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A organização narrativa nos récits de vie

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA

A ORGANIZAÇÃO DA SEQUÊNCIA NARRATIVA EM RÉCITS DE VIE

ISABEL ROQUE VIANA

Fortaleza – CE

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ISABEL ROQUE VIANA

A ORGANIZAÇÃO DA SEQUÊNCIA NARRATIVA EM RÉCITS DE VIE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará, sob orientação da Profª. Drª. Sandra Maia-Vasconcelos, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

Fortaleza – CE

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências Humanas

V667o Viana, Isabel Roque.

A organização da sequência narrativa em récits de vie / Isabel Roque Viana. – 2012. 103 f. : il., enc. ; 30 cm.

Dissertação(mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades,Departamento deLetras Vernáculas, Programa de Pós-Graduação em Linguística, Fortaleza, 2012.

Área de Concentração: Linguística, letras e artes. Orientação: Profa. Dra. Sandra Maia Farias Vasconcelos.

1.Biografia como forma literária. 2.Prosa escolar brasileira. 3.Análise do discurso narrativo. 4.Língua portuguesa – Composição e exercícios – Estudo e ensino. 5.Educação de adultos. 6.Jovens – Educação.. I.Título.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por sua infinita misericórdia e sua insondável providência.

Aos meus pais, Israel e Artemisa, por me ensinarem a trilhar o caminho da retidão por s sempre se tornarem fiéis às minhas crenças, fazendo todo o possível.

À minha avó, Meire, que, com sua escolarização básica, sabe muito mais que todos nós e mais ainda do que eu suponho saber e por isso me ensinou muito.

Aos meus irmãos, Bárbara e Rafael, porque aprendemos sempre juntos, desde sempre; às minhas sobrinhas Isadora e Ísis, pelos sorrisos fáceis que me causam.

A Robson, pela compreensão e companheirismo devotados; pela ajuda irrestrita; pela convivência partilhada; pelo amor vivenciado; por, absolutamente, tudo.

À amiga Sandra, que me acompanha desde a graduação, e por isso é companheira; que me ensina sempre, e por isso é professora; que me orienta, e por isso - e pelas tradições do meio acadêmico - é minha orientadora, profa. Dra. Sandra Maia-Vasconcelos.

Ao GELDA – Grupo de Estudos em Linguística e Discurso Autobiográfico, na figura de todos os seus integrantes, que contribuíram com discussões em altos brados e grandes gargalhadas, o que nos torna um grupo único.

Ao PPGL – Programa de Pós-Graduação em Linguística, em todo seu corpo docente e discente, pois são os que compartilham e que mais bem entendem todos os reveses e conquistas desse caminho, e também na figura de seus funcionários, Eduardo e Antônia, sempre solícitos a atender nossos pleitos.

Ao PosLa / UECE – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará, por oportunizar a participação em disciplinas essenciais para o desenvolvimento desse estudo e o intercâmbio de saberes acadêmicos.

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À profa. Dra. Mônica Cavalcante, que acompanhou todo o processo de desenvolvimento desse estudo e de quem partiram contribuições significativas em todos os momentos em que pude compartilhar de seu conhecimento.

Às profas. Dras. Ercília Maria Braga de Olinda e Maria da Conceição Ferrer Botelho Sgadari Passeggi, que se dispuseram gentilmente a ler e dar suas colaborações, tornando possível a concretização dessa pesquisa.

Aos alunos da EJA que cooperaram com esse estudo, aceitando escrever sobre suas experiências particulares, cedendo sem reservas seus récits de vie, concretizando, desse modo, o que era apenas suposição.

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RESUMO

O trabalho ora apresentado tem como tema a sequência narrativa em récits de vie, delimitando-se na organização da sequência narrativa em récits de vie em redações escolares produzidas por alunos de EJA – Ensino Médio durante 04 encontros realizados num período de tempo de 02 (dois) meses. Os estudos autobiográficos adquiriram facetas variadas através do tempo e nos mais diversos campos de estudo, sendo praticados em várias áreas das Ciências Humanas, e variando de modalidade epistemológica, maneira de abordagem dos dados etc. A autobiografia é uma vertente advinda da biografia, podendo ser conhecida por diferentes nomenclaturas: narrativa de vida, história de vida, relato, depoimento, memorial etc. Josso (2007) classifica–a como uma oportunidade de refletir sobre diferentes registros de expressão e representações de si. Diversos estudos em outros campos das Ciências Humanas discorrem sobre a construção subjetiva dessas narrativas em sua composição objetiva da vida social. Nesse contexto, Bourdieu [2001(1994)] sinaliza para a construção de um sentido coerente na formulação da autobiografia, em que o autor-ator, na tentativa de racionalizar diversos eventos ocorridos no percurso de sua história contada, canaliza eventos e interdita outros, formulando uma própria representação de um ideal do seu eu. O autor considera que a narrativa, biográfica ou autobiográfica, busca organizar os eventos em sequências ordenadas e inteligíveis. Na educação, a escolha desse objeto de estudo visa a dar voz ao profissional professor, como meio de refletir sobre sua formação e atuação (ECKERT-HOFF, 2008) e a demais sujeitos (ARAÚJO & OLINDA, 2010). No âmbito da Linguística, os récits de vie como corpus possuem certo ineditismo. Consequentemente, o aparato teórico-metodológico necessário para a análise dos dados precisou ser construído aos poucos e de forma interdisciplinar: utilizamos fontes da Educação, da História e das Ciências Sociais, sem preterir as contribuições dos estudos linguísticos – pois, como afirmou Barthes (1971) e considerando nossos problemas de pesquisa, “parece razoável dar como modelo fundador à análise estrutural da narrativa a própria linguística” - para que fosse possível elencar critérios de análise passíveis de aplicação. Esta pesquisa objetiva, então, analisar a organização narrativa nos récits de vie produzidos por alunos da EJA - Educação de Jovens e Adultos. Nosso objetivo geral foi analisar por comparação a organização dessa sequência narrativa em récits de vie produzidos por alunos da EJA com a organização de uma sequência narrativa prototípica.Para tanto, utilizamos classes propostas por Barthes (1971), na sua busca por uma classificação empregável às narrativas de forma geral, a saber: funções e índices. A narrativa eleita como prototípica para a realização desse estudo foi Conto de escola, de Machado de Assis. Os resultados demonstram que uma primeira característica dos récits de vie é a presença das funções cardinais, ainda que estas não estabeleçam relação direta, como propõe Barthes. Quanto à classificação segundo essas categorias, admitimos os récits de vie como narrativas fortemente indiciais, em detrimento de sua funcionalidade. Outro resultado deveras importante é a possibilidade de identificar nesses textos as classes propostas por Barthes que - consideradas pelo autor e aqui admitidas como tais - são essenciais para a elaboração de uma análise da estrutura narrativa e caracterizam o texto como tal.

