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O analista deve se ausentar de

todo ideal do analista1

Silvia Franco

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“Eu sei menos do que acreditava saber, sinto-me interpelado por um grande número de incertezas sobre o que dizemos e fazemos a propósito do passe e, correlativamente, aumenta o horizonte do que devo trabalhar” (MONCENY,3 in: Wunsch no 10, p. 69).

“[...] a Escola não é apenas no sentido de distribuir um ensino, mas de instaurar entre seus membros uma comunidade de experiência cujo cerne é dado pela experiência dos praticantes” (LACAN, Outros

Escritos, 2003, Anexos, p. 571).

O que apresentarei hoje para o nosso debate não é um trabalho, mas algumas questões em relação à nossa experiência com passe na EPFCL (Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano).

Temos trabalhado intensamente no Fórum São Paulo e na nossa Escola para colocar a experiência efetiva do passe no cerne da nossa comunidade, não sem as dificuldades inerentes a este trabalho. Com essa finalidade temos discutido os trabalhos produzidos pelos cartéis do passe, dosAEs (Analistas de Escola)e dos passadores em torno dessa experiência.

Essa produção nos permite afirmar que não existe “um percurso analítico ideal”, não existe “sequência-tipo do passe” e que a experiência do passe na EPFCL revela uma multiplicidade de passes e finais de análises que permi- tem, em alguns casos, constataras condições singulares da emergência do desejo do analista e como “cada passante encontra sua solução”.

1 LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 371.

2 Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Analista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

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Uma das questões que proponho discutir hoje é como acolher essa varie- dade de passes na nossa Escola. Trata-se, no meu entender, de uma questão política que tem consequências éticas, epistêmicas e clínicas. Como manter essa multiplicidade inerente a uma experiência que leva em conta o real, que diz respeito ao não-todo e que permite acolher dizeres singulares que nomeiam o limite do saber? É uma escolha que leva em conta a doxa como real, real que orienta a experiência analítica (cf. LACAN, O Aturdito, 2003, p. 484).

Outra escolha possível para acolhermos essa variedade de passes e as di- ficuldades próprias a este dispositivo é tentarmos ordenar essa experiência,4

seja à revelia do que ela permite entrever, e/ou, recorrendo a uma “consis- tência” dada ao ensino de Lacan, para ditar, segundo o discurso do mestre “o que se espera” e “o que não se espera recolher do passe”.

O modo de tomar o ensino de Lacan, privilegiando uma parte desse en- sino, em detrimento de outro e os ideais que surgem no analista, podem impedir que o singular dessa passagem de analisante a analista possa ser transmitido e, como já sabemos, influenciar no que é dito e no que é ouvido nos passes, o que pode impedir que o passe continue a causar um novo saber (o que possivelmente pode nos levar a recolher sempre o mesmo) e ainda, apagar o seu caráter subversivo ao reduzi-lo a um rito de passagem.

Lacan, em seu seminário, Livro 8: A Transferência (1994), é bem claro quan- do afirma, apontando para o desejo do analista, “que o analista no final de seu percurso deve ter podido guardar o luto de que haveria um objeto que valeria mais do que os outros” (p. 381) e que “o analista deve se ausentar de todo ideal do analista” (p. 371). Vale lembrar que Lacan esperava que o passe trouxesse correção ao ensino e não que o ensino corrigisse o passe. Dos vários exemplos que poderia citar para deixar mais clara a minha preocupação em relação a essa questão, vou relatar apenas um. Recentemente recebi um convite para falar sobre a experiência do passe a partir de dois pontos: “o final de análise” e “o que é verificado no passe”. Não teríamos aqui um equívoco? Transmitir a partir de uma experiência singular, a pas- sagem de analisante a analista, não é isso que se verifica no passe? Penso que o desejo do analista e o final de análise é o que deveria nortear essa experiência. Portanto, esses dois pontos deveriam ser indissociáveis.

