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Capítulo IV – Novos Rumos Epistemológicos Para as Ciências da Religião

4.1. Análise Funcional em Nietzsche

Como já tivemos oportunidade de demonstrar, o projeto de transvaloração não pode ser em nenhum momento confundido com um mero ateísmo, por isso, Nietzsche não trata à religião como uma “coisa em si”, passível de ser analisada isoladamente. Sua transvaloração visa a cultura de forma geral e, só secundariamente a religião como um dos elementos da cultura, pode ganhar relevo em seu estudo genealógico.

Assim sendo, quando falamos de uma análise funcional da religião em Nietzsche, devemos ter em mente que tal análise aplica-se não só à religião, como também a tudo aquilo que confere sentindo ao mundo, isso porque, em sentido estritamente nietzschiano, a religião é apenas mais uma forma cultural de conferir sentido a algo que em si nenhum sentido tem.

Com o termo “função”, queremos dizer que toda “ficção cultural” tem um propósito pautado na lógica sistêmica que lhe dá sustentação, porém, com isso não devemos pensar na “ficção religiosa em si”, a mesma, só se concretiza como ideação a partir de uma funcionalidade que lhe ampare. Nietzsche esclareceu isso, mas seguintes palavras:

… todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma “coisa”, um órgão, em uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas nem precisam estar relacionado entre si, antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente casual (Nietzsche, 2004, p.66).

A função não é uma “coisa”, como Nietzsche diz, é antes um “indício“ de certa qualidade relacional, uma espécie de sintoma que indica de forma indireta certa hierarquia de forças. Portanto, uma função não é uma coisa imutável, ao contrário, como a funcionalidade é determinada pela disposição dos elementos

significantes de uma dada malha cultural, ela ganha sentido de função apenas situada no âmbito dessa virtualidade significada historicamente. Em outras palavras, o sentido de uma crença cultural é o sentido que ela ocupa em certa estrutura histórico-temporal.

Para determinar a função de certas ideias ou valores, o filósofo usou aquilo que ele mesmo chamou de “método genealógico”. Diferente do método histórico- comparativo que existia em sua época, o método genealógico nietzschiano não visava chegar à “essência” das coisas, sua genealógica não buscava a “verdade”, mas sim, buscava desvelar as “interpretações” construídas historicamente. A própria ideia de “história” é redimensionada no âmbito de seus esforços genealógicos, em sua análise histórica, o dualismo “essência” e “aparência” já não tem sentido. Ele já não se guia em busca de uma interpretação inquestionável da história, para ele a história é um bojo de ficções articuladas com um propósito interno de “mais-poder”, por isso, não existe de fato a “história verdadeira”, o único substrato incondicionado seria a vontade de poder que anima certas ficções, não propriamente a “ficção em si”, esta seria em última estância só “aparência”.

O filósofo francês Michel Foucault, refletindo sobre o novo método proposto por Nietzsche, explica qual diferença da nova genealogia nietzschiana em comparação com a pesquisa da origem do método histórico clássico, sobre isso podemos ler:

Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões a pesquisa da origem (ursprung)? Por que, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si [...] é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira (Foucault, 1990, p. 17).

Segundo Michel Foucault, a pesquisa da origem seria uma tese essencialista, daí o pesquisador ainda contar com a ideia de uma “verdadeira última”. Como explicou Foucault, Nietzsche encontrava-se bem longe deste viés, o filósofo alemão não queria com seu método “desmascarar” a história, afinal, para ele, só existiam de fato “máscaras”. Ele não buscava com sua genealogia saber se a ficção era

“verdadeira” ou “falsa”, em sua visão qualquer juízo de valor dependia das condições de vida e, por isso, nenhum valor ou ideia sobre a vida é fixa, o valor, como uma “ficção orientadora”, era para ele um sintoma de uma espécie determinada de vida.

