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CLASSES DE UNIDADES NARRATIVAS

5.2 Análise do corpus

Para fins de compreensão geral, iniciemos com uma síntese do conto de Machado de Assis, parte de nosso material empírico:

Conto de escola

Os estudiosos da obra machadiana reconhecem que ainda há muito a se pesquisar sobre seus escritos. O texto que escolhemos para realizar nosso estudo de fins comparativos, Conto de escola, foi publicado pela primeira vez em 1884, na Gazeta de Notícias, e posteriormente selecionado para a coletânea Várias Histórias, em 1896. Vejamos um pequeno resumo e algumas análises de estudiosos sobre esse texto.

O conto é ambientado no Rio de Janeiro, no século XIX, e deriva das lembranças de Pilar, narrador-protagonista, sobre sua época de escola. Ele apresenta todo o ambiente, o caminho até a escola, fala de si mesmo e do pai. Todas essas descrições funcionam como um pano de fundo, enquanto que o protagonista vai-se encaminhando para a escola. Pilar descreve o professor, o ambiente na sala, para lançar a atenção sobre um episódio em especial: o colega Raimundo, filho do professor Policarpo, propõe a Pilar que este lhe ensine um ponto da lição em troca de uma moeda de prata. Pilar pensa em negar, mas acaba cedendo. Os dois, que julgavam não estar sendo observados por ninguém, são delatados por outro colega, Curvelo. Pilar e Raimundo são severamente castigados. Pilar pensa em vingar-se de Curvelo, mas o delator acaba por escapar. No dia seguinte, Pilar sai mais cedo para ir à escola na tentativa de

recuperar a moeda da qual o mestre Policarpo se livrou, atirando-a à rua. Depara-se, então, com uma companhia do batalhão de fuzileiros em marcha e acaba por esquecer sua busca, na ânsia por acompanhar os soldados, esquecendo-se também da corrupção, da delação e, mais uma vez, de comparecer à aula.

Recordando-se de si mesmo quando criança, Pilar apresenta-se como um menino sem virtudes. Não gostava de frequentar a aula e a única motivação que o faz ir à escola no dia em questão é a lembrança da última surra que levou do pai, velho empregado ríspido e intolerante, exatamente por essa falta.

Raimundo, colega de Pilar e filho do mestre, é um menino limitado, sobre o qual recaíam rígidas cobranças, exatamente por ser filho do professor. A inteligência, que sobra em Pilar, falta em grande quantidade a Raimundo. O grave crime dos dois é justamente esse: Pilar “vender” seus conhecimentos a Raimundo, em troca da moeda de prata.

A importância do conto reside no conhecimento que temos acerca da infância do narrador personagem e suas reações em relação às situações sociais com as quais se deparava. Pilar adulto transmite ao leitor suas impressões atuais sobre os fatos que aconteceram em sua infância.

Ribeiro (2006) afirma que a construção da narrativa desse conto machadiano dá-se por dialogia: a personalidade de Pilar versus a personalidade do pai e, posteriormente, em confronto com a personalidade de Raimundo; o espaço da escola versus o espaço da rua; a imagem de um papagaio de papel voando no espaço externo versus o modo ereto de sentar-se em sala de aula, de pernas unidas; Curvelo versus os meninos da rua.

Como é de costume na obra machadiana, Conto de escola está impregnado de severas críticas sociais, todas elas subjetivas, mascaradas nas atitudes e nas avaliações que Pilar faz de si e dos outros.

Kloss, Santos e Umbach (2002) discordam de Proença (1997) quando afirma que a esperança, representada pela figura da criança em Conto de escola, afasta um pouco o conto do estilo machadiano. Na perspectiva deste último, isso fica claro no episódio em que Pilar escuta o som do tambor da marcha militar e esquece a vingança contra Curvelo e também de encontrar a moeda. Porém, Kloss, Santos e Umbach (2002) acreditam que, já nessa obra, estão presentes características próprias da segunda fase do autor, como o pessimismo e a ironia. Pilar narra suas histórias de criança quando adulto. Se havia inocência à época do ocorrido, esta não persistiu no caráter da personagem.

