a mutualidade proporciona reconhecimento e valoriza a sua dedicação.

Pensando no futuro, Doroty, diz que “vai colaborar como voluntária enquanto tiver condições físicas e saúde, que se sente realizada pelo que faz”.

De fato, ao servir como colaboradora voluntária no grupo, cresceu na sua fé, saiu do estágio da fé mítico-literal e alcançou o estágio da fé sintético- convencional no qual a referencia passa a ser o outro, o grupo, e motivada ela encontra nova vitalidade para continuar crescendo (FOWLER, 1992)97.

O serviço voluntário possibilitou para Doroty, “trabalhar com muito amor, com muito prazer”. Para Amatuzzi (1989)98, ela passa a ter vivências

operativas, pois percebe o que está fazendo e reafirma as decisões que tomou para servir como voluntária.

Retomando, que os resultados da escuta e o sistema de sustentação, favorecido por um ambiente estável, constância rotineira das tarefas,

95 Alfredo MOFFATT, Terapia de Crise, teoria temporal do psiquismo, p. 131. 96 Idem, p. 55.

97 James W. FOWLER, Estágios da Fé. A psicologia do Desenvolvimento Humano e a Busca de Sentido,

p. 20.

98 Mauro Martins AMATUZZI, O Resgate da Fala Autêntica, Filosofia de Psicoterapia e da Educação, p.

disponibilidade de outros estarem junto à ela possibilitam que Doroty ultrapasse a crise na qual estava imersa e retome o seu caminho, transformando a sua vida.

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