Foucault ainda no âmbito da diferenciação entre o “historiador essencialista” e o “genealogista”, teceu o seguinte comentário sobre estes distintos métodos:

Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mais o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. [...] fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto, partir em busca de sua “origem”, negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história; será, ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atenção escrupulosa a sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro; não ter pudor de ir procurá-las á onde elas estão [...] deixar-lhes o tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob sua guarda (Foucault, 1990, pp. 17-19).

Uma “crença”, pelo viés da genealogia nietzschiana, não se explica propriamente pela sua origem, mas sim pela fixação que ganha funcionalmente dentro de certa rede de “sentido” cultural. Porém, Foucault no trecho acima apresentado, analisando o pensamento Nietzschiano, evidencia que a ordem do “sentido” não se faz pela “natureza das coisas”. A disposição dos elementos ficcionais depende de uma construção histórica que a justifique, assim, poderíamos dizer, que sem um “cenário” às máscaras isoladas (valores) perderiam todo seu “sentido”.

Daí o genealogista, diferente do metafísico, que busca o verdadeiro “ser” das coisas, se contentar com a recomendação nietzschiana: [...] “não existe um tal substrato; não existe “ser” por trás do fazer, do atuar, do devir; “o agente” é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo (Nietzsche, 2004, p. 36).

Devemos perceber neste curto fragmento apresentado, que Nietzsche diz que atrás de uma ficção só existe certo exercício da força, portanto, o valor não oculta o “ser verdadeiro”, é apenas uma máscara para vontade de Poder.

Aplicando esta noção genealógica ao estudo das religiões, somos levados a visão metodológica inicial que reduz todas as crenças religiosas a meras ficções culturais; segundo o viés nietzschiano, as mesmas seriam representações do impulso primário por poder, ou em outros termos, são medidas ficcionais que visam o controle e a exteriorização de certos impulsos.

Assim, uma ideia religiosa não seria valorizada pelo indivíduo por causa de sua “veracidade”, mas sim, por mostra-se “útil” dentro de certa perspectiva de controle; mesmo que esse controle seja ilusório. Em outras palavras, a crença religiosa é uma maneira de lidar com nossas muitas inseguranças existenciais, uma forma de manipular fantasisticamente o imponderável.

Esse “utilitarismo psíquico”, ligado às crenças religiosas, foi profundamente estudado por antropólogos que conviveram com selvagens, entre estes, o trabalho de campo realizado por Malinowsky, se afigura ainda hoje como um importante referencial nesta área de pesquisa.

Ao falar de sua experiência nas ilhas Trobriand, Malinowsky explica que os selvagens reservaram o uso da magia às tarefas mais difíceis de seu cotidiano. Por isso, quando às técnicas racionais, o treinamento e os instrumentos reais falhavam, ou pelo menos se mostravam limitados para execução de um trabalho, normalmente recorriam à magia, daí sua observação:

É curiosos notar que, no que se refere à pesca na lagoa, em que o homem pode confiar absolutamente no seu conhecimento e perícia, a magia não existe, ao passo que na pesca em pleno mar, cheia de perigos e incertezas, encontramos já um vasto ritual mágico para garantir segurança e bons resultados (Malinowsky, 1984, p. 32)

Neste curto fragmento o antropólogo enfatiza o valor pragmático da crença mágica, os ritos, sortilégicos e rezas, não visavam uma adoração sem valor prático, tais práticas eram uma medida mágica de controle.

Usando outra situação limite, o mesmo antropólogo escreveu:

E mais uma vez, na guerra, os nativos sabem que a força, a coragem e a agilidade desempenham um papel decisivo. No entanto, também neste campo praticam a magia, a fim de dominarem os elementos do acaso e da sorte (Malinowsky, 1984, p.32)

Ao enfrentar a imensurabilidade fenomênica do mundo que o cerca, nem sempre os recursos instrumentais são suficientes para fazer o vivente sentir-se seguro, por esse motivo, como bem ilustrou o pesquisador supracitado, a crença num poder invisível que nos assessora, desde os primórdios da humanidade mostrou-se como uma valiosa defesa contra a ansiedade.

