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Análise dos dados: abordagem interpretativa reconstrutiva

A abordagem proposta para análise dos dados é a interpretativa reconstrutiva, apoiada no referencial teórico da hermenêutica dialética, segundo a concepção teórico-filosófica de Jürgen Habermas.

Segundo Habermas (1987), a hermenêutica dialética não se constitui em uma metodologia específica e um método particular com técnicas determinadas de investigação científica e de tratamento de dados. Essa abordagem filosófica, entretanto, em sua opinião, dispõe de processo que envolve autocompreensão daquilo que se quer apreender interpretativamente da realidade e, nesse sentido, apresenta um caminho para o pensamento.

Habermas é um dos filósofos contemporâneos que iniciou sua produção intelectual ligado aos autores da Escola de Frankfurt e, a partir da década de 70 do século XX, passou a criticar o conceito de razão decorrente do paradigma da consciência para orientar-se segundo proposições da guinada linguística da filosofia, a qual retira a autoconsciência do sujeito do seu lugar de condição da racionalidade para delegar à linguagem o instrumento de racionalidade, pelo qual se pode ter acesso aos conteúdos do pensamento e à dimensão intersubjetiva da produção dos conhecimentos e das ações humanas (ARAGÃO, 2002).

É por isso que Minayo (1992) descreve a aplicação da hermenêutica dialética enquanto possibilidade de interpretação da realidade como averiguação de sentido por meio de análise lingüística ou temática “na qual importa, mais que a expressão verbal, a compreensão simbólica de uma realidade a ser penetrada” (p.220). Entretanto, distingue-se da análise do discurso e da lingüística, pois para esta última o principal objetivo é a demonstração de um sistema de regras de uma linguagem natural, sendo que para a hermenêutica a linguagem tem importância central por ser o instrumento que traduz as experiências fundamentais de seres falantes, comunicativamente competentes cuja racionalidade manifesta-se na busca pelo entendimento mútuo para orientar suas ações.

De acordo com Aragão (2002), Habermas, por substituir a consciência enquanto critério de racionalidade, elabora uma ciência reconstrutiva, a qual, ao ligar-se à tradição hermenêutica, propõe uma distinção entre explicar e compreender. Enquanto a explicação dos

fenômenos permanece refém dos eventos ou estados observáveis e delineados pela experiência sensorial e perceptiva, a compreensão está direcionada para o sentido dos proferimentos. Da mesma forma, enquanto a explicação constitui método de experiência individual de um sujeito solitário que se ocupa em descrever a realidade para um outro, a compreensão se revela como atividade intersubjetiva, comunicativa, cujo sistema conceitual é partilhado e construído pela comunidade que busca o entendimento sobre algo no mundo.

A dimensão de uma ciência reconstrutiva revela-se na condição de que a apreensão de sentido de um texto, discurso ou ação não ocorre por meio do conhecimento explícito expressado pelos proferimentos internos ao texto ou discurso, mas trata-se de buscar descobrir reconstrutivamente as estruturas que geraram e permanecem subjacentes à produção das formações simbólicas.

Sendo assim, Minayo (1992) sintetiza alguns pressupostos básicos de uma possível metodologia fundamentada na abordagem hermenêutica do conhecimento. Nesse sentido, o intérprete deve tomar “a sério” o ator social que é o autor do texto ou discurso, que será interpretado. Esse “a sério” significa que o outro dispõe de uma dialogicidade frente ao intérprete, não é apenas um objeto a ser desvendado ou explicado, mas está em uma condição de diálogo com aquele que pretende compreender algo. Assim como, o pesquisador só pode compreender o conteúdo significativo de algo quando está em condições de tornar presentes, reconstrutivamente, as razões e as condições que subjazem a produção daquele autor, ou seja, o intérprete coloca-se na posição do outro trazendo as condições históricas que possibilitaram àquele autor produzir determinado texto, discurso ou ação. Portanto, as condições da intersubjetividade e historicidade permeiam todo o percurso interpretativo da construção do conhecimento por meio da hermenêutica.

O caminho da tarefa interpretativa, portanto, visa diferenciar a compreensão do contexto da comunicação, do contexto da produção das condições do conteúdo da comunicação e do contexto do pesquisador. Outra tarefa é trazer o sentido que o texto ou discurso permite a partir do mundo da vida do autor, de sua cotidianidade, do universo compartilhado com seus contemporâneos e interlocutores que concordam ou discordam sobre algo no mundo objetivo, no mundo social e no mundo de intersubjetividades. Isto é, o intérprete busca entender porque o autor pesquisado apresenta aquele conteúdo de uma determinada forma e não de outra.

