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Do Passo de sentido ao ab-sentido – o que resta de uma análise

Do Passo de sentido

ao ab-sentido – o que resta

de uma análise

Glaucia Nagem

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Ab-sentido: “o mais esvaziado de sentido que há, por prescindir de toda e qualquer metáfora”

(L’Etourdit)

Em seu texto “Psicanálise Selvagem”, Freud supõe que a neurose atual não seria tratável pela psicanálise, pois não entraria no simbólico, dependendo do fator somático. Ele nos diz; “as chamadas neuroses atuais (...) dependem evidentemente do fator somático da vida sexual, sem que tenhamos, ao contrário, ainda uma ideia precisa do papel que nelas desempenham o fator psíquico e a repressão” (FREUD, 1910). Assim, se o somático estava mais evidente e o simbólico não operava como em outras neuroses, o médico deveria atuar de modo diferenciado, numa “terapia atual, e tender a uma modificação da atividade sexual somática”.

Acompanhamos a preocupação de que seria o sentido simbólico que para Freud indicava a possibilidade de uma análise. Freud impregnava de sentido simbólico vários de seus relatos, vemos isto nos casos apresentados em seu texto "O Sentido dos sintomas" (FREUD, 1916-1917). Nele, cada ato das pacientes apresentadas tinha uma significação, gerando ali uma cadeia quase infinita. Lembrando a cadeia infinita da moça que tinha dificuldade para dormir: almofada/travesseiro = mulher; parede/vertical = homem; cerimonial = evitar o contato do homem com a mulher = impedir o contato sexual dos pais = porta entreaberta = edredom = gravidez = posição como diamante do travesseiro = órgão feminino = cabeça = órgão masculino. 1 Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

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Livro Zero

Mesmo que impregnado de sentido, o vemos colocar como índices do inconsciente as formações dos sonhos, sintomas, chistes e atos falhos. Esses índices evitam que nos deixemos enganar na infinitude de significações. A leitura das formações do inconsciente como texto observando em suas falhas o que é próprio do recalque é uma recomendação freudiana já no seu texto Interpretação dos sonhos: “comparação do original com a tradução”, “esforçando-se em substituir cada imagem por uma sílaba ou uma palavra suscetível de interpretação” (FREUD, 1898-9/1900). Podemos afirmar com Lacan sobre isto que “o inconsciente se estrutura como uma linguagem”.

Se em diálogo com a linguística, Lacan construiu seus primeiros grafos, esquemas e matemas, ao introduzir a lógica e a topologia como articula- dores para suas construções teóricas, podemos notar que avançou no que diz respeito aos conceitos da psicanálise. Podemos assim afirmar com Rabinovitch (2004) que “O que a psicanálise realmente trata é a linguesteria, não mais a linguagem, mas a a-língua”. Não nos enganemos, porém com a ideia de que com o conceito de a-língua Lacan abandonou a hipótese de que o inconsciente se estruturasse como uma linguagem. Lemos, já nos anos 70, em L’Etourdit (1973) que: “Esse dizer provém apenas do fato de que o inconsciente, por ser estruturado como uma linguagem, isto é, como a lalíngua que ele habita, está sujeito à equivocidade pela qual cada uma delas se distingue”. Lemos ainda em "Televisão" (1973): “Mas o significante difere dele (do signo) pelo fato de sua bateria já se dar em lalíngua (...) A bateria significante de lalíngua fornece apenas a cifra do sentido. Cada pala- vra assume nela, conforme o contexto, uma gama enorme e disparatada de sentidos, sentidos cuja heteróclise se atesta com frequência nos dicionários”.

“Gama enorme e disparatada de sentidos”, juntar sentido e disparate em uma mesma afirmação é, no mínimo, excêntrico. Mas parece que é uma indicação clínica de Lacan para a interpretação e para o corte. Mas o corte proposto por Lacan vai em direção a um esvaziamento de sentido não como um non-sens. O non-sens foi uma maneira de ler a psicanálise nos tempos do surrealismo, que não para a significação, mas desdobra de modo diferente, não menos abundante.

Em 58, Lacan nos fala do pas de sens, que equivoca “não-sentido” e “passo de sentido”. Assim nos diz: “(...) não creio que se deva manter o termo non- sens, que só tem sentido na perspectiva da razão, da crítica, (...) Proponho- lhes a forma do pas-de-sens (passo de sentido)”. O tradutor coloca ainda uma nota nessa expressão pas-de-sens: “Este último (pas-de-sens), com sua evidente dubiedade, teria sua acepção primeira de “passagem do sentido”, mas também “nenhum sentido” ou o “sem-sentido”. Este pas-de-sens para

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Do Passo de sentido ao ab-sentido – o que resta de uma análise o desdobramento da significação?

Recorro rapidamente à etimologia de passo, para pensar que ainda nele algo se estende posto que “passo, do latim, passus seria “estendido, desdo- brado, aberto”, ou ainda “espaço compreendido entre o afastamento das pernas”. Assim, parece que a interpretação que se centra nesta concepção de passo de sentido poderia fazer o envelopamento do real e do imaginário pelo simbólico. Não à toa Lacan dá o passo de propor para o non-sens a expressão ab-sens, equivocando com o ab-sexe.