Na sua função de sensibilização da comunidade de Escola a clínica do real, o passe, segue mantendo viva a pergunta sobre o desejo do analista

4 Um dos objetivos do III Encontro de Escola, em Paris, é homogeneizar as práticas e as designações.

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(cf. LOMBARDI, in: Wunsch no 8, 2010). Lacan não cessou de repetir di-

versas vezes que esperava que o passe pudesse dizer alguma coisa sobre o que faz alguém, após ter passado pela experiência da análise, desejar ocupar esse lugar.

Em alguns trabalhos apresentados por integrantes dos cartéis do passe se queixam da dificuldade de verificar o desejo do analista (dificuldades inerentes a esse desejo); e em decorrência dessas dificuldades, se confir- mam por um lado, a exigência (lógica) do trabalho do cartel do passe para extrair/cernir o desejo do analista na transmissão dos passadores; e por outro lado, confirmam que o novo, o inédito só pode surgir da singularidade de cada caso (passe).

Extraio de um trabalho de Clotilde Pascual (membro do cartel do passe), intitulado “Cada passante encontra a sua solução”, um pequeno recorte para a nossa discussão:

Quero começar por dizer, primeiramente, o que eu esperava encontrar na escuta dos passes, o que eu pesquisava na leitura dos testemu- nhos publicados, assim como a escuta dos passes pelos AEs.Uma destas questões é que, seguindo os textos maiores de Lacan sobre a passagem ao desejo do analista no passe e em seu dispositivo (o texto de 1967, “A proposição...”, e o texto de 1976, “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”), eu constatei que existe uma dificuldade para cingir no discurso do passante o que pode se referir a este de- sejo. Para dizê-lo de outra maneira: há poucas observações sobre a entrada na prática analítica e o “por quê” e “como” esta entrada na prática se articula com o passe clínico, assim como as repercussões desta entrada na vida pessoal” (In: Wunsch no 8, pp. 60-61).

Em outro trabalho, não menos interessante, com o título “Verificar um desejo”, Sol Aparicio comenta a variedade bem-vinda dos passes e apresenta um trabalho sobre o desejo do analista, partindo principalmente do texto de Lacan de 1976, a Nota Italiana. Não vou comentar aqui este texto, mas apontar para o que ela discute no seu trabalho:

[...] aqueles que dizem explicitamente alguma coisa sobre o desejo possante ao ato são raros. Sem dúvida, isso necessita uma perlaboração particularmente importante. É, em todo caso sobre a historização da análise deles, ou seja, sobre o articulável, que eles extraíram que a maior parte dos passantes centram seus testemunhos,

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mais que sobre o momento, o como e o porquê da passagem a analista [grifos nossos]. (WUNSCH no 10, p. 68).

E em seguida ela pergunta:

Mas, de fato, esse desejo do analista do qual nada é enunciado não estaria lá, apesar disso? Não está ele justamente operando, a ser ve- rificado na historização mesma do trabalho analítico realizado, tão diferente daqueles dos dados biográficos? Um testemunho que leve a convicção não teria por condição ser suportado por um desejo... inédito? (WUNSCH no 10, p. 68).

Sol Aparicio, a partir do desenvolvimento das suas reflexões e do ensino de Lacan explica que “ao desejo que está em questão ‘para fazer o analista’ só concerne ao saber separado da verdade e de toda ideia de progresso; nenhuma idealização do saber nem de suas consequências são aqui con- venientes”(WUNSCH no 10, p. 68).

Retomo também, para o nosso debate, algumas referências de Lacan em relação ao desejo do analista, tendo em vista duas questões. A primeira, uma pergunta feita por um dos meus passadores, precisamente a questão era sobre o que eu poderia dizer a respeito do desejo do analista. A outra questão que me norteia nessas referências de Lacan é: por que o desejo do analista continua sendo o que orienta a experiência do passe?

É importante situar que é a ética do desejo do analista que deve guiar o psicanalista, e é o que está na base da proposta de Lacan para criar uma Escola de Psicanálise, pois, é o problema da formação do analista que coloca a questão do desejo do analista (cf. LACAN, Seminário XI, p. 17) e é em torno desse desejo que Lacan esperava uma “conversão ética radical, aquela que introduz o sujeito na ordem do desejo” (LACAN, 2006, p. 325).