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ABSTRACT

The already presented work has the récits de vie narrative sequence as theme, delimitating the organization of récits de vie narrative sequence in compositions produced by EJA students – High School Level, accomplished during 04 meetings in a 02 (two) months period of time. The autobiographical studies acquired miscellaneous through time and in many study fields, being practiced in many Human Sciences areas and changing its epistemological modality, targeting data, etc. Resulting from biography, the autobiography is a slope which can be known in several nomenclatures: life narrative, life story, report, statement, memoire etc. Josso (2007) classifies it as a opportunity to think over many expression records and self-representations. Manifold studies in other Human Sciences fields discourse about these narrative subjective constructions in its objective composing in social life. In this sense, Bourdieu [2001 (1994)] notes a autobiography coherent sense in the autobiography formulation construction, where the author-actor, attempting to rationalize diverse events that happened in his story journey, canalizes some of them and forbids the others, formulating his own ideal representation of his “me”. The author considers that the narrative, biographical or autobiographical, tempts to organize the events in ordered and intelligible sequences. In the educational field, this study object choice aims to give the chance to the professional teacher, as a way to meditate his training and proceeding (ECKERT-HOFF, 2008), to other subjects as well (ARAÚJO & OLINDA, 2010). In Liguistics within, the récits de vie as corpus are a certain novelty. Consequently, the necessary theorical-methodological apparatus for data analysis needed to be gradually built and in interdisciplinary form: using Educational, Historical and Social Sciences sources, without neglecting the linguistics studies contribution – as Barthes (1971) declared and considering our research’s problems, “it seems to be right-minded to provide as a founding model to the narrative structural analysis its own linguistic” – making possible to list the liable analysis application criteria. Thus, this research objectives to analyze the narrative organization in récits de vie composed by EJA [Educação de Jovens e Adultos (Youth and Adults Education)] students. Our general aim was analyzing by comparison of theses récits de vie narrative sequence organization composed by EJA students with the prototypical narrative sequence. Thereby, we used the castes proposed by Barthes (1971), questing a proper classification for narratives in general, to understand: function and indexes. Machado de Assis’ Conto de escola, was the elected prototypical narrative to this research achievement. The results show that a first characteristic of récits de vie is the presence of the cardinal functions, even if they don’t establish a direct relationship, as proposed by Barthes. Regarding the classification according to these categories, we admit récits de vie as narratives strongly indexical, rather than its functionality. Another very important result is the possibility of identifying the classes in these texts by Barthes proposed that - and here the author deemed admitted as such - are essential to prepare an analysis of narrative structure and characterize the text as such.

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Lista de gráficos e quadros

Lista de gráficos

1. Gráfico da distribuição de pessoas com 15 anos ou mais de idade que frequentavam curso de educação de jovens e adultos, por modalidade de curso – Brasil – 2007. 13 2. Diagrama de Cardoso (2009, In: MAIA-VASCONCELOS; CARDOSO, 2009) 30

3. Diagrama das classes propostas por Barthes (1971, 2008). 46

4. Gráfico da ondulação narrativa (MAIA-VASCONCELOS, 2010, p. 111) 60

Lista de quadros

Quadro 01: Exemplo de funções cardinais no conto de Machado de Assis. 62

Quadro 02: Exemplo de catálise no conto de Machado de Assis. 63

Quadro 03: Exemplo de funções cardinais no récit de vie de S. F. 01. 64 Quadro 04: Exemplo de funções cardinais no récit de vie de S. F. 04. 64

Quadro 05: Exemplo de catálise no récit de vie de S. F. 07. 64

Quadro 06: Exemplo de catálise no récit de vie de S. F. 12. 65

Quadro 07: Exemplo de catálise no récit de vie de S. F. 14. 65

Quadro 08: Exemplo de informante no récit de vie de S. F. 02. 67

Quadro 09: Exemplo de índice no récit de vie de S. F. 04. 67

Quadro 10: Quadro comparativo elaborado a partir da ocorrência das categorias analíticas no

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SUMÁRIO

1 Introdução 10

2 Falar de si...

2.1 A EJA: um breve histórico 15

2.2 A pesquisa autobiográfica e suas nuances 21

2.3 Escritas de si 26

2.4 As produções dos alunos da EJA 33

2.5 A escolha do termo récit de vie 34

3 Catando conchinhas nas narrativas...

3.1 O estudo da narrativa 38

3.2 Funções e Índices: as categorias propostas por Barthes 44

3.3 Algumas resenhas necessárias 47

4 Em busca de um método

4.1 Caracterização da pesquisa 51

4.2 Sujeitos da pesquisa 51

4.3 Material 52

4.4 Procedimentos de geração de dados 52

4.5 Análise dos dados 53

5 Juntando os rastros

5.1 Categorias de análise 54

5.2 Análise do corpus 54

6 Conclusão: uma leitura provisória 69

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1 Introdução

Entre as inúmeras discrepâncias que compõem o Brasil, mais especificamente o povo brasileiro, podemos incluir duas faces de uma mesma moeda: os escolarizados e os não escolarizados. Escolhemos esses termos a despeito de “alfabetizados / analfabetos” ou “letrados / iletrados” para não enveredarmos pelas discussões que os termos “alfabetização” e “letramento” ainda suscitam. São pautas de extrema importância, mas que não são objetivo de nosso trabalho. Se falamos de escolarização, é porque buscamos enfatizar a questão do aluno brasileiro nos bancos escolares, mais especificamente, o acesso à escola em idade apropriada.

É conhecida a crescente ampliação da escolaridade básica e gratuita, assegurada pelo governo e obrigatória para crianças de idade entre 07 e 14 anos (LDB 9394/96, art. 4º). Os percalços sofridos por alunos e professores nesses oitos anos de permanência na escola também não são ignorados: reprovação, repetência, estrutura física precária, desmotivação dos aprendizes, desvalorização dos professores e indicadores de qualidade preocupantemente baixos são problemas que podem ser desmembrados em inúmeros outros. Acrescentaremos a esses problemas outra questão essencial: o abandono da escola, seja por desinteresse causado por múltiplos fatores, seja pela falta de condições para o acesso ao processo de escolarização.

Para diminuir o problema e tentar reduzir o número de pessoas que não possuem a escolaridade obrigatória completa, opções como ciclos de formação e classes de aceleração são oferecidas pelos sistemas de ensino. Por decisões pessoais ou exigências do mercado de trabalho, alguns desses antigos alunos que um dia abandonaram os estudos retornam à escola para dar continuidade à formação interrompida. A modalidade Educação de Jovens e Adultos – EJA é, então, mais uma saída.

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de trabalho. Consequentemente, o tempo de dedicação aos estudos por esses alunos também é menor que o de um aluno em ciclo regular. Desse modo, uma aula expositiva, que é comumente ministrada no ensino básico, corre o risco de não alcançar os objetivos educativos propostos nessa situação específica.

A pessoa que hoje recorre à EJA para concluir seus estudos abandonou a escola anteriormente por várias razões: ou porque teve de começar a trabalhar cedo, ou porque a escola mais perto de sua casa fechou ou porque a escola, à época, não foi capaz de manter aquele aluno em seu domínio. Se anteriormente, com a idade adequada, a escola não despertou o interesse desse sujeito a ponto de ele fazer um esforço maior e dar continuidade à sua formação, quando retorna aos bancos escolares com uma bagagem de vivências e experiências bastante diversificadas, o desafio torna-se ainda maior. Nesse momento, esse sujeito vai precisar reaprender a ser aluno. É necessário, então, apresentar alternativas didáticas, tanto ao material utilizado como também à ministração das aulas.

O ensino da EJA não pode deixar a desejar: seus alunos constituem um público que voltou à escola porque tem consciência da necessidade dos estudos para uma melhor colocação profissional e uma inserção maior na sociedade em que vive, e não por uma simples imposição dos pais ou do governo. São pessoas de senso crítico mais apurado, mais experientes, que precisam encontrar a aplicação daquilo que é visto em sala de aula no seu cotidiano. Não estamos lidando com jovens que ainda vão ser inseridos no mercado de trabalho, mas, sim, com um público que já trabalha, e precisa de uma qualificação escolar melhor para galgar degraus mais altos.

