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3. O TERCEIRO SETOR

3.2. O Terceiro Setor e o Estado: um paradoxo sob análise

3.2.1. Análise do período Fernando Henrique Cardoso

O sociólogo e ex-ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso (FHC) assume a Presidência da República em 1995 com base num plano de governo mais aberto às relações com o setor privado. Diferentemente de Fernando Collor de Mello, o novo governo não exacerba, inicialmente, uma política de desmonte da burocracia estatal (ALMEIDA, 2006).

Segundo a pesquisadora Carla Cecília Rodrigues Almeida (2006), o governo FHC tenta compartilhar as obrigações do Estado com as organizações privadas, sejam oriundas do Segundo ou do Terceiro Setor:

A ênfase no Estado mínimo deu lugar, cada vez mais, à ênfase – sobretudo discursiva - nas parcerias entre o setor público e o privado, com ou sem fins lucrativos, como estratégias de enfrentamento dos problemas sociais. Tal deslocamento, como já foi afirmado, não indicava a reversão dos fundamentos que haviam orientado a primeira onda de reformas, mas

traduzia, ao contrário, o “novo consenso” formulado para garantir suas

condições de operacionalização desde os desafios que se colocavam para a sustentabilidade das políticas de ajuste. Nesse contexto, a transferência de responsabilidades sociais para a sociedade civil e para o mercado foi apresentada como referência de uma nova proposta de desenvolvimento e a ideia de governance passou ser recorrentemente utilizada, principalmente pelo Banco Mundial, para expressar os desafios implicados com tal proposta (ALMEIDA, 2006, p. 48-49).

Após os primeiros anos de governo, a privatização dos serviços de telefonia, mineração e eletricidade foram consolidando impressões de uma política marcada pela

ideologia liberal. Cientistas políticos, como João José de Oliveira Negrão (1996), defendem que o processo de privatização esteve alinhado às determinações do Consenso

de Washington, um acordo dos países “desenvolvidos” para auxiliar a economia de países “em desenvolvimento” na América Latina. Segundo Negrão, o Consenso de

Washington se pautou pelos seguintes pontos:

1) disciplina fiscal, através da qual o Estado deve limitar seus gastos à arrecadação, eliminando o déficit público; 2) focalização dos gastos públicos em educação, saúde e infraestrutura; 3) reforma tributária que amplie a base sobre a qual incide a carga tributária, com maior peso nos impostos indiretos e menor progressividade nos impostos diretos; 4) liberalização financeira, com o fim de restrições que impeçam as instituições financeiras internacionais de atuar em igualdade com as nacionais e o afastamento do Estado do setor; 5) taxa de câmbio competitiva; 6) liberalização do comércio exterior, com redução de alíquotas de importação e estímulos à exportação, visando impulsionar a globalização da economia; 7) eliminação de restrições ao capital externo, permitindo investimento direto estrangeiro; 8) privatização, com a venda de empresas estatais; 9) desregulação, com redução da legislação de controle do processo econômico e das relações trabalhistas; e 10) propriedade intelectual (NEGRÃO, 1996, p. 4).

A política de privatização foi vista negativamente pela oposição partidária. A aproximação com o Terceiro Setor, neste caso, também foi interpretada como estratégia neoliberal do governo FHC. Por esta razão, a nova proposta recebeu críticas, como visto na seguinte matéria do jornal Folha de São Paulo:

Se o presidente Fernando Henrique Cardoso prestou um desserviço ao Brasil, não foi só na política econômica. Foi também no desmonte do Estado, privilegiando ações com ONGs e OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público). Estamos reconstruindo o Estado brasileiro. Queremos parcerias com empresários e ONGs, mas estamos determinados a recolocar o Estado em seu lugar (ALMEIDA, 2006, p. 174).

Para avaliar o crescimento do Terceiro Setor no governo de FHC, foram analisados três estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), denominados “As fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil”, datados de 2002, 2005 e 2010.

