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5.2 O campo: desenvolvimento dos procedimentos da coleta de dados

5.2.3 Entrevista semiestruturada

Todo homem procura compreender sua existência e quando está engajado em uma ação, no trabalho ou em outras formas de produção material da vida, teoriza-a de forma espontânea. Para tal, utiliza os materiais que a sociedade coloca à sua disposição e os compartilha, de forma mais próxima, com os integrantes do grupo ou meio social que frequenta. Esses materiais são as idéias, as imagens, as normas, os valores, os mitos, os projetos, ou seja, esse imenso material intelectual produzido pela sociedade e, pelo qual, a sociedade se reproduz.

De acordo com Bertrand (1989), quando os elementos que constituem esse material fornecido socialmente aos homens se ordenam segundo uma lógica, se articulam com uma certa coerência, e sob certas regras, formam sistemas de representações, os quais nada mais são do que formas sociais de consciência, a partir das quais os homens se constroem. Isto é, eles recriam suas relações sociais por meio das imagens, dos mitos, crenças, idéias, projetos, e demais elementos que a sociedade ou grupo lhes disponibiliza. Dito de outra maneira, esses

elementos exprimem, sob forma, mais ou menos indireta, as relações reais entre os homens, as de natureza material e simbólica, sob as quais, os homens vão edificar suas vidas.

Quais os elementos constituintes em um sistema de representações sociais fundamentam as escolhas terapêuticas das equipes dos serviços de saúde mental? Quais elementos estão na base dos esquemas de valor atribuído a cada uma das atividades desenvolvidas pelas equipes? Como conceituam a reabilitação psicossocial e como se insere essa estratégia clínica nos esquemas de escolha e valorização técnica e social dado por essas equipes?

As entrevistas semiestruturadas são o recurso e o instrumento, pelo qual podemos investigar esses aspectos. Para Minayo (1994), as entrevistas colocam a palavra como símbolo de comunicação por excelência e o que torna as entrevistas um instrumento privilegiado de coleta de dados em uma pesquisa qualitativa, é o potencial da fala contida nos depoimentos, a qual é reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos. A autora salienta que a entrevista, por si só, é capaz de “(...) transmitir, através de um porta-voz, as representações de grupos determinados, em condições históricas, sócio-econômicas e culturais específicas.” (p. 110).

Para Minayo (1994) a entrevista, além de ser um instrumento privilegiado de interação, também é um fato social, pois há uma relação interpessoal estabelecida. Refere que a entrevista é um recurso que traz o caráter histórico e social da fala e, portanto, é um campo de expressão das construções sociais; assinala ainda que todas as formas de discurso na comunicação refletem e são determinadas pela dimensão material da reprodução da vida social. A entrevista, como interação dialógica, discursiva e comunicativa reflete e refrata a realidade objetiva.

Além disso, acrescentaríamos que a dimensão da subjetividade não pode ser desprezada na constituição dos conteúdos da interação comunicativa, estabelecida na situação da entrevista, no sentido em que a realidade objetiva e subjetiva se interseccionam na constituição do ser humano e na própria constituição do real, na medida em que, os homens ao reproduzirem sua vida socialmente, o fazem também pré-figurando aquilo que é uma montagem imaginária de suas idealizações, na construção e recriação do real. A realidade objetiva não é constituída apenas das ações materiais dos homens, mas a própria ação material dos homens é, em certa medida, determinada pelas suas aspirações imaginárias, quando estas são prefiguradas nas ações, enquanto possibilidades de realização concreta daquilo que foi idealizado (BERTRAND, 1989).

Portanto, a nosso ver, as entrevistas como interação dialógica e comunicativa são marcadas pelo encontro humano e pela contingencialidade da interação intersubjetiva que as constitui.