Há muito foi superada a ideia de que o indivíduo chega à escola como uma folha em branco. Portanto, se uma criança em fase escolar inicial possui um conhecimento externo que deve ser considerado para que seu aprendizado seja satisfatório, o aluno de EJA tem uma experiência muito mais vasta. A EJA não deve apenas ter vagas suficientes para atender a procura. Os professores que ministram as aulas devem estar comprometidos com o trabalho, não devem estar ali porque “o nível da EJA é menor” ou porque “é mais fácil dar aula para esse tipo de aluno”. Talvez o fato de a EJA ser formada, em sua maioria, por jovens e adultos (apesar de haver casos de alunos em faixa etária adequada para cursar o ensino regular e de alunos que optam pela EJA pelo menor tempo de aula e pela cobrança mais branda), leve a um tipo de aula sem maiores interrupções, visto que se espera mais maturidade do aluno que se dispõe a sair de oito horas de trabalho para um banco escolar.

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EJA no nível de ensino médio devem ter a partir de 18 anos. São pessoas das mais diversas classes sociais, que exercem ofícios diferentes e têm motivos muito particulares para voltar à sala de aula.

A pesquisa com os alunos de EJA surgiu como um acaso. Era uma turma de escola como as demais que participariam da pesquisa, mas o seu interesse em ir mais a fundo, em tentar a todo custo aproximar a aprendizagem escolar das situações do dia-a-dia, fazendo com que aquele aprendizado ganhasse um significado particular, nos chamou a atenção. Durante os trabalhos escritos, eram esses os alunos que nos traziam mais páginas e que se justificavam: tinham mais a dizer, mas que o tempo e o papel não foram suficientes.

Todas as “angústias”, por assim dizer, em relação às questões que a narrativa/narração suscita e que estão aqui colocadas nasceram no âmbito das discussões realizadas no GELDA – Grupo de Estudos em Linguística e Discurso Autobiográfico, registrado no diretório de grupos do CNPq e coordenado pela nossa orientadora, Profa. Dra. Sandra Maia-Vasconcelos. À frente de variados projetos – com alunos de graduação e pós-graduação, entremeando ensino, pesquisa e extensão -, sendo que todos os estudos envolvem alguma situação de trauma, todos os pesquisadores engajados buscam compreender as nuances dos récits1. Orais ou escritos, espontâneos ou colhidos em situação controlada de pesquisa, a meta do GELDA é compreender como esses relatos são construídos, se é possível identificar um único autor, se aquele que narra é senhor de sua história, se essa história tem um caráter verídico, além de vários outros questionamentos que esse objeto de pesquisa nos coloca. Além dos questionamentos comuns à pesquisa acadêmica, temos ainda um desafio maior: situar os récits de vie no âmbito da linguística, buscando atribuir a essas produções e a esse tipo de pesquisa a importância que lhes é devida.

No trabalho ora apresentado, que teve como tema a sequência narrativa em récits de

vie, delimitando-se na organização da sequência2 narrativa em récits de vie em redações escolares produzidas por alunos de EJA – Ensino Médio durante 04 encontros realizados num período de tempo de 02 (dois) meses, nosso objetivo geral foi analisar pondo em comparação a organização da sequência narrativa em récits de vie produzidos por alunos da EJA e a organização de uma sequência narrativa prototípica. Temos como objetivos específicos elaborar um quadro comparativo entre o conto de Machado de Assis intitulado Conto de

1

Optamos por não traduzir o termo para o Português porque sua simples tradução limitaria a abrangência desse tipo de corpus. A escolha desse termo será explicada mais adiante.

2

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escola e as redações de EJA, com vista a identificar as coocorrências e as divergências flagrantes; identificar características da narrativa prototípica, descritas por Barthes (1971), no récit de vie com vistas a elaborar uma metodologia de análise de récits a partir de uma teoria já consolidada nos estudos linguísticos; definir os elementos estruturais das narrativas produzidas pelos alunos de EJA que caracterizem o récit de vie; e, por fim, apontar a importância do trabalho com os récits de vie nas turmas de EJA, enquanto recurso pedagógico para o trabalho de leitura e produção textual.

Desse modo, considerando-se a natureza e o objetivo da pesquisa, nosso trabalho desenvolver-se-á em três capítulos: no primeiro capítulo, apresentamos um breve histórico sobre a educação voltada para jovens e adultos que não foram alfabetizados na idade regular e o trajeto que foi percorrido por essa modalidade até a atualidade, quando recebeu a nomenclatura de EJA. Esse momento levará em conta os avanços, as causas e os resultados obtidos segundo pesquisas nacionais em Educação.

Para uma ilustração inicial da questão, vejamos a seguir um gráfico elaborado pelo IBGE, que trata da distribuição dos alunos com mais de 15 anos que estão nas salas de aulas da EJA, no que concerne à modalidade em que o curso é oferecido:

Podemos notar que, mesmo com uma gama variada de modalidades, ainda prepondera a EJA em sala de aula, em formato presencial. Isso demonstra que as demais modalidades de se obter um diploma do ensino básico – o supletivo, o ensino a distância, a submissão à prova do ENEM - ainda são preteridas em detrimento da possibilidade de estar nos bancos escolares da forma tradicional.

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mesmo capítulo, realizamos as discussões teóricas entre autores que nos pareceram representativos dos estudos narrativos, com ênfase em Barthes [2008(1976)] e seus escritos sobre a busca por uma estrutura da narrativa.

No terceiro capítulo, deter-nos-emos na descrição da metodologia aplicada para coleta e análise do corpus, a saber: o texto Conto de escola, de Machado de Assis, e os récits de vie dos alunos de EJA. Daremos ciência dos procedimentos adotados para coleta, das categorias escolhidas para realização da análise do material colhido, da situação de pesquisa, dos sujeitos pesquisados e do referencial teórico que embasou nossos estudos.

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2 Falar de si...

2.1 A EJA: um breve histórico

Elaborar um estudo sobre a Educação de jovens e adultos não é uma novidade, muito menos nos domínios das Ciências Humanas. Não nos restringiremos, portanto, a esse escopo, uma vez que nossos objetivos fogem aos objetivos propriamente ditos dessa modalidade de ensino e de aprendizagem. Interessa-nos, entretanto, apontar aqui a importância dessa modalidade de ensino como propulsora do processo de leitura e de escrita dos alunos engajados, uma vez que a procura pela educação tardia muitas vezes, como veremos mais adiante nos relatos dos sujeitos participantes, é nascida do desejo de saber unido à possibilidade ofertada pela Educação Nacional dentro da política de educação para todos. Podemos encontrar nos documentos do IBGE que

embora no país como um todo a taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais de idade tenha se reduzido de 13,63% em 2000 para 9,6% em 2010, ainda chega a 28% nos municípios com até 50 mil habitantes na região Nordeste. Além disso, o percentual de analfabetos entre pretos (14,4%) e pardos (13,0%) era, em 2010, quase o triplo dos brancos (5,9%). No caso do analfabetismo de jovens, a situação da região Nordeste era também preocupante, na medida em que mais de ½ milhão de pessoas de 15 a 24 anos de idade (502.124) declararam que não sabiam ler e escrever. Na região do Semiárido a taxa de analfabetismo também foi bem mais elevada do que a média obtida para o país, mas teve uma redução de 32,6%, em 2000, para 24,3%, em 2010. Entre os analfabetos residentes nessa região, 65% eram pessoas maiores de 60 anos de idade.

