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4. AS TECNOLOGIAS SOCIAIS E O TERCEIRO SETOR

4.2. O Terceiro Setor e a tecnologia social

4.2.1. O fomento das tecnologias sociais

4.2.1.1. Comunidades específicas

As comunidades específicas são territórios reconhecidamente integrados que compartilham elementos culturais, políticos, econômicos e ambientais. Podem ser bairros, cidades, favelas, colônias de pescadores, conjuntos habitacionais, etc. Não há uma regra enfática que define o limite das comunidades. Na prática, a dimensão da comunidade é atribuída conforme a natureza do projeto e o grau de influência das ações. Caso, por exemplo, seja formatado um projeto de educação socioambiental, a comunidade pode ser dimensionada em relação ao microbioma do território, envolvendo bairros ou cidades. Em outro caso, se o projeto é relacionado a redução de homicídios numa favela, a comunidade é dimensionada sobre a população que convive com o mesmo problema.

A comunidade específica aproxima-se do conceito de Favareto (2010) em relação à territorialidade:

[...] espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, compreendendo a cidade e o campo, caracterizado por critérios multidimensionais – tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições – e uma população com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial. (FAVARETO, 2010, p.89).

i. Elementos da realidade social

Entendem-se como elementos da realidade social os fatores sociológicos, históricos, culturais, simbólicos que constituem uma determinada comunidade específica. A formação de tecnologias sociais é coerente às realidades sociais vivenciadas pela população (ITS, 2007). Como afirma Raquel Folmer Corrêa:

“[elaborar tecnologias sociais] significa considerar que a ciência e a tecnologia não são

neutras, pois carregam os valores e interesses predominantes no ambiente no qual foram

desenvolvidas” (CORRÊA, 2010, p. 69). Portanto, ao reconhecer os elementos sociais

da comunidade, o Terceiro Setor enriquece sua visão de mundo para adquirir conhecimentos e promover articulações. Além disso, o conteúdo histórico fornece dados importantes para salientar forças, fraquezas, oportunidades e riscos. Se, por exemplo, uma comunidade possui um histórico de tradições culturais, talvez esse elemento seja útil para consolidação de diálogos na fase de implantação dos projetos.

ii. Meio Ambiente

As comunidades específicas são dotadas de elementos naturais que carecem de preservação ambiental e políticas de sustentabilidade no âmbito ecológico. Com esse intuito, as tecnologias sociais são desenvolvidas respeitando o uso racional dos recursos naturais.

O Ser humano precisa dos recursos que encontra no meio ambiente, por isso mesmo deve utilizá-los de maneira não-predatória. Mas o planeta Terra deixa de ser visto como um simples fornecedor de insumos para ser considerado como a nossa morada, com a qual devemos estar integrados. Daí a importância de se buscarem fontes de matéria-prima e de energia renováveis, de se estabelecerem novos padrões de consumo e de se ter um cuidado especial com os resíduos desde a produção até o consumo ou utilização das tecnologias (ITS, 2007, p. 32).

Neste caso, o meio ambiente não é visto como elemento-limitador. Os recursos naturais devem ser vistos como oportunidades para o desenvolvimento de ideias transformadoras, buscando integrar conscientemente a população ao meio ambiente. A questão da sustentabilidade é relacionada às características do serviço social. Se, por exemplo, um projeto é localizado numa comunidade de pescadores, certamente o ecossistema será abordado com ênfase. Por outro lado, se um projeto visa proteger testemunhas sob a ameaça de morte em cidades, a questão do meio ambiente diminui sua influência sobre o projeto.

O ambiente natural é um horizonte de diversas informações, sendo um meio de formação social, histórico, econômico e político. No Brasil, não é desprezível o aumento da preocupação socioambiental desde a década de 1980 (JACOBI, 2003). Nesse cenário, os grupos dedicados ao tema ganharam visibilidade, defendendo o ideal de desenvolvimento sustentável.

Já desde o início dos anos 80 surgem inúmeros grupos ambientalistas, mas a sua contabilização é muito difícil, na medida em que muitos têm vida efêmera. O seu crescimento ao longo da década é muito expressivo. Muitas das associações adquirem visibilidade pela atuação de um núcleo ativo composto por um número restrito de integrantes, sendo que em geral existem catalizadores da ação institucional em virtude de visibilidade pública, autoridade nas decisões do grupo, acesso aos meios de comunicação e acesso às agências estatais. O ambientalismo se expande, e penetra em outras áreas e dinâmicas organizacionais estimulando o engajamento de grupos socioambientais, científicos, movimentos sociais e empresariais, nos quais o discurso do desenvolvimento sustentado assume papel de preponderância (JACOBI, 2003, p. 10).

iii. Política

A esfera política nas comunidades não é restrita ao círculo da institucionalidade governamental. A política, nesse sentido, é ampliada para concepção defendida pelo historiador Pierre Rosanvallon, no qual afirma que a política institucional, pautada no multipartidarismo, é oriundo do mundo político social (ROSANVALLON, 2010). Portanto, as questões relativas à dimensão política possuem abrangência no cotidiano discursivo de populações e comunidades específicas.