Frente a esse grande valor instrumental, Malinowsky chegou a seguinte conclusão sobre tais crenças mágicas:

A função da magia é ritualizar o otimismo do homem, enaltecer a sua fé no triunfo da esperança sobre o medo. A magia exprime para o homem o maior valor da confiança em relação à dúvida, da firmeza em relação à indecisão, do otimismo em relação ao pessimismo. [...] sem o seu poder e orientação [da magia], o homem primitivo não poderia ter superado como superou as suas dificuldades de ordem prática, assim como não poderia ter progredido para estádios de cultura mais avançados. (Malinowsky, 1984, p.93)

Em sua análise “funcionalista” sobre a magia, semelhante a Nietzsche, o antropólogo reconhece o valor funcional das crenças mágicas, portanto, indiferente delas serem “verdadeiras” ou “falsas”, elas surgem como um desdobramento imaginário da ânsia interna de poder.

Por meio da magia e, depois pela sua sucessora, a religião, o homem conseguiu aperfeiçoar sua ação no mundo, a crenças mágicas e religiosas conferiram um ar de familiaridade ao mundo, com isso o homem primitivo conseguiu combater razoavelmente suas múltiplas inseguranças existenciais.

Tratando desta questão da “projeção” que o homem realizou através do ideário mágico-religioso, o antropólogo Lévi-Strauss em seu livro O Pensamento Selvagem, pode escrever:

[...] num certo sentido, pode-se dizer que a realidade consiste em uma humanização das leis naturais e a magia em uma naturalização das ações humanas – tratamento das ações humanas como se elas fossem uma parte integrante de determinismo físico – não se trata dos termos de uma alternativa ou das etapas de uma evolução. O antropomorfismo da natureza (em que consiste a religião e o fisiomorfismo do homem pelo qual definimos a magia) formam dois componentes sempre dados e cuja dosagem apenas varia. [...] não existe religião sem magia, nem magia que não contenha pelo menos um grão de religião (Lévi - Strauss, 2002, p. 247)

Na visão de Lévi-Strauss, tanto o fisiomorfismo da magia (com a ilusão de que o mundo e seus variados fenômenos são uma espécie de extensão da estrutura fisiológica humana), como também o antropomorfismo religioso que humaniza o mundo através da projeção de sua moral, são recursos habituais do homem durante todo seu trajeto histórico, ao contrário de um processo de estranhamento, pelas ideações mágico – religiosas tornamos o universo um lugar acessível aos nossos desejos.

Portanto, a verdadeira “lógica” do desejo não é estruturada pela busca da “verdade”, no pensamento mágico – religioso o homem se projeta como o “dono” ou “senhor” do mundo, assim sendo, a vontade de encontrar sua “própria vontade” como núcleo de regência para os fenômenos do mundo, ora, se realiza mais diretamente na magia, ora, se realiza indiretamente pelo deslocamento de nossa potência para os deuses.

Consonante à visão proposta modernamente por Lévi-Strauss, Nietzsche num fragmento póstumo já havia comentado que:

Todo orgânico que “julga” age como o artista: ele cria um todo a partir de estímulos e excitações, deixa muitas particularidades de lado e cria um simplificatio, expõe e afirma sua criação como ente. O lógico é o próprio impulso, que faz com que o mundo transcorra logicamente e de acordo com nosso julgamento (Nietzsche, 2005, p. 174).

Como um artista, que através de sua obra confere um sentido “belo” para as coisas, o homem se projeta “artisticamente” (usando a metáfora nietzschiana), conferido assim, um sentido humano para o mundo. Para o filósofo, a verdadeira lógica deste mundo humanizado não estaria no próprio mundo, e sim no olhar daquele que flerta com o mesmo.

Desta maneira, na visão de Nietzsche, “todo orgânico que julga” acaba por ultrapassar a organicidade do mundo sensível, com isso o “sensível” torná-se “inteligível”, algo dotado de propósito moral.