Ao avaliar o histórico de criação de novas entidades do Terceiro Setor até 2002, pode-se constatar que a década de 1990 representou o ápice do movimento.

Período Número de entidades sem fins

lucrativos fundadas Percentual

Até 1970 10.939 4% De 1971 a 1980 33.408 12% De 1981 a 1990 64.388 22% De 1991 a 2000 140.261 49% De 2001 a 2002 38.007 13% Total 287.003 100%

Tabela 1: Número de entidades sem fins lucrativos até 2002

Fonte: Adaptado de IBGE, 2008.

Com relação a esses dados, o estudo do IBGE (2008) afirma que a década de 1990 foi relevante para o crescimento dessas entidades:

A idade média das FASFIL [Fundações e Associações Sem Fins Lucrativos], em 2005, era de 12,3 anos, sendo que a maior parte delas (41,5%) foi criada na década de 1990 (...). Entre os diversos fatores que contribuíram, naquele momento, para o crescimento acelerado dessas entidades se destaca o fortalecimento da democracia e da participação da sociedade civil na vida nacional. A análise realizada mais adiante, do tipo de organizações instituídas no período, reforça esta interpretação. De acordo com as informações (...), percebe-se que do total de entidades criadas a partir dos anos 1990, 41,5% são voltadas para a promoção do desenvolvimento e defesa de direitos e interesses dos cidadãos, incluindo nesta categoria o grupo das Associações patronais e profissionais (IBGE, 2008,p. 25).

Como visto, essa interpretação condiz com a análise de Carla Cecília Rodrigues Almeida (2006), que constata a aproximação do governo liberal em relação ao Terceiro Setor, principalmente nas organizações pautadas pela defesa e promoção dos direitos humanos.

No cenário político internacional, o governo FHC é influenciado por um movimento de renovação da política social-democrata. Inicialmente concebida por

Anthony Giddens, a “Terceira Via” aproxima a política de Estado de uma nova

concepção pós-guerra fria. O intuito é combinar elementos da social-democracia tradicional com elementos da corrente neoliberal, possibilitando a reconfiguração de

uma sociedade “global e democratizante”. Para Giddens (1999), além do Estado, a

Sociedade Civil também deve protagonizar o processo de renovação e desenvolvimento: “O governo pode agir em parceria com instituições da sociedade civil para fomentar a

renovação e o desenvolvimento da comunidade. A base econômica de tal parceria é o que chamarei de a nova economia mista” (GIDDENS, 1999, p. 79).

A partir dessa interpretação, o Terceiro Setor seria fortalecido para possibilitar a promoção do bem-estar por meio de serviços concedidos ao Estado (GIDDENS, 1999). Porém, a decisão para prestação de serviços não ficaria somente a cargo do

governo. Giddens sugere que a construção da “sociedade de welfare” obedeça a fluxos

de cima para baixo (do governo para o Terceiro Setor) e de baixo para cima (do Terceiro Setor para o governo). A confluência dos programas corresponde a uma integração com as demandas da sociedade civil, que neste caso são reconhecidas como pertencentes ao Terceiro Setor.

A renovação da política social-democrata influenciou o governo FHC para a criação do Programa Comunidade Solidária, em 1995. Administrado pela antropóloga Ruth Cardoso, o programa delineou a estratégia de fortalecimento do Terceiro Setor junto à sociedade civil (ALMEIDA, 2006).

De certo modo, pode-se afirmar que a criação desse programa tinha uma proposta neoliberal, pois instituía políticas de governo para entidades privadas. Porém, observa-se que a proliferação de entidades sem fins lucrativos em torno da máquina estatal poderia representar um movimento estratégico para integrar as questões sociais no mercado e na sociedade civil.