Lacan não nomeou o desejo do analista, pois o desejo é incompatível com a palavra, este desejo não se predica. Lacan, seguindo a ética freudiana, demonstrou que o desejo do analista não é um desejo de objeto nenhum, nem desejo de educar/ensinar, governar, curar e nem mesmo o de fazer o bem. Então, “o que há de ser do desejo do analista para que ele opere correta- mente?” (LACAN, Seminário XI, p.17).

Desde o texto de 1958, A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan (in Escritos, 1998) já apontava a importância do desejo do analista para a direção do tratamento: “Cabe formular uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão

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do desejo do analista” (p. 621). “O analista [...] é tão menos seguro de sua ação quanto mais está implicado5 em seu ser” (final da p. 594 e p. 595). O

analista, “é ainda menos livre [...] em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser” (p. 596) para dirigir o tratamento. Lacan afirma no mesmo texto, em relação ao desejo do analista, que ele é o primeiro a preservar nas análises o indizível (cf. p. 622). O desejo de ser com todas as predicações é a paixão do neurótico.

Como Lacan indica em seu seminário de 1960-1961, A Transferência (1994), o desejo do analista é um lugar: “O desejo é um lugar atopos”, um lugar insituável, “inclassificável”. Atopia, que se não pode encontrar em nenhum lugar (cf. p.108) e “as coordenadas que o analista deve ser capaz de atingir para simplesmente ocupar o lugar que é o seu se define como aquele que ele deve oferecer vago ao desejo do paciente para que ele se realize como desejo do Outro” (p. 109; grifo nosso). O que se deve esperar do analisante como efeito de sua análise: “o que deve restar de sua fantasia?” (p. 108). É a castração que se deve aceitar no último termo da análise, “qual deve ser então, o papel da cicatriz da castração no Eros do analista?” (p. 109).

No Discurso à Escola Freudiana de Paris, de 1967 (In: Outros Escritos, 2003), Lacan precisará que o desejo do analista é ato, e que é de outro lu- gar, unicamente do ato psicanalítico, que é preciso situar o que se articula sobre o desejo do analista (cf. p. 276) e que, o ato analítico é o ato em que o analisante se torna analista. Talvez não seja demais lembrar que o ato se verifica por suas consequências e que, pela própria lógica do ato, se articula entre um antes e um depois.

Para finalizar, podemos afirmar que o desejo do analista só pode ser articulado a partir de um sem saída, de um impasse onde se coloca para o sujeito sua ética. Penso que é só a partir desse encontro com um real impossível de dizer que o desejo do analista pode advir.

Pergunto-me se a correção do ensino dada pela experiência não seria a reedição na experiência, desse novo encontro, essa passagem, essa saída do universal para o singular na própria experiência, onde cada um dos mem- bros da comunidade de Escola é convocado a percorrer a partir do passe.

5 Na tradução usada na referência encontramos o termo “interessado”, mas tomamos a li- berdade de traduzir pelo termo correto, que é “implicado”.

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efeRências

:

APARICIO, S. Verificar um desejo. In: Wunsch no 10, janeiro 2011 –

Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

LACAN, J. (1960-1961). O seminário, livro 8: A Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamen- tais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

LACAN, J. (1964). O seminário, livro 12: Problemas cruciais da psicaná- lise. Lição de 05/05/65. Inédito. Publicação para circulação interna do

Centro de Estudos Freudianos do Recife. Outubro, 2006.

LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LACAN, J. O Aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

LACAN, Jacques. Nota Italiana. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder.

In: Escritos.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LACAN, J. (1967). Discurso à Escola Freudiana de Paris. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

LACAN, J. (1967). Primeira versão da “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, Anexos, p. 571.

LOMBARDI, G. Rumo ao dispositivo do passe efetivamente praticável. In: Wunsch no 8, 2010 – Boletim Internacional da Escola de Psicanálise

dos Fóruns do Campo Lacaniano.

MONCENY, J. Sobre a certeza do fim. In: Wunsch no 10, janeiro 2011 –

Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

PASCUAL, C. Cada passante encontra sua solução. In: Wunsch no 8,

2010 – Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

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