Minayo (1994) alerta para um processo que se manifesta no momento em que se pesquisa um grupo social: o surgimento de uma situação na qual algumas informações não aparecem, senão sob uma forma velada, e outras que são apresentadas de uma certa maneira para parecerem com aquilo que o grupo pretende mostrar em relação a si mesmo. Em outras palavras, em um grupo social, mesmo que existam conflitos e diferenças, sua existência depende de uma coesão interna que compartilha segredos, significados e temas proibidos. Portanto, o relativo sucesso de uma pesquisa é determinado pela capacidade de se adentrar nessa área de informações difusas e de resistências. Assim, vemos como a dimensão subjetiva está presente na constituição da realidade objetiva.

O tipo de entrevista escolhida foi a semiestruturada, por se mostrar mais adequada, no sentido de não se restringir a um roteiro pré-determinado e fechado e também pelo fato possuir um eixo de enfoque organizando a questão endereçada aos profissionais dos serviços de modo que a entrevista possa fluir a partir desse eixo proposto pela pesquisadora. Deste modo, não se trata de entrevistas totalmente abertas, já que apresentam um eixo norteador do diálogo estabelecido no momento da entrevista.

Segundo Triviños (1987), a entrevista semiestruturada tem a vantagem de ser realizada na presença do pesquisador o que favorece o surgimento e identificação de pontos escuros, regiões de conflitos e divergências no interior do grupo, os quais possivelmente não se evidenciariam se a entrevista fosse completamente estruturada.

De acordo com Víctora; Knauth; Hassen (2000), a importância de ter claros os objetivos da pesquisa, os quais a tornam uma importante ferramenta para compreensão dos elementos e aspectos que constituem as informações que nos propusemos estudar. Fica evidente,portanto, que as entrevistas, em pesquisas, não fornecem apenas dados relevantes sobre a realidade objetiva dos serviços estudados, mas, também, muniram dados sobre as visões de mundo, de homem, saúde e doença. Esses elementos estão na base das escolhas dos profissionais em relação a determinadas modalidades terapêuticas em detrimento de outras, algumas são valorizadas, técnica e socialmente, e outras são desvalorizadas, como concebem a reabilitação psicossocial e como a situam no sistema de valorizações e escolhas que efetuam, no cotidiano, para elaboração de seu plano técnico e programa terapêutico.

Conforme mencionado anteriormente, foram realizadas dezenove entrevistas distribuídas da seguinte forma: onze no ARSMRP e oito no CAPS II. Quanto à categoria profissional dos entrevistados, temos: duas psicólogas, três assistentes sociais, duas enfermeiras, duas terapeutas ocupacionais, três médicos psiquiatras, quatro auxiliares de enfermagem, um oficineiro/musicoterapeuta e duas gerentes.

No ARSMRP foram realizadas onze entrevistas com os seguintes profissionais: uma psicóloga, duas assistentes sociais, uma terapeuta ocupacional, dois médicos psiquiatras, três auxiliares de enfermagem e um gerente. No CAPS II foram oito distribuídas da seguinte forma: uma psicóloga, um psiquiatra, uma assistente social, uma terapeuta ocupacional, uma enfermeira, um auxiliar de enfermagem, um oficineiro/musicoterapeuta e um gerente.

As entrevistas foram realizadas no próprio local de trabalho dos profissionais e gravadas em fita cassete após o consentimento do entrevistado. A duração dos depoimentos variou de trinta minutos a uma hora e trinta minutos.

Todos os profissionais foram orientados sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice I), o assinaram e tiveram uma cópia do documento.

Por serem entrevistas semi-estruturadas, eram constituídas por duas perguntas que refletiam os temas buscados em nossos objetivos: 1- “Descreva o seu trabalho no serviço, objetivos, relacionando com os outros profissionais da equipe e com o projeto terapêutico do serviço e como é elaborado o projeto terapêutico do serviço.” e 2- “Qual sua concepção sobre reabilitação psicossocial e descreva ações psicossociais presentes no seu serviço?”

Os entrevistados, de maneira geral, foram receptivos, cooperativos e preocupados em fornecer corretamente as informações solicitadas e, nesse sentido, o que permitiu que os depoimentos transcorressem em clima agradável e participativo para ambas as partes.