Para tanto, entrevistas foram realizadas com os profissionais dos dois serviços extra- hospitalares do município de Ribeirão Preto e, portanto, nossa tarefa interpretativa iniciou-se na busca pela compreensão das construções discursivas e do contexto histórico que as

possibilitaram e levaram os autores a produzirem determinados discursos referentes às suas práticas.

A análise dos dados, com base nas entrevistas realizadas, seguiu o seguinte roteiro respeitando o referencial teórico exposto:

• Ordenação dos dados: realizamos um processo de leitura e releitura das entrevistas transcritas e elaboramos uma disposição de um início de classificação com a identificação de pontos em comum, tais como temas, assuntos e abordagens ou relações que são compartilhados pelos vários discursos.

• Identificamos temas emergentes que delinearam um certo universo compartilhado entre os profissionais dos serviços pesquisados.

• Discutimos esses temas nos grupos focais com os profissionais de cada serviço de forma a identificar consensos, dissensos e novas disposições discursivas emergentes da discussão dos temas.

A seguir iniciamos o processo interpretativo, operacionalizado da seguinte forma:

• Estabelecemos relações com o campo das determinações fundamentais, as quais já foram preliminarmente abordados nas fases exploratórias do tema pesquisado e que são marco teórico fundamental da análise, envolvendo a compreensão de como se inserem e se inscrevem tais disposições discursivas no contexto sociohistórico e conjuntural, cultural e político geral cujo grupo social, autores dos discursos analisados, estão inseridos. Nesse caso o grupo social compreende os profissionais dos serviços extra-hospitalares de saúde mental, diretamente ligados à assistência ao usuário. Já o marco sociohistórico considerado demarca o surgimento desses serviços no contexto histórico político que em determinado momento e sob determinadas razões passa a demandar a criação de serviços de atenção psiquiátrica de caráter comunitário e não hospitalar ou asilar.

• Estabelecemos relações dos discursos referentes às ações com a constituição histórica desse grupo social nos serviços pesquisados. Como e de que forma os entrevistados construíram e organizaram os serviços e os projetos terapêuticos disponibilizados. A qual contexto sociohistórico e político-cultural corresponde à determinada forma de organização.

• Relacionamos a essa disposição organizativa e aos discursos referentes às atuações terapêuticas a inserção de ações de reabilitação psicossocial nos projetos terapêuticos dos serviços.

• Interpretamos as concepções que os profissionais elaboram e compartilham sobre a reabilitação psicossocial relacionando-as às análises da forma organizativa dos serviços e dos projetos terapêuticos e as razões pelas quais determinados fatores (históricos, contextuais e intersubjetivos) operam na base das opções terapêuticas desenvolvidas pelos projetos terapêuticos.

A análise das entrevistas revelou alguns temas emergentes que tendem a se configurar como discursos consensuais e que foram agrupados em determinados conjuntos temáticos tendo como base os objetivos específicos que são investigar a forma de organização dos serviços, conhecer a forma de elaboração dos projetos terapêuticos pelas equipes, interpretar as concepções dos profissionais sobre reabilitação psicossocial e identificar a inserção de ações de reabilitação nos projetos terapêuticos.

Assim, elaboramos uma organização da discussão desses temas sob os seguintes conjuntos temáticos, os quais nos permitiram uma abrangência suficiente para abordar as questões emergenciais das falas das entrevistas de forma elucidativa: organização do trabalho, dos serviços e reabilitação psicossocial. No conjunto temático organização do trabalho, enfocaremos o assunto sob as perspectivas da tecnificação do trabalho em saúde, do trabalho centrado na tecnologia médico-clínica e da precarização do trabalho nos serviços. No grupo que focaliza a organização dos serviços, visualizaremos as questões organizadas sob ótica referente aos projetos terapêuticos, organização das equipes e as ações terapêuticas. E, por fim, o bloco temático, no qual traremos a discussão sobre a reabilitação psicossocial e apresentaremos as concepções reveladas pelos profissionais em suas falas e de que forma, coerentemente à elas, inserem-se as ações de reabilitação psicossocial nos projetos que elaboram ou que disponibilizam.

Dessa forma, acreditamos ter contemplado aquilo que Minayo (1992) assinala como sendo uma possibilidade de realização técnica do método de análise, apoiada na abordagem hermenêutica dialética em relação às comunicações e ações referentes à área da saúde e que ao utilizar o caminho do pensamento proposto por Habermas, procura possibilitar uma interpretação aproximada e provisória da realidade, posicionando as relações intersubjetivas mediadas simbolicamente pela linguagem em seu contexto para entendê-las a partir do seu interior e no campo da especificidade histórica e totalizante em que são produzidas.