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Análise do discurso: a herança epistemológica

CAPÍTULO I: ANÁLISE DO DISCURSO CONTEMPORÂNEA: DISCURSO,

1.1 Análise do discurso: a herança epistemológica

A França dos anos de 1960 vivenciava um contexto sociopolítico revolucionário: o país passava por um período de profunda insatisfação popular, marcado por greves e intensas manifestações nas quais se envolveram estudantes e trabalhadores. Esse cenário deflagrou também muitas indagações e refutações acerca do papel das diversas Ciências Humanas. No entremeio das discussões filosóficas e acadêmicas, Michel Pêcheux promoveu uma série de questionamentos na instância da linguagem, com vistas a descrever a função e o funcionamento do discurso na sociedade, a partir da articulação de campos do saber que outrora pareciam muito distantes: a Linguística saussuriana, o Materialismo histórico derivado de Marx e a Psicanálise freudiana.

Para Pêcheux ([1969]1997, p.71), a dicotomia saussuriana langue/parole mais “deixou a porta aberta para a entrada do sujeito” que o excluiu definitivamente dos estudos linguísticos. E, sendo assim,

mesmo que explicitamente ele [Saussure] não o tenha desejado, é um fato que essa oposição (língua/fala) autoriza a aparição triunfal do sujeito falante como subjetividade em ato, unidade ativa de intenções que se realizam por meios colocados à sua disposição. (PÊCHEUX, [1969]1997, p.71).

Podemos dizer que a proposta pecheuxtiana advogava contra o preceito de que a linguagem fosse hermética, ou ainda, que os dados tivessem existência e sentido em si mesmos. Sendo assim, Pêcheux questionava a negação da exterioridade, propondo que os estudos observassem a linguagem em sua prática, uma vez que a significação, ou a produção dos sentidos, advém da simultaneidade entre fato e acontecimento.

O trâmite transdisciplinar entre o linguístico e o histórico-social correspondia à vontade de se explicar não apenas o intradiscurso, mas também o interdiscurso15, visto que o exterior à língua mostrava-se como mais um fator constitutivo da linguagem. Desse modo, institui-se aquela que seria a concepção teórica mais relevante para os estudos pecheuxtianos: língua e história interligam-se, muitas vezes, de maneira conflitiva, no sujeito interpelado pela ideologia e pelo inconsciente.

A partir do cotejamento entre a Linguística saussuriana, o Materialismo histórico derivado de Marx e a Psicanálise freudiana, Pêcheux pretendia analisar o objeto teórico discurso, concebido a partir de seu caráter complexo, entendido como a língua em funcionamento, pelos sujeitos sociais e na História. Discurso, um material simbólico, uma fresta por meio da qual Pêcheux vislumbrou a possibilidade de se estudar o funcionamento dos mecanismos de produção de sentidos. Era o início de uma disciplina de confluência que projetava o conhecimento do caráter histórico da linguagem: a Análise do Discurso, doravante AD.

Em um primeiro momento, a AD caracterizou-se especialmente pela influência althussero-lacaniana. No discurso político, o primordial objeto de análise dessa fase, Pêcheux acreditava existir uma ideologia objetiva que merecia ser cientificamente explicada e descrita. Para tanto, o filósofo elaborou uma metodologia de análise L’analyse authomatique du discours. [Análise automática do discurso]. A obra, de 1969, fruto de sua tese de doutorado, é tida como o manifesto metodológico sobre o qual se ergue a AD francesa. Nela, estão os conceitos fundantes da teoria, bem como uma crítica à noção

15 O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é

conduzida [...] a incorporar elementos pré-construídos produzidos no exterior dela própria; a produzir sua redefinição e seu retorno, a suscitar igualmente a lembrança de seus próprios elementos, a organizar a sua repetição, mas também a provocar eventualmente seu apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação (COURTINE E MARANDIN, 1981 apud BRANDÃO, 2004, p. 91)

estruturalista de língua, já que para Pêcheux ([1969]1997, p. 62), ao se conceber a língua como um sistema, a mesma “deixa de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido; ela se torna um objeto cujo funcionamento uma ciência pode descrever”. Por isso, Pêcheux preocupou-se em refletir sobre o discurso, o ponto mediano entre língua e ideologia.