Mais do que o simples acesso às ferramentas de leitura e escrita, o acesso ao ensino básico garante ao indivíduo uma inserção efetiva no mundo de hoje e no mercado de trabalho; é uma maneira de diminuir as desigualdades gritantes existentes em nosso país. O acesso à educação é também um acesso à cidadania plena. Cada vez mais, são exigidas competências das mais diversas. O ensino básico é apenas o ponto de partida para que o indivíduo possa atualizar-se e, assim, inserir-se efetivamente no mercado de trabalho atual. É o que corrobora o parágrafo 1º da LDB – Lei de diretrizes e bases3

Art. 1º. A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

3

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A educação brasileira, de modo geral, é deficitária desde o início de sua história e é marcada e marcadora de grandes diferenças sociais. Ainda na era do Brasil Colônia, não era interesse dos colonizadores ofertar leitura e escrita aos colonizados, função que foi delegada às ordens religiosas. Os movimentos populistas levantaram a bandeira de que a educação é libertadora. A temática da educação, entretanto, tomou rumos diferentes, sobretudo com a obra de Paulo Freire, e adotou exigências novas. O homem que tem consciência de suas amarras, em algum momento, desejará libertar-se dos grilhões. A EJA não surgiu com o formato que conhecemos hoje: um ensino que se voltava a camadas populares que não foram alfabetizadas adequadamente era uma das respostas ao modelo intelectualista que vigorava no início do século XX. À época, apenas os filhos da elite tinha acesso à educação. Esse tipo de restrição era considerado um atraso, visto que a intenção era adotar o modelo de produção capitalista no Brasil. Além disso, do ponto de vista político, assegurar o direito à educação era uma forma de dominar as massas (ACOSTA; REGO, 2006). Nesse período, para demonstrar seu interesse verdadeiro pelas necessidades básicas dos cidadãos, Getúlio Vargas criou os Ministérios da Educação e da Saúde. Ainda assim, o acesso à escola ainda tinha algumas restrições.

Com a constituição de 1937, o ensino destinado às camadas populares resumiu-se ao ensino profissionalizante, o que demonstra claramente o interesse do governo em preparar mão-de-obra para as futuras indústrias que seriam instaladas no país. Não havia interesse de fazer com que o trabalhador chegasse ao ensino superior: os objetivos econômicos vinham sendo atingidos de modo satisfatório, mesmo com operários que não sabiam ler ou escrever. Todas as tentativas de mudança na realidade da educação brasileira nesse período se restringiam a reproduzir as relações vigentes entre classe dominante e classe dominada. A década de 1950 foi marcada por campanhas oficiais voltadas para a educação de adultos. A tentativa era desenvolver um tipo de educação profissional que formasse indivíduos que pudessem contribuir com o desenvolvimento nacional vigente.

Dessa época até hoje, a modalidade de ensino EJA passou por diversas modificações, adquirindo um caráter mais formalizado. Em lei, a primeira referência feita à EJA veio com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases – LDB, Lei nº 9394/96. O artigo 208 da Constituição Federal diz que:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

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Durante muitos anos, a Educação de Jovens e Adultos não se chamou assim. Chamou-se Madureza (nomeava o curso e o exame final de aprovação. As disciplinas eram ministradas nos antigos ginásio e colegial, com idade mínima de 16 e 19 anos, respectivamente, para início do curso. Foi implantada a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1961. Exigia um prazo entre dois e três anos para que cada ciclo do curso fosse concluído. Era direcionado às pessoas que já possuíam certo conhecimento e desejavam formalizar a escolaridade já adquirida. A eles, apenas o diploma interessava); Suplência (é a própria finalidade da EJA, considerada até hoje como uma forma de compensar a escolarização irregular. Nomeou projetos de educação de jovens e adultos por todo o país, durante os anos 90); Supletivo (formalizada pela Lei de Diretrizes e Bases de 1971 - Lei 5692, de 11 de agosto de 1971 - que já foi completamente reformulada -, é modalidade em voga até hoje. Oferecido a distância, tem o intuito de suprir a escolarização regular de jovens e adultos que não o fizeram em idade própria e também caracteriza o próprio exame, ao qual o aluno pode submeter-se para fins de obtenção do certificado, sem necessidade de passar por cursos preparatórios); Alfabetização, entre outros nomes. Um dos programas que obteve maior abrangência foi o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), criado em 1967 (Lei n° 5.379, de 15 de dezembro de 1967), durante o regime militar. Todos esses programas não lograram êxito, pois não conseguiram diminuir de forma significativa as taxas de analfabetismo no país. Somente com a promulgação da nova LDB nº 9394/96, que vigora até hoje, a EJA adquiriu um caráter mais significativo.

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indústrias. O tempo para dedicar-se a uma formação escolar, quando existia, era exíguo, até porque as leis trabalhistas não são muito antigas; no Brasil datam dos anos 1930, com o governo de Getúlio Vargas. Os descendentes dessa camada da população sofrem as consequências dessa realidade histórica até hoje. É uma demonstração de respeito a esses brasileiros ofertar uma educação adequada às suas condições, demandas e exigências.

Esse público necessita abrir uma possibilidade de inserção no mercado de trabalho bastante particular. São alunos que se caracterizam por serem adultos, em sua maioria, pobres e com um histórico escolar bastante fragmentado. São estudantes que precisam trabalhar e, no sentido reverso, por força das exigências mercadológicas, trabalhadores que precisam estudar. Cada vez mais, percebemos que a obtenção de um cargo, a promoção na empresa ou a negociação de um salário melhor, por exemplo, dependem diretamente da qualificação profissional que o empregado pleiteador possui.

Para este fim, a EJA tem também uma função democrática, por ser equalizadora. Essa modalidade de ensino objetiva oferecer oportunidades para que o seu aluno possa dar prosseguimento aos estudos outrora interrompidos e, assim, competir com condições de igualdade e gozar dos direitos que seu nível de qualificação oportuniza. Facilitar o acesso desses desprivilegiados à educação é também uma tentativa de nivelar o acesso ao conhecimento. É uma forma de o estado intervir diretamente no campo das desigualdades, dando ao indivíduo a chance de crescer e especializar-se.

Ainda hoje, a escola tem dificuldades para acolher o aluno em condições especiais e lidar adequadamente com as suas necessidades. A escola tem um padrão, e é o discente que deve adequar-se a ela, quando, na verdade, deveria ocorrer o contrário. Uma sala de aula de EJA é caracterizada especialmente pela diversidade de seus alunos. Podemos encontrar jovens não tão afastados da escola, que desejam concluir o ensino médio e prestar vestibular; adultos que voltaram aos bancos escolares por exigência do emprego, o que requer, no mínimo, o ensino básico completo; idosos que nunca estiveram em sala de aula e decidiram realizar o antigo sonho de aprender a ler e escrever. É dever dessa modalidade de ensino garantir uma qualificação permanente, que atenda a todos esses perfis e dê oportunidade a esses indivíduos de acesso a novos domínios do trabalho e da cultura. É a função qualificadora que a EJA deve exercer.

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que o ser humano atua: na família, na escola, na igreja, no trabalho, nos movimentos sociais e nas manifestações culturais. A escola, por ser o ambiente destinado por excelência à educação, deve sempre buscar um modo de formalizar e aproveitar esses conhecimentos externos.

O que vem caracterizando comumente essa modalidade de ensino é a faixa etária: associamos as classes de Ensino de Jovens e Adultos a grupos de pessoas que por diversos motivos tiveram que abandonar o ensino regular e, por outras razões, retomaram sua escolaridade numa faixa etária, digamos, mais avançada. O quesito idade, o tempo de afastamento da escola e a classe social geralmente baixa são exemplos de fatores que contribuem para uma caracterização da EJA de forma negativa. As aulas duram menos tempo e é cobrado menos desses alunos. Indo contra aquilo que é apregoado pelo imaginário popular, Fonseca (2005) aponta as características socioculturais desse público como o fator que deveria ser determinante para a elaboração de políticas educacionais que atendessem à EJA. Estudar determinada matéria escolar deve fazer sentido desde o início para qualquer aluno, independente do nível em que ele está. Não se pode ensinar um conteúdo com a promessa de que ele servirá a algum propósito futuramente. O aluno precisa perceber que seu cotidiano é afetado por aquela nova aprendizagem, que algo foi modificado.

Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (CNE nº 1/2000), a EJA tem três funções específicas a cumprir com o seu público. A primeira seria a função reparadora: oferecer, àqueles que não puderam formar-se em tempo hábil, uma alternativa de completar os estudos é uma maneira de o Estado reparar o dano de não ter dado a possibilidade de esses indivíduos concluírem os ensinos obrigatórios no período correto, por assim dizer. A segunda função, equalizadora, consiste em garantir, por meio do ensino, que o aluno da EJA tenha igualdade de acesso ao mercado de trabalho. Por fim, a função qualificadora do ensino pressupõe que o ser humano esteja em constante formação: a EJA é mais uma maneira de contribuir para o aperfeiçoamento do indivíduo.

Até o ano de 2007, as salas de aula de Educação de Jovens e Adultos eram frequentadas por cerca de 10,9 milhões de pessoas, o que correspondia a 7,7% da população com 15 anos ou mais de idade. A EJA é uma modalidade que visa à continuidade da AJA - Alfabetização de Jovens e Adultos, que tem como perfil de aluno a nordestina com mais de cinquenta anos com renda de até um salário mínimo.

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seguido pela falta de interesse em fazer o curso (15,6%). Um outro motivo apontado foi a inexistência do curso próximo à residência (5,5%) ou ao local de trabalho (1,1%). Cabe salientar que é dever do estado ou município, a depender do nível de ensino, ofertar a modalidade apenas nas regiões em que a necessidade for detectada, ou seja, nem todas as escolas dispõem dessa modalidade. Além disso, não há muita escolha de horário: a preponderância de oferta da educação de jovens e adultos é no período da noite.

Os dados colhidos pelo IBGE corroboram as principais justificativas, que veremos colocadas nos récits de vie, como motivo para frequentar a EJA: a vontade de retomar os estudos (43,7%), seguida da vontade de conseguir melhores oportunidades de trabalho (19,4%).

(23)

2.2 A pesquisa autobiográfica e suas nuances

Neste capítulo, realizamos um apanhado geral sobre as facetas variadas que os estudos autobiográficos adquiriram através do tempo e nos mais diversos setores de pesquisa.

Gusdorf (1980) relaciona o prefixo “auto” à identidade, ao eu consciente de si próprio, ao sujeito complexo, elaborado em uma existência singular e autônoma; e o prefixo “bio” ao percurso vital, à continuidade desta identidade singular, ao desenvolvimento prático de uma existência, entre o eu e sua inserção no cotidiano e na realidade.

Mauss (1974), em seus estudos iniciais, já chamava a atenção para a necessidade do estabelecimento de uma relação entre o indivíduo e o meio para, posteriormente, entender a relação desse indivíduo com o seu grupo. O autor defendia que seria através da educação corporal que a sociedade modelava os indivíduos. O sociólogo acreditava, e à sua época esse era um pensar revolucionário, nas reproduções individuais de um ideário social. Sensações como a dor e o prazer existiam e eram descritas segundo critérios coletivos, e não por particularidades individuais. Apesar disso, trilhando um caminho correspondente, porém inverso, toda instituição somente adquire valor e sentido quando é possível identificar sua incidência na personalidade e na consciência de seus membros. A grafia do “auto” e do “bio” marca, então, uma separação entre o eu-escritor e o eu-escrito. Desse modo, a biografia é uma reconstrução, uma reconquista de si; representa um renascimento, pelo lugar distinto que o sujeito-escritor ocupa frente a sua vida, de modo crítico e reflexivo.

Esse formato de estudo surgiu num momento de crise nos instrumentos de observação do sujeito. Cientistas sociais sentiram a necessidade de utilizar ferramentas que possibilitassem analisar o indivíduo em sua totalidade. Quando o indivíduo é capaz de compreender e apreender o seu meio social, isso se reflete na sua capacidade de compreender e apreender seus processos de construção individual. É nesse momento que a individualidade adquire relevância.

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diferentes e fornece aos leitores diferentes mensagens e entendimentos. Nas Ciências Sociais, as narrativas de vida são utilizadas para a compreensão de relações sociais em seu desenvolvimento histórico. A partir dessas leituras, algumas considerações feitas apontam para os questionamentos que levantamos em nosso estudo:

● De que modo os indivíduos do nosso tempo, inseridos numa sociedade marcada pelo

consumo, pela coletividade, pela quantidade singularizam os eventos ocorridos durante suas vidas?

● De que modo esses eventos modificam e/ou interferem em sua maneira de agir sobre o

mundo?

Josso (2008, apud PASSEGGI, 2008) apresenta uma alternativa de resposta a esses questionamentos quando justifica, com a metodologia autobiográfica de pesquisa que

É por isso que essas identidades incessantemente em devir, manifestações de nossas existencialidades em movimento, são, em certos períodos históricos, mais fortemente perturbadas pelos efeitos desestruturantes de mudanças sociais, econômicas e/ou políticas. Nós vivemos, na Europa e em outras regiões do mundo, esse tempo de recomposição de nossas identidades, porque nossas existências são fragilizadas e afetadas no cotidiano pelos efeitos de mundialização do mercado (...), novas formas de pobreza, novos problemas sanitários, modificações climáticas relacionadas a poluentes tradicionais em crescimento exponencial. (p. 26)

O estudo que buscamos desenvolver ao longo dessa pesquisa é um exemplo disso. Na Educação, as escritas de si adquirem um caráter reflexivo: são uma forma de fazer com que o professor recupere suas experiências, num processo autoavaliativo. Esse trabalho feito com o docente surge como uma abordagem na qual o sujeito participante da pesquisa é, ao mesmo tempo, objeto e sujeito de formação. A utilização das HIVI – Histórias de Vida levam esse sujeito-professor a perceber o caráter processual de sua formação e a refletir sobre ela. Esse processo de reflexão sobre sua formação e sobre sua prática recupera as visões praxiológicas da Educação e valorizam a experiência pessoal do professor em formação. Em nosso viés, o entorno que nos interessa é a valorização da experiência pessoal do outro indivíduo envolvido no processo de ensino-aprendizagem: o aluno.

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circunstâncias múltiplas que alicerçaram suas ideias, suas opiniões e sua maneira de ver o mundo e a sua própria vida.

Becker (1997), ao falar de história de vida, salienta a dificuldade de delimitar esse gênero, que

tampouco é ela [a história de vida] uma autobiografia convencional, ainda que compartilhe com a autobiografia sua forma narrativa, seu ponto de vista na primeira pessoa e sua postura abertamente subjetiva. Certamente, não é ficção, embora os documentos de história de vida mais interessantes tenham uma sensibilidade, um ritmo e uma urgência dramática que qualquer romancista adoraria conseguir. (p. 101 e 102)

Cabe salientar que aquilo que o autor chama autobiografia não será considerado como um gênero diferente em nosso trabalho. Autobiografia, histórias de vida, relatos, escritas de si são usadas, em diversos estudos, como gêneros sinônimos. Miranda (1992) realiza uma breve delimitação desses gêneros, antes de iniciar os estudos das obras de Graciliano Ramos e Silviano Santiago.

O autor considera o advento da autobiografia como parte da formação plena do indivíduo moderno, suscitada no período das Luzes e com a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadãos. Esse gênero seria o espaço propício para a manifestação do individualismo e da nova concepção de pessoa então forjada.

Apesar de apresentarem suas singularidades, daremos prosseguimento à tradição que reúne essas nomenclaturas em uma só. Por questões didáticas, em nosso projeto, nos referiremos às expressões do gênero autobiográfico como récit de vie. Esses récits de vie aqui analisados são recortes realizados na narrativa da trajetória pessoal de cada indivíduo que se propôs a escrever; mais especificamente, os escritos utilizados para compor o corpus deste estudo tratam de uma situação particular, que pode ou não ter sido internalizada como uma situação de trauma, uma ruptura ou um conflito claramente definido.

