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Arquegenealogia: a herança metodológica

CAPÍTULO I: ANÁLISE DO DISCURSO CONTEMPORÂNEA: DISCURSO,

1.3 Arquegenealogia: a herança metodológica

Contemporâneo a Pêcheux, que se dedicou a pesquisar o discurso político , Michel Foucault também se interessou pelo discurso, alicerçando-se no tripé Nietzsche, Freud e Marx, empreendendo uma releitura tensa, arraigada nas problemáticas da História e da Filosofia. Isso, contudo, não impossibilitou que os projetos epistemológicos de ambos [Pêcheux e Foucault] “se encontrassem em vários pontos” (GREGOLIN,2004, p.53). O discurso, objeto de estudo de Pêcheux, também está na base dos estudos foucaultianos.

No geral, os estudos de Michel Foucault partilham do legado dos filósofos Kant, Hegel, Kierkegaard e Nietzsche e, por conseguinte, refletem a queda na crença do homem como ser livre e capaz de traçar seu próprio destino, pois para Foucault (1982a), o sujeito é subjetivado de vários modos. Avesso às tradições, o filósofo empreende uma obra dialética e de constante problematização, na qual interagem, principalmente, Filosofia e História. Conforme afirma J Rajchamn (1989), apud Gregolin (2007, p. 62):

Foucault não concebia seu próprio trabalho e nem o de seus predecessores como um todo homogêneo com bordas definitivas ou acabadas, ao contrário, ele investigava as rupturas, as fissuras, as contingências e as reelaborações no que se apresenta como tradição. O “problema do conhecimento” não se delineia nunca da mesma maneira, e as diversas maneiras de propor este problema têm, elas mesmas, uma história. Trata-se, pois, menos de dar uma resposta definitiva a esta questão que de reinventá-la constantemente.

Comumente, a obra foucaultiana nos é apresentada em três fases: a) arqueológica – método de pesquisa do filósofo até o final do anos 1970; b) genealógica – um trabalho baseado nas relações saber-poder, desenvolvido a partir de 1971; e c) técnicas de si – iniciado em 1980, quando buscar demonstrar o conjunto de experiências e técnicas usadas pelo sujeito nas relações consigo mesmo e com os demais.

Contudo, cabe ressaltarmos que a apresentação de sua obra em três fases corresponde a um objetivo didático. Isso porque as fases não são estanques; ainda que nos pareça, por conta das datas acima marcadas, que uma fase encerra a anterior, isso não acontece. Na verdade, no intuito de se produzir uma história ocidental da subjetivação do sujeito, Foucault está sempre buscando fazê-lo a partir de outras perspectivas, logo, as fases correspondem ao trajeto temático percorrido pelo filósofo.

Podemos dizer que as direções escolhidas para se traçar este nosso percurso de pesquisa se desenvolveram com o uso de lentes foucaultianas, ou ainda pelas Presenças de Foucault na Análise do Discurso21.

a) Arqueologia

Em um primeiro momento, Foucault propõe-se a descrever a episteme e os problemas metodológicos que ela acarreta. Essa fase é conhecida como arqueológica e possui obras como As palavras e as coisas e Arqueologia do saber. Nesta fase, Foucault

21 Título da obra organizada pelos pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos, prof. Dr. Carlos

Piovezani, profa. Dra. Luzmara Curcino e profa. Dra. Vanice Sargentini, publicada pela EdUFSCar, em 2014. Esta obra traz na capa a imagem de uns óculos, ilustração que nos motivou o uso da expressão lentes foucaultianas.

investiga a construção dos saberes das ciências, buscando esquadrinhar como essa constituição acabou produzindo a objetivação do sujeito.