Os estudos pecheuxtianos desenvolveram-se em um terreno abalado, conforme Braga (2013, p. 18), numa “suposta crise da Linguística, que se impunha com mais força, trazendo à tona as divergências no que concernem as questões da língua e do sujeito”, promovendo assim, o “declínio” do Estruturalismo e, conforme Gregolin (2011, p. 26), a emergência de um grupo posteriormente denominado “pós-estruturalismo” composto a partir de “uma insatisfação em relação à teoria do sujeito proposta pela fenomenologia” e pela busca de outras respostas “seja indo a Freud, a Marx, a Nietzsche, etc.”.

Para Pêcheux, interessavam os processos discursivos nos quais a materialidade linguística era usada como o instrumento que faz circular as ideologias. Segundo Zandwais (2009, p. 22), os postulados pecheuxtianos criaram “condições para inscrever, de modo concreto, a história na ordem do discurso e o discurso no campo da práxis”.

Com a Análise Automática do Discurso, estabelecia-se para o materialismo histórico, considerado como a teoria das formações sociais e suas transformações, um campo teórico específico, porém dialético, no qual se buscava a relação entre a ideologia, o discurso e a subjetividade. Na primeira fase da teoria, reconhece-se o indivíduo como um sujeito “preso”, assujeitado, a uma determinada ideologia, no seio de uma formação social. O sujeito se reconhece a partir das práticas no interior das formações ideológicas endossadas pelas formações discursivas16.

Ainda em 1969, o filósofo Michel Foucault publicou A arqueologia do saber, obra na qual o discurso assume papel central. Seus apontamentos inauguraram uma série de discussões e “investigações sobre as formações discursivas, as práticas discursivas e as relações entre saber e poder” (GREGOLIN, 2011, p. 53). A noção de formação discursiva17 chamará atenção particular de Pêcheux. Ele a fará funcionar dentro de seu

16 Não é nossa intenção aprofundarmo-nos na exposição das três fases da Análise do Discurso, já que nossa

tese privilegia as reflexões de Michel Foucault. Para aprofundamento na história da AD, sugerimos que o leitor pesquise a obra de Denise Maldidier.

17 “No caso em se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e

no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciados, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva” (FOUCAULT, [1969] 2012, p. 47].

projeto, já que a reconhece como o encontro da práxis tanto almejada pela geração de intelectuais da qual faz parte.

Tanto Foucault quanto Pêcheux sustentam seus estudos em alianças tríplices. Justamente essas é que lhes conferem aproximações e afastamentos. Pêcheux promoveu releituras de Saussure fazendo-as cotejar os estudos de Marx e Freud, em busca de um método de análise, mantendo-se, assim, muito próximo da Linguística. Já Foucault, amparou-se na tríade Nietzsche, Marx e Freud, voltando-se mais à História e à Filosofia.

Conforme Gregolin (2011), ao perscrutar as relações entre os saberes e os poderes na história social do Ocidente, Foucault acabou discutindo temáticas amplas, em variadas direções, pressupondo que as coisas não preexistem às práticas discursivas, mas sim delas se constituem. E, assim, constituiu-se uma teoria foucaultiana do discurso que, em relação à teoria de Pêcheux, possui intersecções e distanciamentos.

Podemos dizer que a grandiosidade do percurso desses dois filósofos situa-se numa construção teórica que transpôs diferentes momentos, considerando temáticas predominantes distintas, a partir de releituras críticas e re-interpretativas do que havia sido posto anteriormente, em um movimento chamado de “pensamentos em marcha” por Blanchot (1986) ao se referir à obra foucaultiana e que, segundo Gregolin (2011, p. 60), também poderia se aplicar “ao pensamento filosófico, teórico e metodológico de Pêcheux”. Em conformidade com Gregolin (2007, p. 09-10), por meio dos “diálogos teóricos (nunca tranquilos)” entre Foucault e Pêcheux teceram –se os “fios de uma teoria do discurso que propôs um novo olhar para o sentido, o sujeito e a história”. Como herdeiros dessa teoria, é em seu terreno que se fundam os alicerces desta tese.

1.2 NA ESFERA DISCURSIVA DO ENUNCIADO LINGUÍSTICO: A