Récits de EJA

Como a produção dos textos utilizados para a construção do corpus de nosso estudo foi solicitada em situação de sala de aula, o material aproxima-se muito do gênero hoje classificado como redação escolar (GERALDI, 1991). Apesar de esses alunos estarem afastados há algum tempo da escola, em grande parte dos casos, o trabalho com esse gênero escolar é o conhecimento básico que eles detêm sobre escrita de textos e, como as redações foram colhidas em situação de sala de aula, os sujeitos deram a entender que achavam que era isso que esperávamos que fosse produzido: uma redação escolar sobre o motivo pelo qual abdicaram dos estudos. De todo modo, esse fato não comprometeu a qualidade do material colhido, visto que não houve indicação quanto ao gênero/tipo que os alunos deveriam utilizar ao compor seus textos.

Para fins de preservação da identidade dos sujeitos pesquisados, os récits de vie produzidos foram digitalizados e, para utilização nessa pesquisa, digitados ipsis litteris. Não foram levados em consideração a inadequação vocabular, ortográfica, morfológica, sintática ou quaisquer outros conceitos que geralmente são utilizados como critério para correção ou análise de redações escolares. O número de linhas a serem escritas também não foi estipulado. Enquanto uns se limitaram a responder às perguntas que compuseram o tema – a saber: qual a profissão que você exerce atualmente? Por que você escolheu essa profissão? Por que você deixou de estudar? Por que você voltou a estudar? -, outros escreveram de forma bem mais detalhada, como veremos na sequência.

A análise

Iniciamos a análise desses materiais recuperando os estudos que trataram da análise da estrutura narrativa desde Aristóteles. Barthes elege duas grandes classes de unidades composicionais da narrativa, uma distribucional, outra integrativa. As estruturas presentes na classe distribucional, denominadas funções, estão num mesmo nível, ao passo que as integrativas, denominadas índices, estão em níveis diferentes entre si e em relação às funções.

Barthes não se alonga na descrição dessas unidades distribucionais. O autor explica que “a compra de um revólver tem como correlato o momento em que será usado (e, se não é usado, a notação transforma-se em signo de veleidade, etc.), tirar o telefone do gancho tem como correlato o momento em que aí será recolocado (...)” (1971, p. 31). Assim, uma ação

forja correlação com outra, iniciando, justificando ou fechando a ação anteriormente principiada.

Para exemplificar usando a narrativa eleita para fins desse estudo como prototípica, selecionemos o momento em que Pilar e Raimundo são descobertos em sua empreitada. Seguindo a proposição de Barthes, a revelação do intento dos meninos por parte do delator Curvelo teria como momento correlato a punição aplicada pelo mestre Policarpo. É salutar observar que a ação da delação de Curvelo fica subentendida. Se fosse descrita, o autor não atingiria o clímax causado pelo momento em que, inebriado por ter recebido a moeda de prata, Pilar é chamado aos brados pelo professor. Vejamos os trechos do conto machadiano que apresentam essas ações correlatas:

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. [...] De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito. [...] Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior.

Até então, o texto não revela as atitudes de Curvelo, quando muito, é possível perceber-lhe as intenções. A seguir, o leitor descobre o que o menino fez aos colegas, quando Pilar é chamado à realidade pelos gritos do professor:

Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

Nos récits de vie analisados, essas situações correspondentes não são tão claramente definidas. Tomando como modelo a produção de S. F. 07, as ações que surgem não aparecem pautadas em ações correlatas, que passam essa ideia de início e fechamento. Reproduzimos a seguir o texto por completo, da forma como foi escrito, conservando, inclusive, a translineação realizada pelo sujeito, e parte digitalizada do mesmo texto:

Tenho 33 anos. trabalho desde dos 10 anos. Trabalhava na roça, estudei até a

3ª serie parei por causa do trabalho depois voltei fiz a 4ª e a 6ª, a cabeça ficou confusa com a matemática e o Português. retomei em 2005 estudei mais dois anos e parei de novo agora

voltei para terminar por que sem o segundo grau não se consegue fazer nada.