No Brasil, a aplicação das reformas orientadas para o mercado teve início exatamente no momento em que (...) as preocupações dessa agenda recaíram na necessidade de formular as condições que garantissem a sustentabilidade das políticas de ajuste e o controle dos níveis de pobreza. Em sintonia com essas preocupações, e com as respostas que foram a elas dirigidas, o governo de FHC, desde o início do seu primeiro mandato, investiu esforços para mobilizar segmentos da sociedade civil em torno do discurso participativo solidário, criando as condições para que, no país, seus princípios constitutivos fundamentassem as parcerias entre Estado, mercado e sociedade civil na promoção de programas e ações de combate à pobreza. Como indicativo, em vários dos seus discursos, partindo de uma visão tripartite do mundo, FHC manifestou o interesse que seu governo nutria de criar as formas e os instrumentos que potencializassem as novas energias movidas pela generosidade e solidariedade oriundas da sociedade civil (ALMEIDA, 2006,p.75).

A “visão tripartite do mundo” não exclui o governo. Em vez disso, ela

equaciona as políticas públicas às esferas privadas, aumentando a discussão social em torno de problemas globais (pobreza, infraestrutura, saneamento, energia, etc.). A elevação do Terceiro Setor, por meio do Comunidade Solidária, manifesta o interesse do

governo em consolidar um plano de fortalecimento das organizações sem fins lucrativos. Além disso, o Comunidade Solidária pode ser entendido como um movimento baseado numa tendência política internacional.

[O] Comunidade Solidária expressou uma das materializações daquela estratégia [de integrar a sociedade civil aos programas de governo]. Vários autores apontam que essa iniciativa integrou a mesma geração dos chamados programas de combate à pobreza surgidos nas últimas décadas em países que implementaram as políticas de ajuste estrutural. Sua forma, conteúdo e procedimentos traduziram muito das orientações dos organismos internacionais para os países que adotaram tais políticas, que o saudaram como um programa que revolucionava o papel do setor público e da sociedade civil no combate à pobreza. Exemplos dessas mesmas orientações, guardadas suas especificidades, foram o PRONASOL (Programa Nacional de Solidariedad), no México, (...) o FOSIS (Fondo de Solidariedad e Inversión Nacional), no Chile, e a Red de Solidariedad, na Colômbia (ALMEIDA, 2006,p. 77-78).

Ao consolidar o Comunidade Solidária, o presidente Fernando Henrique Cardoso seguia o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que estabelece as seguintes diretrizes: a) reestruturação do núcleo estratégico e melhoria de gestão; b) organizações sociais; e c) agências executivas (MARTINS, 2007). Como descreve o pesquisador Humberto Falcão Martins (2007), as organizações sociais seriam fatores importantes para a prestação de serviços públicos em cogestão com o Estado:

Para o conjunto das atividades não exclusivas, aquelas destinadas à implementação de políticas públicas que envolvem prestação de serviços de relevância pública em áreas de saúde, educação, cultura, meio ambiente, etc. e que não demandam poder específico do Estado, embora muitas se constituam obrigação do Estado fomentá-las, o Plano Diretor propunha seu modelo institucional mais inovador: as organizações sociais. Trata-se de uma qualificação que entidades privadas (associações ou fundações) podem receber para desempenhar atividades de relevância pública mediante contrato de gestão firmado com o Poder Público, quer estas tenham sido absorvidas do Estado (...) ou não (MARTINS, 2007,p.18).

Enfim, constata-se que o fortalecimento do Terceiro Setor, durante o período FHC, não foi um acaso. Há posições que defendem a influência do projeto neoliberal tendo em vista a desapropriação estatal no plano social. No entanto, sob outra ótica, o crescimento das organizações sem fins lucrativos pode ter sido motivado por um planejamento que fortaleceria a relação entre a sociedade civil e o governo.

Num período em que a recente democracia brasileira ainda “engatinhava”, a

aproximação com a sociedade tornou-se um antídoto contra ameaças do despotismo, presente devido às lembranças do governo militar. Neste sentido, o crescimento do

Terceiro Setor possibilitou, ainda que de forma homeopática, o amadurecimento da experiência republicana brasileira.