Falando sobre essa dotação teleológica, estranha aos fenômenos naturais, usando o exemplo da leitura mágico – religiosa em relação ao anômico fenômeno da morte, feita pela primitiva tribo dos azande, o antropólogo Evans-Pritchard faz um comentário que vem corroborar a ideia nietzschiana, ele escreveu:

… a morte não é somente um fato natural - é também um fato social. Não se trata simplesmente de um coração ter parado de bater, e dos pulmões não mais bombearem ar para o interior de um organismo; trata-se também da destruição de um membro de uma família e grupo de parentesco, de uma comunidade e uma tribo. A morte leva à consulta de oráculos, à realizações de ritos mágicos e à vingança – dentre todas as causas da morte, a bruxaria não exclui o que nós chamamos de “causas reais”, mas superpôe-se a estas, dando aos eventos sociais o valor moral que lhe é próprio (Evans-Pritchard, 2005, p. 55).

Neste exemplo oferecido pelo antropólogo, percebemos embrionariamente como a ideação mágico-religiosa é importante, não só ao indivíduo, como também para todo grupo social. O fenômeno angustiante da morte é “socializado” na bruxaria, independente das causas fisiológicas reais, causas estas que não são totalmente desconsideradas, como explicou o pesquisador, acha-se magicamente por meio da bruxaria uma intencionalidade humana para a ocorrência, assim, aquilo que é apenas um fenômeno biológico, é transformado num “fenômeno moral”.

Isso se ajusta perfeitamente à perspectiva nietzschiana que ensina:

… a ordem da finalidade já é uma ilusão. Enfim, quanto mais superficial e mais grosseiramente for resumido, mais o mundo parecerá valioso, determinado, belo e significativo. Quanto mais profundamente olharmos dentro dele, tanto mais desaparecerá nossa apreciação. A falta de significado se aproxima! Fomos nós que criamos o mundo que tem valor! (Nietzsche, 2005, pp. 180-181).

Fundamentalmente a argumentação nietzschiana reduz a “zero” qualquer propósito “natural” do homem. Toda teleologia seria neste caso uma “ilusão” culturalmente criada. Em consequência disto, as crenças religiosas que falam de um “absoluto ordenador”, nada mais seriam do que a vontade humana de achar “sentido” nas coisas do mundo.

Porém, se é verdade que Nietzsche recorrentemente aponta para esse “vazio de sentido” como a face real do mundo, ele não deixa também de frisar repetitivamente que às “faces” ilusórias que criamos para o mesmo, são de certa forma úteis, às custas deste falseamento nos preservamos da falta de significado da existência. Isso é dito com todas as letras, da seguinte maneira por Nietzsche:

Que o valor do mundo está na nossa interpretação [...] que as interpretações existentes até agora são avaliações de perspectiva, em virtude das quais nos conservamos na vida, ou seja, na vontade de poder, de crescimento do poder; que toda elevação do homem traz consigo a superação de interpretações estreitas, que todo fortalecimento alcançado e toda ampliação de poder abre novas perspectivas e acredita em novos horizontes: tudo isso passa por meus escritos. O mundo que nos importa em certa medida é falso, ou seja, não é um estado de coisas, mas o resultado da invenção e do arredondamento de uma escassa soma de observações; ele se encontra no “fluxo” como algo que se transforma, como uma falsidade que está sempre se deslocando, que nunca se aproxima da verdade; pois não existe “verdade” alguma (Nietzsche, 2005, pp. 223-224).

Podemos perceber nitidamente o aspecto funcionalista da tese nietzschiana nas palavras acima. Em sua genealogia dos valores, embora tome como princípio epistemológico norteador, a idéia de que não existe nenhum valor “em si”, ele não descarta a idéia de que tais “ficções” são necessárias para a vida humana, até o contrário, ele afirma que o mundo que verdadeiramente nos interessa é o “falso”, isto é, para vivermos precisamos “inventar” um mundo onde as coisas façam sentido.

Mas isso, como já dissemos, só ocorre dentro de uma estrutura que signifique as coisas (na verdade as ideias sobre as coisas), nunca ocorrendo isoladamente a partir da própria “coisa”:

As propriedades de uma coisa são efeitos sobre outras ”coisas”: se abstrairmos as outras “coisas”, uma coisa deixa de ter propriedades, ou seja, não há uma coisa sem as outras, o que significa que não há uma “coisa em si” (Nietzsche, 2005, p.221).