Ao entender essa fundamentação, o Terceiro Setor deve decodificar a linguagem política e legitimar suas ações diante do quadro social. Em comunidades que possuem fortes tradições políticas, o Terceiro Setor deve analisar o contexto sociopolítico em função da proposta de intervenção das tecnologias sociais. Caso esse elemento seja ignorado, corre-se o risco da ação ser deslegitimada ou descredenciada pelos atores locais.

Outro risco iminente, caso a dimensão política seja tratada unilateralmente, é o estímulo à alienação e ao afastamento do protagonismo deliberativo da comunidade. O despreparo político na formação de tecnologias sociais pode ocasionar um desvio não intencional dos próprios comunitários. Assim, a cidadania, ao invés de ser fortalecida, é gradualmente mitigada para uma função de receptividade social, tornando a noção de cidadania mais restrita.

Só o cidadão sabe o que quer para si, para sua família e para sua comunidade. É ele que deve decidir sobre suas prioridades e, portanto, sobre a maneira como devem ser conduzidos os negócios da nação para permitir que elas se

realizem. Quando dizemos “cidadão”, é evidente que queremos nos referir ao

produto da interação entre os cidadãos da mesma comunidade, através do diálogo, do convencimento e de decisões conscientes que, mesmo erradas, podem ser corrigidas livremente no tempo (DE ANDRADE, 2005, p. 77).

Além da política difundida no cotidiano das comunidades específicas, o sistema político também é matéria de interpretação e pesquisa. Com a formação de parcerias público-privadas, os projetos tornam-se sustentáveis a médio prazo e podem se tornar pautas de políticas públicas. Assim, Marcos Kisil (2005) aponta algumas opções de parceria entre o terceiro setor e os governos locais:

Figura 3: Relações possíveis entre Governo e o Terceiro Setor

Fonte: Adaptado pelo autor (KISIL, 2005, p. 144)

O gráfico aponta duas áreas que o Terceiro Setor possui relação direta com a esfera governamental – por meio de ações de advocacy (geralmente representados pela defesa de direitos humanos e minorias) e serviços sociais em parceria com políticas públicas estatais. A parceria para a prestação de serviços é geralmente instituída pelo poder público. Nas ações de advocacy, o fluxo é invertido e o Terceiro Setor se torna o sujeito originário da demanda. Além dessas duas possibilidades, Kisil pontua as ações de assistência técnica:

Também é importante notar que as organizações que fazem um papel consultivo através da provisão de informações ou assessoria técnica, têm um nível diferente de independência, mantendo alguma distância do governo, e interagindo através de outras ONGs que recebem sua influência (KISIL, 2005, p. 143).

Enfim, a dimensão política na estrutura das tecnologias sociais é baseada na ampliação do desenvolvimento social, seja através do fortalecimento da cidadania ou através da participação ativa como poder público. O reconhecimento dessa dimensão proporciona uma mudança de percepção, na qual a política é admitida como um elemento constituído por atores que vão além do Estado instituído.

O mito de que o desenvolvimento de base comunitária deve ser sustentado através de esforços locais deveria ser substituído por um entendimento mais holístico do que é desenvolvimento sustentável, e os diferentes papéis que

deveriam ser feitos pelos participantes nos níveis diferentes da organização sócio-política de qualquer sociedade (KISIL, 2005, p. 154).

iv. Economia

O último elemento do grupo Comunidades Específicas está associado às condições socioeconômicas da região. Da mesma forma que a esfera política, a economia não é entendida de forma tecnicamente restrita. Especificamente para as tecnologias sociais, o conteúdo técnico da macroeconomia política, baseado na oferta de trabalho, juros, câmbio, inflação e outros componentes é relativamente menos importante do que a análise regional dos fatores de produção e consumo.

Outro aspecto que deve ser ressaltado é a insuficiência do mercado como promotor totalitário do bem-estar social (FERNANDES, 2005). Isso não significa que as empresas impedem ou reduzem o bem-estar social – ao invés disso, o mercado é um importante regulador de bens e serviços, porém sua capacidade produtiva não é proposta para fins públicos. Paradoxalmente, a racionalidade mercadológica, oriunda do sistema capitalista, impede que a formação da equidade socioeconômica. Sob esse horizonte, o Terceiro Setor ganha uma fundamentação conceitual devido ao contraponto, mas não necessariamente contrária, às ações de mercado.