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representa para o sujeito, de forma individual ou coletiva. Formenti (2008, apud PASSEGGI, 2008), em seus estudos que abordam a pesquisa autobiográfica e o zelo, corrobora essa afirmação quando diz que “a escrita pode ser uma ocasião de reconexão. As experiências sensórias deixam sinais na escrita.” (FORMENTI, 2008 apud PASSEGGI, 2008; p. 63). E continua, atribuindo à escrita a possibilidade de tradução das experiências de vida: “A experiência de si mesmo não se pode nomear, narrar; para poder transformá-la em símbolo, em alguma coisa de visível também aos outros, para tornar visível o invisível, serve uma linguagem adequada.” (p.63)

O desenvolvimento teórico-metodológico de pesquisas de cunho autobiográfico pode ser considerado ainda incipiente, se avaliarmos a vastidão de abordagens, corpus, métodos de análise desse corpus e suas contribuições, em especial para pesquisas que buscam ser interventivas. Craveiro (2008 apud OLINDA & JÚNIOR, 2008) chama a atenção para o fato de que, mesmo na Educação, que é uma das áreas na qual a pesquisa autobiográfica possui maior espaço, esse modelo de estudo avança com dificuldade: “Tradicionalmente, por atender aos rigores dos métodos, a investigação educacional qualitativa confere pouca ou nenhuma importância a aspectos pessoais presentes nas falas dos sujeitos participantes da pesquisa (p. 30).”

A própria pesquisa qualitativa ainda sofre quando, por vezes, é forçada a encaixar-se nos moldes da pesquisa quantitativa. O resultado são problemas de pesquisa não solucionados e hipóteses mal formuladas, o que compromete a qualidade do estudo.

A abordagem qualitativa passou por várias mudanças no âmbito das disciplinas humanas. Tem sua origem na sociologia e na antropologia, numa tentativa de entender o outro4. A busca por novos processos de composição etnográfica culminou na virada narrativa: a forma de escrever e de se posicionar dentro do texto mudou bastante desde então.

Apesar da complexidade do percurso histórico que a pesquisa qualitativa percorreu, é fundamental estabelecer uma definição mínima. Para o trabalho ora apresentado, adotamos o conceito de Denzim (2006), segundo o qual:

A pesquisa qualitativa é uma atividade situada que localiza o observador no mundo (....) envolve uma abordagem naturalista, interpretativa, para o mundo, o que significa que seus pesquisadores estudam as coisas em seus cenários naturais, tentando entender, ou interpretar, os fenômenos em termos dos significados que as pessoas a eles conferem (...) envolve o estudo do uso e a coleta de uma variedade de materiais empíricos – estudo de caso; experiência pessoal; introspecção; história de vida; entrevista; artefatos; textos e produções culturais; textos observacionais, históricos, interativos e visuais – que descrevem momentos e significados rotineiros

4

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e problemáticos na vida dos indivíduos. Portanto, os pesquisadores dessa área utilizam uma ampla variedade de práticas interpretativas interligadas, na esperança de sempre conseguirem compreender melhor o assunto que está ao seu alcance. (p. 17)

O pesquisador qualitativo, por sua vez, deve estar disposto a buscar por - e, quando for o caso, criar – técnicas que se adequem às suas perguntas de pesquisa. Os récits de vie como corpus possuem certo ineditismo na área da pesquisa linguística. Consequentemente, o aparato teórico-metodológico necessário para a análise dos dados precisou ser construído aos poucos e de forma interdisciplinar: utilizamos fontes da Educação, da História e das Ciências Sociais, sem preterir as contribuições dos estudos linguísticos – pois, como afirmou Barthes (1971) e considerando nossos problemas de pesquisa, “parece razoável dar como modelo fundador à análise estrutural da narrativa a própria linguística” - para que fosse possível elaborar uma metodologia pretensamente sólida, passível de aplicação e que servisse para pesquisas vindouras.

A pesquisa ora apresentada justifica-se pela necessidade premente de situar os récits de vie e suas variantes no âmbito da linguística. Demais áreas do conhecimento (História, Ciências Sociais, Educação) já estudam a autobiografia há um certo tempo. Para o desenvolvimento deste trabalho, um dos empecilhos surgidos (e que tentamos superar) foi exatamente a falta de uma metodologia advinda da linguística que fosse passível de utilização no corpus selecionado e que respondesse satisfatoriamente aos questionamentos colocados. Eis por que nos foi estimulada a missão de adaptar metodologias que pudessem amparar nosso estudo.

No âmbito da Linguística, revisitamos obras como as de Adam (2008) e Charadeau (2008), no intuito de verificar teorias que tratassem da narrativa. Essas duas nos pareceram bastante representativas das pesquisas que vêm sendo desenvolvidas a respeito de dois grandes conceitos que permeiam as práticas discursivas: o texto e o discurso, também apresentados como texto/discurso. A primeira obra apresenta um arcabouço teórico-metodológico que busca orientar teorias de produção de textos e a segunda descreve os modos de organização do discurso, com foco na tipologia textual que conhecemos hoje.

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linguística textual e da análise do discurso, uma tendência da atualidade. A linguística textual é sugerida por esse autor como um subdomínio englobado pela análise das práticas discursivas. Seus estudos apontam para uma dificuldade também percebida por nós, ao iniciarmos a escolha das categorias que seriam utilizadas para a análise dos récits de vie. Para Adam, “O texto é, certamente, um objeto empírico tão complexo que sua descrição poderia justificar o recurso a diferentes teorias (p. 25)”. Desse modo, entendemos que essa complexidade é decorrente das esferas do discurso, uma vez que Adam acredita que essa resposta seria encontrada quando da relação entre esse objeto e o domínio mais amplo do discurso em geral.

A proposta de estudo de Charadeau (2008) enfatiza notadamente a análise do discurso. O estudo desse discurso é a última parte de uma gramática que trabalhou o sentido e a expressão e vem a ser, segundo o autor, o verdadeiro fundamento da linguagem. O texto e o discurso vêm sendo discutidos a partir de uma grande variedade de teorias, o que dificulta a percepção de conclusões. O estudioso indica, então, princípios que regeriam o modo de organização de quatro tipos de discurso, a saber: o descritivo, o narrativo, o argumentativo e o enunciativo, sendo este último um discurso que abrangeria os outros três. Charadeau também propõe uma correspondência entre esses modos do discurso e alguns gêneros textuais.

Esses estudos, para nosso trabalho, foram bastante relevantes, do ponto de vista do levantamento do estado da arte. Os dois trabalhos baseiam-se nos estudos do texto/discurso. Nesse ponto da pesquisa, não figuraram como aplicáveis ao nosso corpus porque o trabalho com escritos autobiográficos ainda necessita de uma delimitação inicial no campo da Linguística. A partir de tal delimitação, será possível aprofundar esses estudos por um dos muitos caminhos que encontramos, mas que deixamos em suspenso para um possível estudo doutoral futuro. Assim, em busca de um aparato teórico-metodológico no âmbito da Linguística, selecionamos, como descrito nos próximos capítulos, Barthes e seus conceitos para a análise estrutural da narrativa.

2.3 Escritas de si

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comunicando, compartilhando saberes e experiências, que podemos operar uma modificação no mundo em que vivemos, por meio do diálogo.

Nesse processo comunicativo, o indivíduo está em constante reflexão sobre suas experiências. E é essa reflexão que faz com que essas experiências adquiram relevância para a sua trajetória pessoal. Comunicação e transformação estão, portanto, intrinsecamente ligadas. Essa comunicação é o meio através do qual o indivíduo reflete sobre suas experiências e as socializa. Função primeira da linguagem, a comunicação é o caminho para a mudança do indivíduo, para si e para a sociedade.

