• Nenhum resultado encontrado

Nos ditos de uma gestão biopolítica: a reeducação alimentar e a culpa do(s)

CAPÍTULO IV: ENTRE A TOLERÂNCIA E A DITADURA (1990-2017)

4.2 Nos ditos de uma gestão biopolítica: a reeducação alimentar e a culpa do(s)

Se a década de 1990 pode ser tida como a década dos regimes e das dietas, o mesmo não aconteceu com a década seguinte. Já nos anos finais de 1990, começaram a emergir regularidades enunciativas sustentadas pela reeducação alimentar. Para observarmos a regularidade desse expressão, adotamos o mesmo procedimento de pesquisa no site do jornal O Globo, cujos resultados foram: i) a expressão reeducação alimentar apareceu 4.558 (quatro mil quinhentos e cinquenta e oito) vezes; ii) de 1920 a 1960, podemos considerar um aparecimento ínfimo; iii) entre as décadas de 1960 e 1980, a expressão apareceu menos de 200 (duzentas) vezes; iv) nos anos 1990, o uso da expressão tornou-se mais frequente, tendo aparecido mais de 600 (seiscentas) vezes; v) o auge no uso de reeducação alimentar, contudo se deu na década de 2000, quando a expressão apareceu em 1.085 (mil e oitenta e cinco) páginas. Veremos, a seguir, enunciados recortados de diversas edições do jornal O Globo, nas quais a expressão foi usada. Os enunciados foram organizados em uma sequência cronológica:

E46: Regime não! Reeducação alimentar sim! (Seção Jornais de Bairro, p. 13, edição de 26 de janeiro de 1995).

E47: Aprenda a comer – mais do que emagrecer, o importante é fazer uma reeducação alimentar. (Seção Jornal da Família, p. 04 da edição de 19 de maio de 1996).

E48: Não se recomendam mais os regimes, que são, na verdade, muito restritivos, fazendo com que as pessoas percam peso, mas o recuperem tão logo retomem seu hábito anterior. Deve-se realizar uma dieta que seja baseada num movimento de reeducação alimentar, para que, aí sim, você emagreça. (Seção Jornais de Bairro, p. 13 da edição de 10 de junho de 2001).

E49: Na opinião do consultor médico dos Vigilantes do Peso, melhor do que proibir a venda de balas e doces é promover a reeducação alimentar para evitar a obesidade. (Seção Rio, p. 11 da edição de 30 de março de 2002).

E50: Reeducação alimentar: tratamento eficaz para a obesidade. (...) Com a reeducação alimentar tomamos conhecimento da importância nutricional dos alimentos para a manutenção da saúde e através dela podemos tratar a obesidade. (...) Com a reeducação alimentar, o paciente adquire hábitos de vida saudáveis e a partir daí consegue também, após o emagrecimento, manter o peso conquistado. (Anúncio da Seção Jornais de Bairro, p. 52 da edição de 28 de abril de 2002; os mesmo ditos repetiram-se também na mesma

seção das edições de 30 de junho de 2002 e 30 de março de 2003, nas páginas, 18 e 06, respectivamente).

E51: É preciso que toda a família participe da reeducação alimentar de forma progressiva. (Seção Jornal da Família, p. 02 da edição de 19 de janeiro de 2003).

Sobre os enunciados da página anterior, de modo geral podemos considerar que o sentido produzido é o da necessidade de o(s) sujeito(s) se reeducar(em) em relação à alimentação que ingeriam diariamente. Podemos dizer que a reeducação alimentar seja o resultado da ampliação das estratégias biopolíticas: à medida que as dietas e regimes promoviam o emagrecimento temporário, o controle da obesidade não se efetivava; por conseguinte, outra técnica mais eficiente deveria ser adotada, sendo a reeducação alimentar a que demonstrava ter mais chances de sucesso para a manutenção do peso do corpo do(s) sujeito(s).