Nesse sentido, o Terceiro Setor é co-extensivo com o mercado. O dinheiro circula por todos os cantos, e não há investimento do qual não se possa indagar sobre as consequências maiores. Mas o inverso também é verdadeiro. Não há interesse coletivo que, aprendido como uma demanda efetiva, não possa, em princípio, tornar-se objeto de investimentos lucrativos. Educação, saúde, ciência e tecnologia, meio ambiente, cultura, esporte, comunicação, geração de renda, trabalho, etc. são, evidentemente, fontes de prósperos negócios. A presença de um Terceiro Setor sinaliza, contudo, que o mercado não satisfaz a totalidade das necessidades e dos interesses efetivamente manifestos, em meio aos quais se movimenta. O mercado gera demandas que não consegue satisfazer, lança mão de recursos humanos, simbólicos e ambientais que não consegue repor. Uma parte substancial das condições que viabilizam o mercado precisa ser atendida por investimentos sem fins lucrativos. Ao Estado, com certeza, mas também à própria iniciativa particular cabe zelar para que esses investimentos sejam efetivamente feitos (FERNANDES, 2005, p. 30).

Ao observar e colher informações dos fatores econômicos, as organizações do Terceiro Setor devem discernir pontos em que o mercado e o Estado se revelam deficitários (FERNANDES, 2005). Por exemplo, caso haja dificuldades de geração de renda numa comunidade, organizações do Terceiro Setor podem estimular cursos profissionalizantes, técnicas de empreendedorismo, ofertas de microcrédito solidário e outros mecanismos de fomento econômico.

Para a formação de tecnologias sociais, a dimensão econômica não é interpretada como um elemento factual e impessoal. Em programas de microcrédito solidário, por exemplo, a proximidade com o cliente-beneficiário é notoriamente o recurso mais importante para confiabilidade na prestação do serviço.

O que impede o acesso do pequeno empreendedor ao crédito não é a falta de subsídio, mas sim a exigência excessiva de garantias. Tanto que a aplicação de taxas acima das do mercado e a cobrança de custos operacionais das instituições executoras não inibem a demanda nem aumentam o índice de inadimplência, o qual se apresenta sempre extremamente baixo neste tipo de programa. (...) Um dos motivos de sucesso deste tipo de programas está

relacionado à descoberta dos valores de cada cultura. O “nome limpo na praça” e a possibilidade de receber novos financiamentos são as principais

razões para que os beneficiários honrem o pagamento dos empréstimos.

Outro motivo é a proximidade que os “Agentes de Crédito” mantêm de seus “clientes”, deslocando-se aos locais de produção, visitando e acompanhando-

os sempre, mantendo com eles um relacionamento estreito. Assim, o banco vai até seus clientes e não o contrário, como é comum. A melhoria da capacidade de gestão do empreendimento, viabilizada pelos treinamentos oferecidos à clientela, também pode ser considerada razão de êxito (TANNURI, 2000, p. 67).

Historicamente, a economia tem sido utilizada para analisar, até certo ponto, a organização produtiva e a relação de consumo e distribuição em diferentes escalas (DE FRANCO, 2002). No entanto, essa análise tem sido objeto de deliberações técnicas,

top-down, no qual especialistas decretam qual são as soluções para combater o

desemprego, a miséria, a falta de alimentos, escassez de recursos e outras moléstias. Porém, a visão tecnicista, apesar do alto grau de qualificação, não considera a integralidade da diversificação sociológica, ignorando outras formas de ação, seja a ambiental, a cultural ou a político-institucional.

A questão central não está na estrutura e no funcionamento da economia, mas na morfologia e na dinâmica da sociedade. A economia é uma das regulações emanadas da sociedade que diz a respeito às relações que os humanos estabelecem entre si em função dos recursos, sobretudo às relações entre abundância e escassez. Todavia, existem outras regulações sociais que não derivam da economia, como, para criar um exemplo óbvio, as regulações políticas democráticas. (...) De todo modo, os novos argumentos devem ser construídos com duas premissas que contrariam a visão econômica

tradicional, a saber: “modo de desenvolvimento” não é igual a “modo de produção”; e, é a sociedade que condiciona o comportamento da economia e

não o contrário (DE FRANCO, 2002, p . 89).

Para o Terceiro Setor, a economia das comunidades específicas representa um campo extenso de informações. Porém, o método para analisar e utilizar essas informações não é meramente advindo do tradicionalismo econômico. Para fomentar

tecnologias sociais, a economia torna-se mais uma ferramenta, incorporando-a ativamente aos outros elementos que possibilitam o desenvolvimento local.