É por meio da socialização de nossas experiências que nos fazemos autores de nossas vidas. Somos modificados a cada nova experiência, e a pessoa-eu que passará pela experiência subsequente já será outra. Em contrapartida, a vivência por si mesma não promove nenhuma transformação no ser. A reflexão é uma necessidade precípua para que essa modificação ocorra. É nisso que deve se apoiar um processo educativo que visa a ser consistente: nas experiências, nos conhecimentos e nos interesses de cada um. Por meio dessa reflexão crítica, é possível reconhecer os problemas existentes e encontrar os meios para solucioná-los.

Longe de ter aqui um objetivo terapêutico ou psicanalítico, compreendemos que a comunicação figura, então, como pedra angular desse movimento de autotransformação. É comunicando, compartilhando saberes e experiências, que podemos operar uma modificação no mundo que em vivemos, uma construção interacional por meio do diálogo.

A narrativa das experiências é uma forma de melhor compreendê-las. Mesmo a narrativa de experiências traumáticas (MAIA-VASCONCELOS, 2005) é uma forma de provar que se sobreviveu a elas e, a partir disso, perceber os ensinamentos, positivos ou negativos, que essas vivências deixaram. Em seus estudos sobre vivências e histórias de doença e morte, Maia-Vasconcelos (2010, p. 139) percebeu que a enfermidade e a hospitalização

podem constituir uma situação estressante e traumática para o paciente, que deve enfrentar o ambiente hospitalar, estranho e ameaçador, a separação temporária da família, a ruptura de sua rotina, o distanciamento dos amigos e da escola.

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rompimento e reenlace com a vida. A narrativa é, portanto, reconhecida como a forma primordial de organização da experiência humana, como atesta Tavares (2007):

A ideia de narrativa como algo que perpassa o tempo e se engendra em diferentes períodos da história, que ultrapassa fronteiras culturais e se faz onipresente em todas as civilizações, nos leva a pensar que talvez, ela, a narrativa, seja o melhor instrumento para tentar compreender o homem e sua jornada pelo mundo. Sob esse aspecto, podemos pensar na narrativa, e em seus discursos, como uma forma de expressão do pensamento e das relações pessoais e sociais do homem com e em sua época. (TAVARES, 2007)

A organização dessas narrativas é uma forma de atribuir sentido a cada experiência vivida e identificar seu impacto na trajetória pessoal como um todo. É uma forma de tornar compreensível aquilo que acontece na nossa vida. Ao colocar os fatos em uma determinada ordem, também estamos assumindo um posicionamento diante desses acontecimentos. Narrar um episódio é, também, construir nossa própria identidade face ao ocorrido. A narrativa figura, portanto, como o gênero por excelência que o homem utiliza para comunicar esses eventos ocorridos em seu percurso.

Segundo Bertaux (2010), podemos partir do estudo de um microcosmo em direção ao entendimento do macrocosmo. Na referida obra, o autor, citando o estudo realizado com padeiros franceses, afirma que as narrativas de vida proporcionam uma visão diacrônica do processo biográfico (micro) e suas influências no desenvolvimento histórico (macro). Porém, uma pesquisa que abordasse as autobiografias escritas de diversos indivíduos a fim de perceber seu impacto no coletivo seria exaustiva e inviável (é mister acrescentar que aquilo que o autor denomina autobiografia escrita são as obras de caráter literário escritas pelo indivíduo, famoso ou não, que busca contar sua trajetória pessoal).

Nas ciências sociais, essas narrativas são utilizadas para a compreensão das configurações das relações sociais em seu desenvolvimento histórico. Bertaux (2010) sugere uma pesquisa com os récits de vie (por ele nomeados como narrativas de vida) no âmbito da pesquisa etnossociológica. Na sua compreensão, a pesquisa (auto)biográfica visa à compreensão de como os indivíduos e grupos sociais refletem os acontecimentos e experiências que vão ocorrendo ao longo da vida.

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apresentada caracteriza-se como qualitativa e, nesse âmbito, como autobiográfica. Em cada récit escrito pelo sujeito, procurou-se saber os motivos de abandono e retorno à escola.

Quando tratamos dos escritos autobiográficos, é por meio deles que o sujeito-autor se autodescreve, escolhendo o modo como deseja narrar episódios de sua vida. Ao falar de si, o sujeito mostra-se, não como é (até porque a memória é espaço falho), mas como gostaria de ser, ou como gostaria de ter sido. Sobre isto, Becker (1997) diz que:

o autor [da narrativa de vida] só nos está contando uma parte da história, que selecionou seu material de modo a apresentá-lo com o retrato de si que preferia que tivéssemos e que pode ter ignorado o que poderia ser trivial ou desagradável para ele, embora de grande interesse para nós. (p.102)

No momento emque tenta relatar um episódio vivido, o indivíduo recorre à memória. E a memória é lugar de esquecimento. Não há como ativarmos a memória para nos lembramos de um evento tal e qual o episódio ocorreu. Quando se dá vazão a esses vários “outros”, a tentativa do sujeito-narrador é de preencher o vazio causado pelas falhas da memória. Borges (1985) diz que, apesar de ser fluida e lugar repleto de lacunas, a memória é item essencial. A identidade do sujeito seria composta, portanto, de memória e esquecimento. Há lacunas, espaços falhos, que serão preenchidos de maneira incerta; o autor pode estar tentando aproximar a narrativa do acontecido real, num esforço de construir a narrativa da forma mais verossímil possível, como também é possível que esteja querendo encobrir algum fato desagradável. As narrativas de vida seriam uma tentativa de preenchimento dessas lacunas e se baseiam nas escolhas do indivíduo que narra. Por isso, a expressão récit de vie, selecionada para este trabalho, nos parece a mais adequada: o ato de narrar é individualizado, varia conforme aquele que narra. Quando duas pessoas contam o mesmo fato, percebemos duas narrativas distintas. Os fatos são os mesmos em sua essência, mas estão embotados de duas percepções divergentes. Ao serem contados e recontados, esses fatos acabam por cristalizar-se numa memória coletiva, forjando determinados elos de causalidade.

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Diagrama de Cardoso (2009, In: MAIA-VASCONCELOS; CARDOSO, 2009)

A narrativa de vida adquire relevância linguística por ser necessário recorrer aos estudos sobre gêneros discursivos e sobre a tipologia narrativa para fins de definição. Ela recorre ao discurso e à memória para ganhar forma. O tipo de texto utilizado com maior frequência seria o narrativo, tomado na tentativa de atribuir sequência a eventos recortados de um discurso memorial maior, e a utilização de metáforas e expressões metafóricas é recorrente. Nosso trabalho busca dar continuidade a essa tentativa de definição desses escritos autobiográficos.

Diversos estudos em outros campos das Ciências Humanas discorrem sobre a construção subjetiva dessas narrativas em sua composição objetiva da vida social. Nesse contexto, Bourdieu (2001[1994]) sinaliza para a construção de um sentido coerente na formulação da autobiografia, em que o autor-ator, na tentativa de racionalizar diversos eventos ocorridos no percurso de sua historia contada, canaliza eventos e interdita outros, formulando uma própria representação de um ideal do seu eu. O autor considera que a narrativa, biográfica ou autobiográfica, busca organizar os eventos em sequências ordenadas e inteligíveis.

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esse eu decide contar sua história pessoal. Não se deve buscar apreender o sujeito por seu modo de contar sua história de vida, com riscos de reduzi–lo a uma instância isenta de conflitos. Desde as primeiras análises, as histórias de vida são estudadas como ferramenta de transformação para o sujeito que se narra. Falar de si seria, portanto, estabelecer um domínio no qual seria possível entender a singularidade do enunciador. Incorporada essa relevância que nossa própria história possui, torna-se mais fácil compreender a história do outro. O indivíduo constrói-se em sua individualidade ao mesmo tempo em que se projeta como ser social.