Sendo assim, podemos dizer que é a gestão biopolítica quem mais sustenta a emergência dos ditos sobre a reeducação alimentar, porque essa estratégia de controle da obesidade era a que aparentava corresponder aos objetivos estatais. Não obstante, assim como houve a difusão das dietas, difundiram-se também os ditos sobre como o(s) sujeito(s) poderia(m) se reeducar(em) em relação à alimentação. Para isso, os enunciados organizaram-se atribuindo um valor disfórico para as dietas, mencionando a questão do emagrecimento temporário que elas propiciavam; por outro lado, os mesmo enunciados promoveram o valor eufórico da reeducação alimentar, baseando-se nos ditos de que essa técnica tendia a ser mais duradoura e, assim sendo, mais necessária ao controle da obesidade da população

Observando os enunciados destacados também é possível ponderarmos sobre a produção de subjetividades. A expressão reeducação alimentar sugere que o obeso fosse alguém que não tivesse sido educado em relação à própria alimentação, por isso teria desenvolvido hábitos tão prejudiciais a si mesmo, quanto ao Estado. Por conseguinte, fazia-se prudente que todo sujeito que se reconhecesse como obeso pudesse reeducar-se. Podemos inferir que isso promoveu a ampliação da objetivação sobre o(s) sujeito(s) obeso(s): além de serem doentes, eram também sem educação, logo ao se subjetivar como obeso, o sujeito também subjetiva-se como alguém que precisava aprender a se alimentar de outro modo.

Cabe ponderarmos também sobre os sentidos que a palavra educação possui socialmente: educação pode significar hábitos mais condizentes com a vida em sociedade; educação pode significar também o saber formal, escolarizado, ensinado por aqueles que dominam um saber e vão transmiti-lo aos demais. Observamos que esses sentidos estão presentes quando se faz uso da expressão reeducação alimentar, do seguinte modo: se um sujeito precisa ser reeducado, é porque sua educação anterior falhou; a reeducação alimentar seria um modo desse sujeito inserir-se na sociedade, porque educação pressupõe modos de comportamento mais condizentes com o convívio social; seria também uma forma de esse sujeito adquirir o conhecimento ensinado por outrem que detém o saber, no caso o saber sobre a alimentação.

Nessa acepção, podemos considerar que a expressão reeducação alimentar faz o sentido deslizar da preocupação com a obesidade para a adoção de hábitos sociais mais adequados, sendo que esses últimos passam a corresponder também a hábitos mais saudáveis.

Podemos considerar que, no que tange às relações de saber-poder desenvolvidas a partir do uso da locução reeducação alimentar, muitas vezes o Estado poderá assumir o papel de mentor, como podemos ver em (E52) e (E53)64, abaixo, recortados da página 10, Seção Social, da edição de 05 de março de 2007, do jornal O Globo:

E52: Fundação Banco do Brasil financia, desde 2005, iniciativa de reeducação alimentar para mais de 50 mil crianças, que propõe dieta mais saudável e ajuda na economia familiar.

E53: Mudanças que para a família de Simone Duarte Gonçalves fizeram toda a diferença. Ela teve o primeiro contato com a proposta de reeducação alimentar nas aulas da Pastoral da Criança, no Rio.

E54: O Alimentação Saudável funciona numa lógica de rede, em que um pode passar as ideias adiante, aumentando o alcance da iniciativa.

O enunciado (E52) trata-se do título de uma matéria sobre um projeto social, financiado pela instituição pública Banco do Brasil, voltado para a alimentação sustentável. Ao longo da matéria, podemos constatar que o objetivo do projeto é promover,

dentre outras coisas, impedir o descarte de partes nutritivas dos alimentos, como por exemplo, as sementes da abóbora.

