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neurótico: uma invenção no final da análise

Beatriz Oliveira

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Quero apresentar a vocês o que me parece ser produto do que nos pro- pomos a fazer nos espaços de transmissão da psicanálise, no FCL-SP: uma série. Uma série de repetições, não do mesmo, mas repetição de traços que se diferenciam e ao mesmo tempo marcam, singularizam, na via do estilo de cada um. Esse escrito é consequência dessa série.

Após um ano acompanhando os enigmas de O Aturdito (72) e dois meses decifrando a Lettre aos Italianos (de 74 e não de 73), apresento aqui uma articulação que me pareceu interessante. Embora sejam textos cronologi- camente muito próximos, entendo que em 74 Lacan apresenta mais alguns elementos que permitem avançar em sua formalização a respeito do final de análise. Assim, enquanto em 72, Lacan já nos aponta que é necessário atravessar o luto pela queda do analista deste lugar de objeto a, sustentado pela transferência ao longo de uma análise, em 74 ele nos indicará que, no final, há um saber que “ainda nem foi para o forno” e que é preciso “inventá-lo”. Este trabalho pretende destacar a “invenção” como resposta do que cada um fez para “sair de sua neurose”.

Ao falar do final da análise do toro neurótico no texto O Aturdito, Lacan retoma a mesma tese proposta em 64, no final do Seminário 11: a destituição subjetiva com a queda do analista deste lugar de SSS e a necessidade do luto por essa perda. No entanto, me parece que o que ele dirá em seguida a esta retomada é fundamental para o salto que apresenta neste texto a respeito do final de análise. Ele dirá: “Resta o estável de pôr-se no plano do falo, isto é, da banda, onde a análise encontra seu fim, aquele que garante seu 1 Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Analista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

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sujeito suposto DO saber” (LACAN, 1972, p. 489).

Ora, o que isso poderia querer dizer? Não se trata de sujeito suposto saber, mas suposto DO saber. Em Finais de Análise, C. Soler já nos indica que ao final, resta o saber assegurado. Resta um sujeito seguro do saber. Ele já não se assegura do fantasma, mas sim do saber. Ora, de que saber se trata? É pelo saber (como diz Soler no comentário anterior) que algo para de se escrever. Diz Fierens: “Graças ao percurso da cura, o sujeito suposto dá agora lugar ao saber o qual dá a certeza do sujeito suposto, o qual se situa nas três dimensões do impossível” (2010, p. 264).

Em seu texto De que modo o real comanda a verdade (2010, p. 17), C. Soler nos dirá que “há um ‘saber sem sujeito’, o qual inscreve um impossível e há o sujeito representado por um S1 junto ao saber que deciframos”. Ela remete a Lacan: “alíngua articula coisas que vão muito mais longe que aquilo que o ser falante sustenta como saber enunciado”, é “o lugar de um saber que ultrapassa o sujeito”. E ela conclui: “Existem, portanto, dois saberes: o saber decifrado, que pode se constituir como linguagem; e o saber falado de alíngua, que não é linguagem” (p. 19).

Essa distinção me parece importante para acompanharmos a introdução que Lacan faz das dimensões do impossível no texto de 72.

Ele dirá: “uma demanda pode se repetir por ser enumerável, o que equi- vale a dizer que ela só se emparelha com a volta dupla em que se funda a banda ao se colocar a partir do transfinito(...) De todo modo a banda só pode se constituir se as voltas da demanda forem em número ímpar(...) Como o transfinito continua exigível, pelo fato de nada se contar aí se o corte não se fechar, é intimado a SER ÍMPAR(...) É isso que acrescenta uma diz-mensão à topologia de nossa prática do dizer” (1972, p. 488). Ou seja, é o transfinito ímpar que acrescenta uma diz-mensão à topologia de nossa prática do dizer.

Só para lembrar, veja o que Lacan disse anteriormente:

Até aqui, seguimos Freud, e nada mais, no que se enuncia da função sexual por um paratodo, mas igualmente ficando numa metade, das duas que por sua vez ele discerne, a partir do mesmo côvado (medida de comprimento usado em civilizações antigas), por lhe remeter às mesmas diz-mensões (p. 463).

Ou seja, se ficássemos no paratodo homem freudiano de um saber que se decifra, não se acrescentaria outra diz-mensão à prática do dizer.