É necessário criar uma metodologia própria para esse tipo de pesquisa qualitativa, e não analisar seus componentes à luz da metodologia de cunho quantitativo. O caráter objetivo atribuído a pesquisas quantitativas baseia-se no resultado final, obtido através da compilação de dados. O que pouco se sabe é que, antes de se tornar uma resposta em números, esses dados passam por uma triagem inteiramente subjetiva. É comum validar imediatamente os dados que o entrevistado preenche numa ficha, mas quando esses mesmos dados são colhidos por meio de uma entrevista, para muitos a pesquisa adquire instantaneamente um caráter duvidoso.

Os artigos que compõem a obra Artes de existir: trajetórias de vida e formação (OLINDA & JR., 2008) servem como exemplo da pluralidade que o trabalho com autobiografia, história de vida, escrita de si e demais manifestações da autoescrita pode abarcar. Alguns autores analisam sua própria aprendizagem enquanto outros exploram a intervenção da autobiografia na aprendizagem de outros sujeitos.

Outros autores mostram que também é possível aliar esse tipo de estudo às escritas etnográficas5, assim como aos escritos literários6. É também passível de utilização para a compreensão do processo formativo de arte-educadores, de cuidadores, de professores etc. Um dos autores considera, indo mais longe ainda, as próprias situações de escrita e pesquisa acadêmicas como processos autobiográficos (GONDIM & MARTINS apud OLINDA & JÚNIOR, 2008). Aqui, fazemos referência a apenas um livro de uma determinada área, a Educação. Sabe-se que a autobiografia permeia os estudos sociológicos desde os estudos iniciais de Becker (1997), que já chamava a atenção para esse tipo de pesquisa. Na História, Ginzburg (2007) buscou identificar, em escritos históricos, marcas que apontassem para a

5

KLINGER, 2006. 6

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presença pessoal de um autor em um texto que deveria ser notadamente informal. O autor italiano considera que o próprio ato de refletir sobre o texto é um processo de autoformação.

De um modo geral, as pesquisa (auto) biográficas tomam como objeto de estudo a forma que as pessoas atribuem às suas experiências, como estas ganham significado e como são inscritas no curso de vida desse sujeito. É a busca de perceber as modalidades através das quais os sujeitos vivenciam sua própria existência.

É por meio da socialização de nossas experiências que nos fazemos autores de nossas vidas. Somos modificados a cada experiência, o que implica que a pessoa que passará pela experiência subsequente já é outra. É nisso que se deve apoiar um processo educativo que visa ser consistente: nas experiências, nos conhecimentos e nos interesses de cada um. Por meio dessa reflexão crítica, é possível reconhecer os problemas existentes e encontrar os meios para solucioná-los.

Essa preocupação com o outro é própria dos estudos autobiográficos no âmbito da Educação. Compreende-se que, a partir do momento em que o sujeito formador compreender seu próprio trajeto formativo, ele é capaz de sensibilizar-se em relação ao caminho de formação que o sujeito que está sob a sua tutela está percorrendo (ECKERT-HOFF, 2008; PASSEGGI, 2005).

Enquanto sujeito do mundo, o indivíduo é bombardeado por experiências o tempo inteiro. Essas experiências vão adquirir relevância, significação, a partir do instante em que o sujeito reflete sobre elas. A reflexão das experiências é um momento de autodiálogo, em que o sujeito pondera, atribui peso, avalia, enfim, efetua uma série de operações de acordo com a sua vivência. É nesse momento que o indivíduo se constrói enquanto ser singular, para, num momento posterior, definir-se enquanto ser social. Essa atribuição de valores às experiências é o segundo passo: o de socializar, externar as experiências que o sujeito considerou mais significativas.

(35)

Olinda & Jr. (2008) citam alguns outros temas que podem ser trabalhados sob a perspectiva da abordagem autobiográfica: “formação juvenil; experiência religiosa; espiritualidade; valores em educação e cultura de paz; educação ambiental dialógica; arte e cultura popular; gênero e movimentos sociais.” (p. 15). Nossa pesquisa, assim como a grande maioria dos estudos consultados, também envolveu o sujeito adulto, mas do lado oposto: o aluno adulto, da modalidade de ensino de educação de jovens e adultos.

O processo formativo tão citado nesses estudos não está aliado apenas à simples vivência de experiência. Não é suficiente estar no mundo e simplesmente deixar que os acontecimentos resvalem; isso não caracteriza a internalização da experiência. Um indivíduo que passa por um certo acontecimento, que experiencia uma dada situação em qualquer momento de sua vida, precisa tomar para si o momento de reflexão sobre o ocorrido, para que a partir daí essa experiência adquira significado e torne-se um marco em seu trajeto pessoal. A modificação causada pela reflexão acerca desse acontecimento afeta também as experiências seguintes, já que transforma o indivíduo que passou por essas vivências.

2.4 As produções dos alunos da EJA

O indivíduo que está matriculado na EJA precisou interromper seus estudos em algum momento de sua vida escolar. Num momento posterior, retomou-os. Os fatos que circundam esses acontecimentos são de extrema importância para a compreensão desses dois momentos: o abandono e a retomada. Os jovens e adultos que participam dessa modalidade de ensino devem ter acesso às mesmas possibilidades de desenvolvimento e descobertas que o aluno do ensino regular. Porém, ao contrário do aluno do ensino básico, que é uma criança desvendando o mundo através do que o professor apresenta em sala de aula, o aluno da EJA já possui suas próprias experiências. O trabalho do professor é fazer com que essas experiências adquiram um significado que reflita em seu aprendizado.

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narrativa seria mais adequada ao récit, e vice-e-versa. Colocamos algumas perguntas, com a intenção de respondê-las no decorrer de nosso trabalho: é possível perceber que o récit possui características que faltam à narrativa prototípica? Se ele não compartilha dessas características, seria pertinente classificá-lo como narrativa? Qual seria, então, o modelo narrativo mais adequado à nossa proposta autobiográfica?

Um de nossos objetivos específicos é mapear as características básicas dos récits de vie, enquanto gênero que utiliza a sequência narrativa. Para atingir tal objetivo, selecionamos como critério de análise as categorias nomeadas funções e índices, propostas por Barthes (1971, 2008) em sua Análise estrutural da narrativa. Esses conceitos serão retomados e explicados mais à frente, com a utilização de exemplos tanto do próprio autor como do nosso corpus. Por ora, consideremos que tais categorias são estruturas fundamentais para a caracterização de uma narrativa. Desse modo, são suas relações - que veremos que são distribucionais e integrativas - que vão dando corpo ao ato de narrar.

As funções compreendem as ações que vão dando forma à narrativa. Temos funções cardinais e catálises. As primeiras desenvolvem o texto e é por meio da escolha de uma função cardinal em detrimento de outra que a narração pode ir por esse ou aquele caminho. As catálises são ações paralelas, que acontecem ao derredor dessas ações principais e vão agregando informações. A relação entre essas funções é de natureza distribucionais.

Já os índices dizem respeito aos subentendidos que compõem a narrativa. Podem denotar algo sobre o caráter do personagem (no caso da categoria índices, subcategoria que leva o mesmo nome da categoria principal) ou informa algo de caráter puramente descritivo (no caso do informante, outra subcategoria). A relação que existe entre os índices é de natureza integrativa: como só é possível compreender a relevância da descrição sobre o caráter de um personagem por meio de determinada ação ocorrida na narrativa, é necessário, então, adentrar o nível das funções.

2.5 A escolha do termo récit de vie

Imagem

Figura 3: Diagrama das classes propostas por Barthes (1971, 2008)
Gráfico da ondulação narrativa

Referências

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