Sua atenção voltou-se para a história da loucura, da medicina e de certos campos do saber que trataram dos temas da vida, da linguagem e do trabalho (História da Loucura, 1961; O Nascimento da Clínica, 1963; As Palavras e as Coisas, 1966). Trata-se, nesse momento, de investigar os saberes que embasam a cultura ocidental, de buscar o método arqueológico para revolver a história desses saberes (Arqueologia do Saber, 1969; A ordem do discurso, 1970). (GREGOLIN, 2007, p. 61)

A partir da arqueologia foi possível empreender a descrição do discurso das várias epistemes, entendida como dispositivos essencialmente discursivos. De acordo com Revel (2005), a palavra arqueologia que compõe o título de três obras de Michel Foucault Nascimento da clínica. Uma arqueologia do olhar médico (1963), As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas (1966) e Arqueologia do saber (1969), não deve ser compreendida de maneira rasa, simplesmente como uma construção ‘histórica’ dos saberes, tal qual uma demonstração dos fatos que foram se sucedendo ao longo do tempo. Foucault ultrapassa a barreira do simples narrar fatos e acontecimentos ao operar “com diferentes dimensões (filosófica, econômica, científica, política, etc.) a fim de obter as condições de emergência dos discursos de saber de uma dada época” (REVEL, 2005, p. 16-17).

Para o filósofo, em um discurso [por exemplo, da história natural], os objetos, os conceitos e as teorias se constroem a partir de regras de formação que não dizem respeito apenas às regras de utilização das palavras, nem às da sintaxe, tampouco às teóricas, mas sim nas práticas discursivas; essas é que permitirão que algo seja visto ou não, seja analisado mediante alguns aspectos e que seja nomeada por uma palavra a ser utilizada para se compor uma significação. Foucault problematizou as verdades estabelecidas para uma época e, a partir disse, nós podemos problematizar a realidade a nossa volta questionando como se constituiu a verdade que sustenta a objetivação do corpo feminino acima do peso como feio, doente, marginalizado?

Compreendemos que arqueologia, portanto não é a demonstração de como uma ciência evoluiu em certo período de tempo a partir de objetos que foram surgindo, mas atentar-se em momentos precisos – e Foucault atenta-se particularmente à idade clássica e ao início do século XIX, nos quais os novos objetos que aparecem passam a se relacionar com os demais estabelecendo uma nova configuração do saber.

Retomando uma caracterização do próprio Foucault, em História da Loucura e O nascimento da clínica, a descrição arqueológica se desenvolve numa

dimensão vertical que engloba o discursivo e o não discursivo. Em As palavras e as coisas, em contrapartida, essa descrição se circunscreve ao âmbito dos discursos. Para falar, precisamente dessa disposição horizontal que rege os discursos da época, Foucault se serve do termo “episteme”. (CASTRO, 2015, p. 53).

Ao discutir a formação de uma episteme, compreendida por Foucault (1986c, p. 13) como “uma experiência desnuda da ordem” ou “os códigos fundamentais de uma cultura”, o filósofo colocou no centro da pesquisa a formação das Ciências Humanas, polemizando desde os postulados de Darwim, Mendell e Lamark, inscritos na Biologia, até os linguísticos de Saussure; na intenção de trazer à tona como a história foi se constituindo a partir das “saliências e reentrâncias” desses saberes (GREGOLIN, 2007, p. 63).

O uso do termo arqueologia rendeu a Foucault o título de estruturalista, algo compreensível, se pensarmos que seus estudos buscaram evidenciar uma “verdadeira estrutura epistêmica” (REVEL, 2005, p. 16). No entanto, se a arqueologia fosse um método estruturalista, a mesma estrutura poderia ser aplicada aos diferentes saberes, ou “os saberes não teriam sido senão variantes” (REVEL, 2005, p. 16.), algo que não se efetivou na metodologia arqueológica. Foucault não define uma estrutura paradigmática na qual os objetos de uma ciência saem de cena e seus lugares podem ser ocupados pelos de outra; ao contrário, seu olhar traça um “corte horizontal” que revela

mecanismos que articulam diferentes acontecimentos discursivos – os saberes locais – ao poder. Essa articulação, claro, é inteiramente histórica: ela possui uma data de nascimento – e o grande desafio consiste em encarar igualmente a possibilidade de seu desaparecimento. (REVEL, 2005, p. 17).

Conforme Foucault, entre o visível e o enunciável há uma disjunção: nem sempre há correspondência entre o que é dito e o que é feito, há ditos difíceis de serem visualizados, há instantes de realidade oferecidos com nitidez, porém não são enunciados com a mesma clareza. É na disjunção entre enunciável e visível que se instaura a verdade de uma época: em tudo que pode/deve ser deixado visível e enunciável.