Ora, me parece que não haveria como introduzir uma outra diz-mensão nessa prática do dizer, se nos mantivéssemos na série transfinita biunívoca,

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portanto enumerável. Entendo que aí encontramos um saber decifrável, tal como falávamos anteriormente. A questão é que não há só o conjunto dos enumeráveis, Aleph zero, mas o C, o cardinal do contínuo, que não se pode contar, mas se divide ao infinito. Justamente, aquele que não faz correspondência biunívoca, por isso ímpar. Lacan dirá: “o transfinito ímpar da demanda resolve-se pela volta dupla da interpretação” (1972, p. 488). Só consigo entender da seguinte maneira: a volta dupla da interpretação faz o conjunto se fechar separando aquele que é ímpar (o objeto a, causa do desejo, do conjunto cuja série foi contável, de onde se depreende S1).

Ora, é a exigência de um transfinito ímpar, que não faz par, que permite que uma psicanálise se feche: “Esse dizer que convoco à ex-sistência, esse dizer que não se deve esquecer do dito primário, é com ele que a psicanálise pode pretender se fechar”. Lacan continua: “A psicanálise, por sua vez, só acessa a isso pela entrada em jogo de uma Outra diz-mensão, o objeto pelo qual se (a)nima o corte que com isso ela permite: o objeto (a)” (1972, p. 490).

Ou seja, Lacan aqui insiste que é necessário uma outra diz-mensão para que um corte verdadeiro aconteça, para que uma psicanálise se feche. Caso contrário, não se sai do toro neurótico. Essa outra diz-mensão é o objeto (a), representado pelo analista, ao longo da análise. Esse ímpar que não faz par com o Outro, o analista situa-o por seu semblante (discurso do psicanalista). Como então pensar a questão do saber tal como estávamos tratando no início do texto? É a partir dos anos 70, com as fórmulas da sexuação e a introdução dos modos lógicos possível, necessário, impossível e contingente que Lacan sustenta a formalização apresentada em O Aturdito, qual seja, a ex-sistência do dizer a partir dos ditos em uma análise. Assim, estou acompanhando que esta relação entre dizer e dito só pode ser pensada a partir desta outra diz-mensão, a qual Lacan sustenta como impossível. Nesse sentido, entendo também a proposta de um saber que se decifra, através dos ditos de uma análise e um saber que se situa a partir das dimensões do impossível, o qual não se decifra, mas de que se goza ao final de uma análise. Lacan destaca três diz-mensões do impossível que se desdobram no sexo, no sentido e na significação: não há relação sexual; para que uma série se constitua é necessário uma exceção fora do conjunto; e não há uma última significação que venha significar S( ).

Que o sentido e a significação sejam dimensões do impossível, como o é o sexo, entendemos por seus laços com o Real, o que quer dizer que faltará algo neles em relação a si mesmos e aos outros(...) Se trata assim de chegar a entender a possibilidade de emergência da

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INVENÇÃO, em um mundo no qual a repetição molda o caminho inicial (FEINSILBER, p. 32).

Feinsilber, neste comentário, abre justamente para o ponto a que quero chegar neste trabalho: a invenção no final da análise. Ainda em 72, Lacan é muito claro em relação ao perigo de se fiar no meio-dizer da volta simples. Ele indica que há uma questão ética em jogo no final para que se leve a análise mais além desse lugar agalmático do outro que pode nos ofuscar. Uma análise que não leva ao tempo do luto, do de-ser, mas que fica tomado pelo parecer que o SSS produz pela via da “boa lógica” que faz “entender” o impossível, não se fecha pelo transfinito ímpar que a dupla volta permite.

Como, então, pensar a questão da invenção tal como Lacan nos apresen- ta no texto Lettre aos italianos? Antes de continuar, gostaria de fazer um comentário a respeito da escolha de nomear este texto como Lettre e não “Nota”, como foi estabelecido e encontramos nos Outros Escritos. Como sabem, Lettre implica não só a possibilidade de se pensar em carta (fazen- do alusão à carta roubada) tanto quanto à letra. E aqui, volto (já citei em outros textos) a citar um comentário de Lacan do Seminário XVIII para vocês verem a importância dessa escolha:

Trata-se, expressamente, de estudar a lettre como tal, na medida em que ela tem, como eu disse, um efeito feminizante. É com isso que abro meus Escritos. Essa carta, como voltei a sublinhar da última vez, funciona, muito especificamente, por ninguém saber nada sobre seu conteúdo, e porque, até o fim, ninguém saberá nada dele (LACAN, 1971, p. 121).