Começei como baba, agora trabalho na casa de familia, mais meu sonho e ser médica obistetra ou pediatrica quando terminar pretendo fazer uma faculdade de medicina e realizar meu sonho

É possível apreender funções que se iniciam (o primeiro trabalho, o abandono e retomada dos estudos diversas vezes etc.); por outro lado, uma função correlata, que feche a função anterior para que a narrativa prossiga com o início de uma nova função, não é perceptível.

Vejamos mais um exemplo, na reprodução completa do texto de outro sujeito:

muca tinha entrado mua sala de aula: porque tinha que trabalha para a judar macriação dos meus irmão: são 10. mais mão ne arepedo nuca e tade para começa porrico comesei a estuda para movo

nais gosto doquifaca gostaria mais de conecineto na minha aria de

trabalho: gosto do que facia.

S. F. 05 dá a explicação para uma das primeiras questões propostas na situação de pesquisa: por que havia abandonado a escola. Nesse ponto, é possível perceber a correlação entre as ações, pois uma vem logo a seguir da outra. O sujeito também justifica a volta à escola com o clichê de que “nunca é tarde para começar”. Porém, apesar de afirmar duas vezes que não gosta do que faz, não deixa claro que profissão exerce, questionamento que também faz parte da temática proposta em nossa situação de pesquisa.

Estamos diante, então, do que podemos considerar como uma primeira característica da estrutura narrativa dos récits de vie: há a presença das funções cardinais, mas estas, por vezes, não estabelecem relação direta, como propõe Barthes. Isso pode dever-se a uma característica primeira dos textos autobiográficos: eles não precisam necessariamente conter um início. O récit de vie consiste num recorte que o narratário faz na sua história. Esse recorte pode ser realizado pelo próprio sujeito que fala de si ou a pedido do sujeito ouvinte, como foi o nosso caso. Ele não precisa iniciar “do início”, por assim dizer: não é necessário contar a história de seus pais, de seu nascimento, de sua infância para justificar as ações atuais (conquanto haja a possibilidade de o sujeito, por conta própria, fazer essa retomada).

Em nossa coleta de textos podemos afirmar de antemão que os récits de vie iniciam-se pelo clímax: uma situação traumática deslancha o desejo de dizer-se de contar-se - no trabalho ora apresentado, esse trauma seria o abandono da escola - e, a partir daí, ações outras são descritas nesse continuum que forma o entorno do sujeito que conta. Miranda (1992) admite que apenas “um abalo vindo do exterior” justificaria a escritura de uma autobiografia. Do contrário, esse relato de um determinado acontecimento externo pode resumir-se à narração de uma “série de eventos exteriores, mais condizentes à efetivação do que Benveniste chama de ‘história’, que prescinde de um narrador em primeira pessoa. (p. 31)”. Se é essa ruptura que justifica a emergência de um autor que fala de si, a estrutura narrativa do récit de vie teria como primeiro componente o fato que promoveu essa ruptura, o que justificaria a contento a conceptualização de autoria circunstancial de Freitas (2010). As demais estruturas surgem (ou não) no decorrer da narração. O desfecho, por exemplo, pode não existir, se o sujeito pesquisado estiver narrando um acontecimento que ainda está se desenrolando, a que chamaremos de narrativa em trânsito.