De (E52) e (E53), destacamos a presença dos órgãos políticos, Fundação Banco do Brasil e Pastoral da Criança. Sobre o primeiro, projetos desse tipo, ao produzirem os objetivos esperados, podem promover não somente o desenvolvimento social, como também economia para o Estado, porque ao mesmo tempo em que os atendidos passam a aproveitar melhor seus alimentos, estão ingerindo mais nutrientes, tornam-se mais saudáveis, afastam a obesidade e, sendo assim, tendem a demandar menos recursos estatais para a saúde. Quanto ao segundo [Pastoral da Criança], podemos considerar que o poder da Igreja também está corroborando com o poder estatal, porque ao promover os ideais da reeducação alimentar como o projeto, promove, a longo prazo, a diminuição dos custos do Estado.

No enunciado (E54), apesar de não termos o uso da expressão reeducação alimentar, podemos considerar que o mesmo sentido dela esteja na locução que dá nome ao projeto, Alimentação Saudável. Sendo assim, reeducação alimentar e alimentação saudável equivalem em sentido; na reeducação alimentar, o(s) sujeito(s) aprende(m) a alimentação saudável; aprender a alimentação saudável corresponde a reeducar-se; ou ainda, a participação no projeto (re)educa. De (E54), destacamos também o trecho funciona numa lógica de rede, em que um pode passar as ideias adiante, aumentando o alcance da iniciativa; podemos considerar que o sentido produzido nesse trecho corresponde à estratégia biopolítica, justamente porque o objetivo é atingir o maior número possível de sujeitos.

De um modo geral, podemos dizer que na matéria, a reeducação alimentar não está voltada exclusivamente ao emagrecimento, mas sim ao maior aproveitamento dos alimentos. Ainda assim, em um dos trechos, encontramos o seguinte enunciado:

E55: Eu mesmo sempre fui um gordo incorrigível e, agora, estou em conflito. Um projeto como esse coloca em xeque vários hábitos alimentares.

O (E55) foi dito por Marcos Fadanelli Barros, à época, gerente da Diretoria de Educação da Fundação Banco do Brasil. Podemos dizer que nos ditos do gerente associam- se obesidade e reeducação alimentar, porque o enunciador subjetivou-se como um gordo incorrigível, ou seja, um sujeito que, apesar de todos os ditos sobre a obesidade, ainda não

tinha revisto seus hábitos alimentares, que foram postos em xeque após o projeto. Se o enunciador considerava-se incorrigível e ainda assim dispôs-se a participar da reeducação alimentar, então o sentido produzido é de que a reeducação alimentação corrige os hábitos mais difíceis. Sendo assim, não há desculpas para que o(s) sujeito(s) não passem pelo mesmo. Consequentemente, podemos mencionar que há impactos para a produção de subjetividades, ou que ao(s) sujeito(s) não são oferecidas outras possibilidades, a não ser a de se reeducar(em)-se.

Devemos dizer ainda que as regularidades enunciativas compostas pela expressão reeducação alimentar, bem como as produzidas a partir dela, podem sim ter sido impulsionadas por políticas públicas, por exemplo a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional65. Essa conferência aconteceu pela primeira vez em 1995.

A I Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional reuniu cerca de dois mil delegados representantes de Estados e Municípios de todo país, convidados e observados durante os dias de 28 a 30 de julho, em Brasília. A conferência sintetiza, no relatório com suas conclusões, os pensamentos, ideias e propostas de todos aqueles que estão unidos em torno de um projeto para mudar a face de um país, acabar com a fome e transformar cidadãos excluídos em membros efetivos de uma sociedade ética, justa e humana, onde todos têm direito ao trabalho, moradia, alimento, saúde, educação e bem-estar (CONSELHO NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR, 1995, p. 09). Podemos considerar que em sua primeira edição, a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional objetivava vencer a fome, suprindo a carência alimentar dos que não tinham acesso à alimentação. Já no texto da segunda edição da Conferência, podemos dizer que há indícios de uma preocupação com o aumento de peso da população em geral, conforme podemos ver no trecho a seguir, destacado do texto do relatório final da segunda edição, em 2004:

A Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) faz parte de um conjunto de ações da Política Nacional de Alimentação e Nutrição que contribuem para a promoção de modos de vida saudáveis, proporcionando condições para que as pessoas possam exercer maior controle sobre sua saúde. Essas ações são fundamentais nas diferentes fases do curso da vida (..) O Sisvan tem o objetivo de fazer o diagnóstico descritivo e analítico da situação alimentar e nutricional da população brasileira. Este monitoramento contribui para o conhecimento da natureza e magnitude dos problemas de nutrição, identificando, inclusive, áreas geográficas, segmentos sociais e grupos populacionais acometidos de maior risco aos agravos nutricionais. Objetiva também acompanhar de maneira contínua as tendências das condições nutricionais, visando ao planejamento e à avaliação de políticas, programas e

65 O texto produzido pela I Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, 1995, pode ser lido

em: < http://www4.planalto.gov.br/consea/eventos/conferencias/arquivos-de-conferencias/1a-conferencia- nacional-de-seguranca-alimentar-e-nutricional/1-conferencia-completa-ilovepdf-compressed.pdf>. Acesso em 10 de out. 2017.

intervenções (CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL, 2004 apud BRASIL, 2006).

Do trecho acima, inicialmente, gostaríamos de destacar a posição assumida pelo enunciador: alguém que detém o saber sobre alimentação e saúde e que fala em nome de um órgão governamental, portanto seus ditos podem funcionar como ordem, ou leis, a serem seguidas por todos. Ao dizer, promoção de modos de vida saudáveis, proporcionando condições para que as pessoas possam exercer maior controle sobre sua saúde, o enunciador pode produzir o sentido de que a saúde de um sujeito depende, essencialmente, de seu modo de vida. Assim, podemos considerar que no jogo do saber- poder, o Estado esteja pressionando o(s) sujeito(s) para que esse(s) assuma(m) a responsabilidade sobre sua saúde, isso porque o controle sobre sua saúde está nas mãos de cada pessoa, mas o controle das pessoas está nas mãos do governo que objetiva também acompanhar de maneira contínua as tendências das condições nutricionais, visando ao planejamento e à avaliação de políticas, programas e intervenções.

Em relação ao trecho avaliação de políticas e programas, podemos considerar que o projeto financiado pela Fundação Banco do Brasil, cujos enunciados foram analisados anteriormente, tenha sido um dos programas desenvolvidos a partir da II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, bem como deve haver muitos outros dos quais não temos conhecimento suficiente para expor. Contudo, podemos nos perguntar sobre quais seriam as intervenções governamentais necessárias para que o(s) sujeito(s) pudessem exercer maior controle sobre sua saúde, já que pouco adianta o(s) sujeito(s) desejar(em) assumir esse controle, mas viver(em) em ambientes insalubres, precários em saneamento básico, fadados a comer(em) os alimentos mais baratos que tendem a ser os mais gordurosos e prejudiciais à saúde? Apesar disso, o enunciador do texto da conferência centraliza a responsabilidade pela saúde apenas no(s) sujeito(s).

Para finalizarmos esta seção, devemos ponderar sobre a configuração do dispositivo de controle do corpo, seu peso e suas medidas. Podemos considerar que no interior desse dispositivo, os ditos da reeducação alimentar, imbricaram-se aos demais, de forma que houve uma mudança na concepção da necessidade do controle do peso: antes, a vigilância do peso pautava-se na busca pela beleza estética, ou mesmo por uma aparência física mais agradável socialmente; a partir dos anos 2000, contudo, a vigilância passou a pautar-se na busca por uma vida mais saudável. Essa concepção sustentou a emergência da expressão reeducação alimentar na ordem do discurso.

4.3 PERCEPÇÃO DA ANORMALIDADE, SILHUETA E PREENCHIMENTO