A escolha de lettre me parece fundamental, inclusive para sustentar o que queremos neste trabalho, qual seja, a importância de se pensar em um saber novo, uma invenção absolutamente singular no final da análise, da qual se goza, mas a qual não se decifra na série dos uns que se precipitam em uma análise. Trata-se mais de um saber fazer com isso com o qual o sujeito só se depara a partir deste efeito feminizante aberto pela diz-mensão do impossível.

Vamos à questão da invenção. No texto de 74, Lacan dirá:

O saber em jogo (...) trata-se de que não existe relação sexual, relação aqui, quero dizer, que possa pôr-se em escrita(...) A verdade não serve

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para nada senão criar o lugar onde se denuncia este saber. Mas esse saber não é pouco. Pois o que se trata é de que, acessando o real, ele o determina. Naturalmente esse saber ainda nem foi para o forno. Porque é preciso inventá-lo (p. 315).

A questão que se coloca neste momento é justamente a passagem deste saber enumerável construído em análise, para aquilo que já não é mais decifrável e que se situa no campo do gozo. Falar em passagem aqui é ape- nas um recurso retórico para este escrito, pois não entendo que passamos de um lado a outro como se enquanto estivéssemos em um campo, o outro neste momento estaria excluído. Pelo contrário, desde o início os campos estão enodados, assim como os dois lados do quadro da sexuação também formalizam uma estrutura que está dada de saída para o sujeito neurótico. Essa me parece ser a possibilidade de se pensar o dizer e o dito ao mesmo tempo. É dessa forma que entendo o seguinte comentário de Lacan em O Aturdito:

“Esse dizer provém apenas do fato de que o inconsciente, por ser estru- turado como uma linguagem, isto é, como a lalíngua que ele habita, está sujeito à equivocidade pela qual cada uma delas se distingue” (p. 492).

Ou seja, é só por haver equivocidade entre linguagem e lalíngua que um dizer provém. Nesse sentido, não se separa linguagem e lalíngua como campos excludentes, mas, pelo contrário, um não vai sem o outro. Assim, um dizer se sustenta a partir do impossível e corta na fala do analisante aquilo que se lê em seus ditos: as homofonias, equívocos, “efeitos de língua” que permitem uma escrita.

Assim é que podemos abrir aqui para se pensar este novo saber, que deve ser inventado, como consequência de um percurso que oferece as condições de possibilidade para um efeito feminizante. Estou entendendo o efeito feminizante como aquilo que permite o sujeito se posicionar num modo de gozo não-todo fálico, a partir do qual algo cessa de não se escrever. Esse efeito feminizante, contingente, me parece ser aquilo que Lacan pôde nomear como LETTRE, não mais como carta, mas sim como letra, borda no furo do saber, litoral entre saber e gozo.

Assim Lacan (1971) dirá:

Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral que só vira literal quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante. É somente a partir daí que podem tomar-se pelo agente que a sustenta (pp. 21, 22).

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Tomar-se como agente que sustenta essa borda entre saber e gozo, tornar-se analista, é a única condição de possibilidade de conduzir uma análise até o fim. Mas o saber sobre o que faz de um analisante um analista, aquele que ocupa esse lugar que sustenta essa lettre, isso é o que se inventa, um a um.

Como diz D. Rabinovich:

O próprio da invenção é que nunca se inventa um saber todo, se inventa a partir da falta de fechamento do saber inconsciente como real(...) Esse saber que são pedaços de saber, fragmentos de saber, a esse sa- ber só resta inventar. Como? Inventar sob a forma do bem-dizer, do um por um que cabe ao analista enfrentar a cada vez (pp. 165, 166).

Ora, é só a partir disso que se escreve em uma análise, que um analisante pode aprender a ler sua própria língua e com isso inventar um outro modo de saber fazer, ou, bem dizer com ela.

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efeRências

:

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Do divã do Odivan à marca do desejo de analista: a lógica e a ética da autorização e da nomeação

Do divã do Odivan à marca