Quando os récits de vie estão oralizados, é mais simples perceber essas funções cardinais (ou núcleos) descritas por Barthes. As retomadas e reflexões que o indivíduo faz durante sua narração, levando o entrevistador a pensar suas atitudes junto com ele, justificando determinadas ações, demandam que o sujeito que escuta execute esse rompimento com a linearidade da narrativa em direção a esse tempo outro a que o sujeito que fala o convida, sem perder o fio da história, que o narratário pode retomar a qualquer momento, sem aviso prévio. A transitividade narrativa permite ao sujeito que conta essa operação de ir e vir constante, uma vez que sua narrativa depende do fluxo de sua memória que, ativado por um estímulo exterior, vai romper novas barreiras das lembranças esquecidas pelo fluxo do tempo. Maia-Vasconcelos (2010, p. 111) exibiu assim essa ondulação narrativa, quando tratou do diálogo entre mãe e filho ao longo do tempo:

Gráfico da ondulação narrativa

A não linearidade do récit corrobora com a perspectiva de surpresa constante para o ouvinte/leitor-pesquisador. Nada está previsto, nada pode ser deduzido. Quando os récits de vie são escritos, essas unidades funcionais são menos perceptíveis. Ao escrever, a tradição escolar à qual o sujeito foi (ainda que minimamente) submetido o coage a atribuir início, meio e fim intrinsecamente ligados numa relação de causa-consequência. Por vezes, ele não alcança esse intento. As coerções se intensificam, uma vez que a figura da escola, apesar das mudanças de atitudes hoje claramente expostas, ainda representa uma lei, um sistema de regras a seguir.

Vale ressaltar que a falta dessa relação direta não descaracteriza os récits de vie como exemplo de unidade narrativa. Barthes, em sua análise, exige a presença dos núcleos, mas não determina de que modo esses núcleos devem se comportar no texto. Daí termos em nosso estudo ressaltado as distinções entre os textos.

A segunda grande classe de unidades, de natureza integrativa, compreende os chamados índices. Essa unidade remete não a uma operação complementar e consequente, e sim a uma ideia subjetiva, necessária ao sentido da narrativa: informações relativas às personagens, características do ambiente, tempo e espaço nos quais a narrativa se desenrola, sugestões do que pode vir a acontecer (como percebermos no exemplo de Conto de escola) etc. A relação, então, passa de distribucional à integrativa: só é possível perceber a importância de uma notação indicial passando-se a um nível superior e estabelecendo as relações.

A frase de abertura do conto machadiano, “A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau”, é um informante que só vai explicar-se mais adiante, quando a função de Pilar ir obrigado à escola surgir. A função corresponde a uma ação, enquanto que o informante está ligado a uma ação ou descrição.

Conhecido pela característica de conversar com o leitor no decorrer de seu texto, Machado de Assis vai expondo índices no decorrer do escrito e apresentando a função à qual aquele índice faz referência: “Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo

que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão”. (grifo nosso) A seguir, convoca o leitor a recordar com ele a surra que levou do pai por ter faltado à aula. Os índices, portanto, “remetem a um significado não a uma ‘operação’” (BARTHES, 1971, p. 31).

Na produção de S. M. 01, no trecho em que ele discorre sobre os empregos que já teve, o sujeito inicia com a função sobre as assinaturas que possui na carteira de trabalho, justificando, a seguir, essa ação com um índice que reporta ao fato de as oportunidades que surgiram terem sido, em sua maioria, para o emprego de porteiro: “A maioria das assinaturas foi como porteiro, mas, te confeço que não gosto de trabalhar como porteiro, mas foi oque arrumei (quando estava desempregado).”

Percebemos essa construção também na produção de S. F. 01, quando o sujeito lança a pergunta retórica sobre a escolha de sua profissão, justificando com a escolha de outrem:

(...) sou vendedora vendo de porta em porta escolhi essa profissão por que? essa é uma das perguntas que eu também me fasso na verdade eu não escolhi ser vendedora, aconteceu que o meu marido comessou a vender Roupas e eu embarquei com ele (...)