Badiou (2010) afirma em seu texto Formules de “L’Étourdit”, que a psica- nálise “por sua experiência do sexo, do ab-sexo, reencontra um real tal que ele mova os efeitos de sentido, ao ponto de poder assegurar que existe um registro do sentido que não é nem afirmação do sentido nem sua negação. A experiência analítica supõe abrir um espaço entre sentido e não-sentido, o qual é necessário para que possa se cristalizar o ato analítico”.

Ab-sexo é a subtração do sentido, um fora do sentido e não, como o non- -sens, um desprovido de sentido. Em Radiofonia (1970), Lacan já indica que o seu non-sens não é para ser lido da mesma forma que o nonsens como absurdo, contrassenso. O ab-sens/Ab-sexe põe em jogo esse algo que o non- -sens perde, põe em jogo um fora que faz parar a extensão da significação, um “é isso”.

Lacan sustenta em L’Etourdit que não há sentido da verdade porque não há verdade do real. Assim, podemos isolar com Badiou (2010) a tese de L’Etourdit como sendo a que indicaria que “do real não há senão função de saber, e essa função de saber não é da ordem da verdade como tal”. Isso que faz com que algo desse impossível de dizer possa ser transmitido, que passe adiante, não como enxame de sentidos. Um saber transmissível seria então uma função do saber do real, não pelo sentido, mas pelo ab-sexo. Este é o lugar ignorado pela filosofia, e neste lugar – segundo Badiou – a filosofia coloca outra coisa. Aristóteles colocou o princípio de não-contradição. Mas nesse ponto fica a filosofia com o sentido apontando o non-sens como o absurdo a ser evitado. Do lado da psicanálise, Lacan nos aponta em o sens- -absens, o que está fora, posto aí pois: não há relação/proporção sexual.

O Ab-sexe é o próprio do não-todo, do lado mulher. Voltando a Rabinovitch: “(...) é do lado mulher que a a-língua se desencadeia/inicia, é do lado da mulher barrada que encontramos o desencadeamento do equívoco da a- -língua”. A interpretação como corte é que promove que este lado entre no jogo, faz com que “o real toque o real” não como apenas o inefável de uma experiência, mas como uma mudança de posição. É por tocar no impossível de dizer que algo deste se mostra contável.

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O discurso do analista é o modo com que vemos operar sobre o impossível de tudo dizer, colocando o furo como operador. Isto não é sem consequências, posto que é aí que o sujeito não está mais somente como resto do discurso a-sujeitado, como verdade do discurso da mestria e menos ainda agenciando o mestre para que lhe diga algo de sua verdade. A posição do sujeito em que passa o discurso do analista é a de poder se deixar ser agenciado por aquilo que o causa. Tendo o saber no lugar da verdade, fazendo um saber não-todo, impossível de alcançar uma significação última. Restando tra- ços daquilo que em algum momento agenciava o sintoma, que marcam as pegadas do que um dia foi apenas sofrimento e que ali, no que do discurso do analista aponta, é pura invenção.

Termino com a poesia de Antônio Cícero: Inverno

No dia em que fui mais feliz Eu vi um avião

Se espelhar no seu olhar até sumir. De lá pra cá não sei. Caminho ao longo do canal, Faço longas cartas pra ninguém E o inverno no Leblon é quase glacial.

Há algo que jamais se esclareceu: Onde foi exatamente que larguei

Naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei? Lá mesmo esqueci

que o destino sempre me quis só

no deserto sem saudades, sem remorsos, só sem amarras, barco embriagado ao mar.

Não sei o que em mim Só quer me lembrar

Que um dia o céu

Reuniu-se à terra um instante por nós dois Pouco antes do ocidente se assombrar.

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Do Passo de sentido ao ab-sentido – o que resta de uma análise

R

efeRências

:

LACAN, J. (1973). L’Etourdit. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p 478.

SIGMUND, F. (1910). El Psicoanalisis “Silvestre” In: Obras Completas de Sigmund Freud. p. 1573. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 1981. SIGMUND, F. (1916/17). El sentido de los sintomas In: Obras Completas de Sigmund Freud. p. 2.282. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 1981. SIGMUND, F. (1898-9/00). El Elaboracion Onirica In: Obras Completas de Sigmund Freud. p. 516. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 1981. RABINOVITCH, D. L’Etourdit. Corrélats, France, février, 2004, numéro 2/3, p. 89.

LACAN, J. (1973). Televisão. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 514.

LACAN, J. (1958). O Seminário, livro 5: As Formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 103.

BADIOU, A. Formules de “L’Étourdit”. In: Il n’y a pas de rapport sexuel – deux leçons sur “L’Étourdit” de Lacan, France: ouvertures Fayard, 2010. LACAN, J. (1973). Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 424.

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Vem agora um pouco de topologia

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