Segundo essa regra metodológica enunciada por Nietzsche, tudo que ganha sentido, só ganha por meio de uma cadeia valorativa que (lhe confira tal sentido e, ao aplicarmos este princípio às idéias religiosas, entendemos que semelhantemente ao que ocorre com outras ideias criadas pela cultura, as mesmas só se fixam após o procedimento de controle e legitimação que as tornam funcionais.

Com isso estamos dizendo que toda ficção cultural (isto inclui essencialmente as ideias religiosas), cumpre um propósito dentro de determinada malha social, embora uma crença nunca exista “em si” por força da natureza, seria um grave erro desconsiderar seu valor funcional. Tudo aquilo que os homens criaram em seu

variado universo simbólico, cumpre inicialmente a missão de “um sentido provisório para existência”.

Próximo da visão nietzschiana, que explica que o “valor” que conferimos as coisas, visa retroalimentar ilusoriamente uma noção confortadora de um mundo cheio de “sentido”, os sociólogos Thomas Luckmann e Peter Berger, falando do valor integrador do universo simbólico humano, escreveram:

O universo simbólico oferece a ordem para a apreensão subjetiva da experiência biográfica. Experiências pertencentes a diferentes esferas da realidade são integradas pela incorporação ao mesmo envolvente universo da significação. [...] Esta função nômica do universo simbólico para a experiência individual pode ser definida de maneira muitos simples dizendo que “põe cada coisa em seu lugar certo” (Berger e Luckmann, 1983, p.134-135).

Para que existamos individualmente e coletivamente, temos que criar um universo valorativo, que bem mais do que “algo integrado”, seja um instrumento “integrador” em nossas vidas, é impossível ao homem passar sem esse “falseamento”. No campo integrativo das ilusões culturais, achamos um sentido para nossa permanência no mundo.

É lógico que quando falamos do aspecto “funcional” da ilusão e, mais especificamente a ilusão religiosa, devemos entender que o “tipo” de ilusão (ou facilitadora, ou o oposto disso, dificultadora, da manifestação da vontade de poder), não é a coisa mais importante, afinal, essa característica crítica é o segundo movimento da genealogia nietzschiana, embora, tenhamos que reconhecer que a análise “funcional” e “crítica”, são faces distintas de um mesmo método de “desconstrução epistemológica”.

Portanto, ao tratar a “ilusão” como um fenômeno existencial necessário à conservação da vida humana, Nietzsche sob o aspecto funcional, reconhece que mesmo a ficção religiosa é um instrumento imaginativo da vontade de poder, por isso, ao se referir ao “sacerdote ascético”, criador natural das ilusões metafísicas, tece o seguinte comentário: [...] este sacerdote ascético, este aparente inimigo da vida, este negador-ele exatamente está entre as grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida... (Nietzsche, 2004, p.110).

Como para Nietzsche “… o mundo aparente” é o único: o „mundo verdadeiro‟ é apenas acrescentado mendazmente... “(Nietzsche, 2006, p.26), toda ficção

cultural, mesmo aquela mais deletéria, é a manifestação de certa vontade de poder. O que difere qualitativamente e quantitativamente, nada tem haver com o fato de ser verdadeira ou falsa (afinal toda visão de mundo é para Nietzsche uma falsificação do real), mas sim, com o fato de promover mais ou menos a vida.

Indiferente da ilusão que usamos para viver, a preservação de um campo ilusório interno é vital para a experiência cultural, neste sentido poderíamos dizer que nossa sanidade depende de certa capacidade de nos “auto-iludirmos”. Neste contexto nietzschiano, o termo “auto-ilusão”, escolhido por nós para sintetizar a maneira funcionalista de encarar uma “ficção”, não tem uma conotação pejorativa, estamos apenas com isto querendo dizer que o ser humano depende de certa