Essas formas prévias de continuidade, todas essas sínteses que não problematizamos e que deixamos valer de pleno direito, é preciso, pois, mantê-las em suspenso. Não se trata, é claro, de recusá-las definitivamente, mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas; definir em que condições e em vista de que análises algumas são legítimas; indicar as que, de qualquer forma, não podem mais ser admitidas (FOUCAULT, 2012, p. 31).

Foucault privilegiou as temáticas da loucura, da doença e do surgimento das ciências sociais para definir uma metodologia de pesquisa: a arqueologia. Por meio desse método de trabalho, o filósofo nos mostrou que a História não reflete um processo da razão, o que se tem é um “movimento caleidoscópico” (DIAZ, 2012, p. 7) que rearranja, reorganiza e reconfigura os mesmos elementos, ou elementos novos que surgem e se mesclam aos anteriores, estabelecendo outra configuração. A arqueologia revela, assim, terrenos irregulares, estratificados nos quais as práticas discursivas e as não discursivas se condensaram, trabalhando a favor de certas dizibilidades e visualidades, ao mesmo tempo em que impediram outras. Por isso, a pergunta que Foucault (2012, p.33) nos ensina a fazer é: “como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?”

Na ânsia de se responder ao questionamento foucaultiano, é preciso atentarmos às regularidades discursivas, não para apontar a totalidade de uma significação, mas sim sua composição “lacunar e retalhada”; mais para evidenciar sua dispersão que sua unidade, estabelecendo o que Foucault (2012, p. 153), chama de uma “positividade22”. “A positividade de um discurso caracteriza-lhe a unidade através do tempo e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos” (FOUCAULT, 2012, p. 154).

Mediante Castro (2009), o uso do termo “positividade” faz referência à perspectiva arqueológica das análises, ou seja, a busca pela dispersão e não pela totalidade da significação, pela exterioridade e não pela interioridade de um sujeito, pelas formas específicas de acumulação discursiva e não pela origem de um discurso. É na positividade que as regularidades são produzidas, nas “identidades formais, continuidades temáticas, translações de conceitos, jogos polêmicos”, tal qual um “a priori histórico”, por meio do

22 Em Arqueologia do saber, ao tratar da “positividade”, o filósofo vai dizer que “Se substituir a busca das

totalidades pela análise da raridade, o tema do fundamento transcendental pela descrição dos relações de exterioridade, a busca da origem pela análise dos acúmulos, é ser positivista, pois bem, eu sou um positivista feliz, concordo facilmente. E não estou desgostoso por ter, várias vezes (se bem que de maneira ainda pouco cega), empregado o termo positividade para designar, de longe, a meada que tentava desenrolar” (FOUCAULT, 2012, p. 153). Cabe nesta nota um esclarecimento quanto a essa colocação: acontece que Foucault foi acusado de positivismo num artigo de 1967 no Les Temps Modernes a propósito dele intitulado Um Positivista Desesperado, apenas um dos artigos deste jornal que atacavam o novo livro de Foucault, As Palavras e as Coisas. “Positivismo” é aqui contraposto ao historicismo dialético do marxismo, a posição privilegiada pelo Les Temps Modernes naquele tempo. Contra as alegações de desespero, Foucault proclamou seu “positivismo feliz”. Esta declaração que se inicia aqui como uma réplica, é transportada para o seu projeto genealógico, com Foucault proclamando na Ordem do Discurso, “o humor genealógico será aquele de um positivismo feliz”. (GRUPOFOUCAULT.BLOGSPOT.COM.BR. Disponível em <http://grupofoucault.blogspot.com.br/2011/04/traducao-positivismo-feliz.html>. Acesso em 22 ago. 2017. ). Devemos compreender, portanto, que o termo “positividade” em Foucault não tem relação com o “positivismo”.

qual se estabelece a “condição de realidade para enunciados”. (FOUCAULT, 2012, p. 155).

(...) o a priori não escapa à historicidade: não constitui, acima dos acontecimentos, e em um universo inalterável, uma estrutura intemporal; define-se como o conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva: ora, essas regras não se impõem do exterior aos elementos que elas correlacionam; estão inseridas no que ligam; e, se não se modificam com o menor dentre eles, os modificam, e com eles se transformam em certos limiares decisivos. O a priori das positividades não é somente os sistema de uma dispersão temporal; ele próprio é um conjunto transformável (FOUCAULT, 2012, P. 156).