Também consideramos representativo o trecho em que S. M. 03 admite não gostar da profissão. A explicação vai fazendo sentido à medida que as funções vão aparecendo:

Na verdade eu não gostaria de ser, caseiro, não porque trabalha muito e exige muita confiança, mas sim porque preciso de uma profissão onde chegando em qualquer lugar possa ter emprego.

O sujeito salienta a necessidade de uma profissão que tenha um campo maior de atuação, e utiliza esse índice para justificar, a seguir, a ação do retorno à escola:

Por isso pretendo terminar meus estudo para fazer cursos e busca uma qualificação para o meu futuro.

Admitindo o conto machadiano como um exemplo de narrativa prototípica, podemos fazer a segunda constatação sobre a estrutura dos récits de vie colhidos como material empírico para essa pesquisa - quiçá a mais importante, considerando nosso objetivo de apontar a importância do estudo desses textos pela Linguística: é possível identificar nesses textos as classes de unidades distribucionais – funções – e as integrativas – índices-,

como também suas subcategorias, que são descritas por Barthes como essenciais para a elaboração de uma análise da estrutura narrativa e que denominam o texto como tal.

Sobre essa primeira classificação, Barthes conclui considerando que

estas duas grandes classes de unidades, funções e índices, deveriam já permitir uma certa classificação das narrativas. Certas narrativas são fortemente funcionais (assim os contos populares), e em oposição certas outras são fortemente indiciais (assim os romances “psicológicos”); entre estes dois polos, toda uma série de formas intermediárias, tributárias da história, da sociedade, do gênero. (p.32)

Seguindo tais indicações, poderíamos, inicialmente, enquadrar os récits de vie como narrativas fortemente indiciais. Tal categorização justificaria, inclusive, a dificuldade relatada anteriormente: a de identificar núcleos correlatos dentro desse tipo de narrativa, já que nesse caso os índices são mais notáveis. Vejamos um exemplo, novamente no trecho escrito por S. F. 01: “ ja lavar passar, limpar etc tirando cuzinhar e cuidar dos “meus homens” Bruno e Breno eu odeio, ja estudar sempre foi o meu sonho”. O sujeito descreve atividades que não gosta de realizar, que, por sua vez, parecem justificar a afirmação a seguir: a de que sempre teve desejo de estudar.

Barthes dá prosseguimento, subdividindo essas duas grandes classes em outras duas classes menores cada uma. No caso das funções, essa subdivisão deve-se ao caráter de importância diferenciado que essas funções possuem. Barthes elege dois tipos de funções: as primeiras são verdadeiros fragmentos da narrativa – são as funções cardinais ou núcleos. As outras, porém, têm a tarefa elementar de preencher o vazio presente entre esses núcleos – são as catálises.

Para que uma função seja considerada cardinal, é necessário que ela tenha um caráter determinante na narrativa: ela precisa inaugurar, manter a continuidade ou fechar uma ação. Utilizemos, mais uma vez, o texto machadiano para didatizar essa conceituação; mais especificamente, o momento em que Pilar e Raimundo são delatados. Mestre Policarpo decide por punir os meninos. À guisa de esquema, poderíamos assim organizar esse trecho da narrativa:

FUNÇÃO CARDINAL 1 FUNÇÃO CORRELATA

Delação de Pilar e Raimundo Punição aplicada por mestre Policarpo

A função correlata também é uma função cardinal. Foi assim nomeada para ficar claro que faz relação direta à função anterior, no caso, função cardinal 1. Porém, a função cardinal 1 abre possibilidades para que outras funções cardinais que não a punição aplicada por mestre Policarpo deem prosseguimento à narrativa. Seria possível, por exemplo, que o professor deixasse o episódio passar em brancas nuvens, pelo fato de um dos envolvidos ser seu próprio filho. Outra probabilidade seria a de os meninos escaparem ao castigo.

É, então, entre esses dois núcleos que as funções catálises se inserem. Segundo Barthes, são notações que vão se ajuntando em torno das funções cardinais sem alterar a

No documento A organização narrativa nos récits de vie (páginas 56-106)

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