Por meio do viés arqueológico podemos escrever uma história problematizada de nosso objeto de estudo. Para isso, é preciso buscar os a priori que são estabelecidos em uma época determinada” (DIAZ, 2012, p. 06), perguntando-se sempre “como e por que”, em certo período histórico, “esses objetos têm sido problematizados através de uma determinada prática institucional e mediante quais aparelhos conceituais”. A história é, assim, a das “práticas, do processo que seguem e do método com o qual operam”.

Posto isso, compreendemos que arqueologia não revela a história, mas uma história, contada a partir de um modo de se observar um objeto em determinado momento, sem deixar escapar a articulação desse objeto com os demais a sua volta, ou a rede que se forma em volta dele, a partir das práticas estabelecidas naquele ínterim.

A História da verdade é a História dessas práticas, do processo que seguem e do método com o qual operam. Há problematizações quando não existe correspondência entre o que se diz e o que se faz. Há fragmentos da realidade que são oferecidos com clareza ao olhar e são difíceis de serem enunciados, assim como há coisas que são ditas e é trabalhoso vê-las. Há, portanto, uma disjunção entre o visível e o enunciável. São descobertos os enunciados e as visibilidades no ponto em que eles alcançam seus próprios limites. Nesse jogo de aberturas entre o enunciável e o visível, abre-se a textura do ser, manifesta-se o suceder do verdadeiro, melhor dito, daquilo que uma determinada época considera verdadeiro. (...) Cada formação histórica propõe seus próprios questionamentos: o que posso saber, o que posso ver e enunciar em tais condições de luz e de linguagem? (DIAZ, 2012, p. 06).

Foucault nos ensina que é por meio do a priori histórico que os enunciados ganham suas condições de emergência e suas possibilidades de coexistência com outros; isso porque “o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história, e uma história específica que não o reconduz às leis de um devir estranho” (FOUCAULT, 2012, p. 155). O a priori histórico articula os enunciados, e um campo de domínio se estabelece: “caracterizado por diferentes tipos de positividade e escandido por formações discursivas distintas” (FOUCAULT, 2012, p. 157). Por isso,

em vez de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da história, palavras que traduzem, em caracteres visíveis, pensamentos constituídos antes e em outro lugar, temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo. (...) O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. (FOUCAULT, 2012, p. 157-158).

Assim, problematizando a silhueta do corpo feminino neste século XXI, seguindo o que nos ensina a visada arqueológica, compreendemos que ao revolvermos o terreno em busca de seus componentes, certamente organizados dentro das configurações que a contemporaneidade possibilita, encontraremos elementos de outrora.

À esteira desse pensamento, muitas questões podem ser colocadas quanto ao corpo da mulher; esse corpo que ao longo do século XX suscitou dizibilidades e visualidades que construíram verdades sobre ele mesmo. Por isso, cabe-nos questionar: Quais as regularidades ao se dizer desse corpo se estabeleceram como a verdade? Como cada uma delas se sustentou? Quais práticas permitiram que elas permanecessem ou se reconfigurassem ao longo desse período e na passagem para o século XXI? Como se constituiu esse terreno irregular? Quais são seus estratos?

A configuração contemporânea da silhueta do corpo feminino está organizada segundo o que é possível – ou permitido, neste momento; contudo, essa configuração não impede que elementos de configurações anteriores apareçam – e eles aparecem. O que nossa tese quer é problematizar em que medida os elementos de antes, enleados aos de hoje, podem vir a estabelecer uma configuração distinta das anteriores, porque o hoje – entenda-se aqui o início do século XXI, oferece condições para que a configuração seja diferente.

Foucault não está interessado pela soma de todos os textos do passado, nem pelas instituições em si mesmas, mas somente como produtoras de discursos considerados verdadeiros. Pergunta-se por que tantas coisas, repetidas há milênios, não surgiram simplesmente das leis do pensamento a partir de uma circunstância determinada, mas da obediência a um jogo complexo de relações. Os discursos não são figuras que se encaixam aleatoriamente sobre processos mudos. Surgem seguindo regularidades. Estas estabelecem o que cada época histórica considera verdadeiro e formam parte do arquivo estudado pela arqueologia filosófica. (DIAZ, 2012, p. 07-08).

O jogo complexo das relações dá-se porque pensamentos, ditos e práticas se articulam de modos a produzirem as regularidades que, por sua vez, estabelecem discursos

e estes terminam por legitimar a verdade de cada momento histórico. Essa articulação pode se tornar compreensível por meio da Arqueologia, porque, conforme disserta Veyne (2009, p. 59-60), acerca dessa metodologia foucaultiana,

Se os conceitos devieram, as realidades também elas devieram; provém do mesmo caos humano. Não derivam, assim, de uma origem, tendo-se antes formado por epigénese, através de adições e modificações e não segundo uma pré-formação; não possuem crescimento natural como as plantas, não desenvolvem o que teria pré-existido num germe, tendo-se constituído ao longo do tempo com outras séries de acasos, rumo a um desenlace não menos previsto. A causalidade histórica está sem motor (a economia não é a causa suprema que comandaria tudo o resto; a sociedade também não); tudo age sobre tudo, tudo reage contra tudo.

As regularidades, por sua vez, respondem/responderão a um sistema de enunciabilidade e de funcionamento, que regulam as possibilidades enunciativas do período. Nesse sentido, as regularidades de cada período podem ser observadas por suas tênues descontinuidades, porque há, em cada momento, condições outras que emergem e se estabelecem de modo a descontinuar os ditos, de modo “que as questões que colocamos à realidade diferem tanto, de uma época para outra, quanto as respostas que lhes damos [...] um real que não é o mesmo” (VEYNE, 2009, p. 60). Os questionamentos vão se diferenciando como frutos da diferenciação do discurso que, a cada momento, estabelece a verdade.

No sistema de funcionamento que incita a produção de regularidades e, consequentemente, vivencia as descontinuidades, três elementos merecem ser destacados: a língua(gem), o corpus e o arquivo. Convém que façamos uma explanação desses conceitos a partir do olhar foucaultiano.

Castro (2009, p. 251) afirma que “a problemática da linguagem é, sem lugar a dúvidas, um dos tópicos da reflexão filosófica de Foucault”. Essa problemática pode estar relacionada ao ínterim no qual a obra foucaultiana se desenvolveu [não nos esqueçamos que os postulados de Saussure cotejados no Materialismo histórico de Marx e na psicanálise de Freud por Pêcheux, colocavam a linguagem em evidência nos estudos franceses]. Logo, problematizar o objeto discurso implicava problematizar sua materialidade: a língua.

Nessa perspectiva, a língua importa à Foucault, menos pelo sistema que a constitui e estabelece suas regras de combinação, e mais por ser a matéria-prima do discurso, ou a concretude que possibilita que o discurso venha à tona. Isso significa que, sob a ótica foucaultiana, a língua é reconhecida como o elemento usado na construção das frases que

vêm a compor os enunciados. A língua é, portanto, a materialidade constitutiva, a substância que possibilita ao discurso selecionar, escolher e combinar os signos na produção dos enunciados. Podemos, assim, dizer que o filósofo reconhece a língua como um conjunto de estruturas que permitem dizer, contudo, não é o íntimo dessa estrutura que lhe interessa, mas sim, o produto de sua utilização, de fato.

Com efeito, a arqueologia é um método histórico de descrição da linguagem ao nível do que ele denomina ‘enunciados’ ou ‘formações discursivas’. Por esse caminho, Foucault tenta escapar da alternativa formalização- interpretação e, para isso, encontra na metodologia histórica, mais especificamente na história dos saberes, um modo de abordar a linguagem em sua historicidade, em sua dispersão, em sua materialidade, isto é, sem referi- la nem à sistematicidade formal de uma estrutura nem à pletora interpretativa do significado (CASTRO, 2009, p. 251).

Por conseguinte, compreendemos que, para Foucault, a produção de enunciados está atrelada à existência da língua. Vale aqui lembrarmos Courtine (2009), quando esse destaca o papel regulador do nível enunciativo sobre o nível linguístico: o primeiro controla o que efetivamente se produz com os elementos do segundo; por isso é que Foucault nos ensina a questionar por que se produziu aquele enunciado e não qualquer