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Por uma autopsia do sagrado: o anúncio da morte de Deus como princípio hermenêutico de entendimento de uma possível teoria da religião em Nietzsche

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA

Programa de Pós-Graduação de Ciências da Religião

Por Marcos de Oliveira Silva

POR UMA AUTÓPSIA DO SAGRADO

O ANÚNCIO DA MORTE DE DEUS COMO PRINCÍPIO HERMENÊUTICO DE ENTENDIMENTO DE UMA POSSÍVEL TEORIA DA RELIGIÃO EM NIETZSCHE.

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MARCOS DE OLIVEIRA SILVA

POR UMA AUTÓPSIA DO SAGRADO

O ANÚNCIO DA MORTE DE DEUS COMO PRINCÍPIO HERMENÊUTICO DE ENTENDIMENTO DE UMA POSSÍVEL TEORIA DA RELIGIÃO EM NIETZSCHE.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Quadros Gouvêa

São Paulo 2012

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

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MARCOS DE OLIVEIRA SILVA

POR UMA AUTÓPSIA DO SAGRADO

O ANÚNCIO DA MORTE DE DEUS COMO PRINCÍPIO HERMENÊUTICO DE ENTENDIMENTO DE UMA POSSÍVEL TEORIA DA RELIGIÃO EM NIETZSCHE.

Aprovada em __/___/___

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Quadros Gouvêa

Universidade Presbiteriana Mackenzie (Orientador)

______________________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo F. de Souza

Universidade Presbiteriana Mackenzie

______________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Betlinski

Universidade Federal de Lavras

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

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S586p Silva, Marcos de Oliveira

Por uma autopsia do sagrado: o anúncio da morte de Deus como princípio hermenêutico de entendimento de uma possível teoria da religião em Nietzsche / Marcos de Oliveira Silva – 2012.

224 f. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Quadros Gouvêa Bibliografia: f. 217-222

1. Morte de Deus 2. Valores morais 3. Transvaloração I. Nietzsche,

Friedrich Wilhelm II. Título LC BT83.5

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SUMÁRIO

Resumo...04

Abstract...05

Introdução...06

Capítulo I Para Muito Além do Ateísmo...09

1.1. O Declínio da Moral Cristã e a Verdadeira Face do Mundo...14

1.2.Transvaloração e Morte de Deus...20

1.3. Metafísica Cristã Como Modelo de Degeneração Instintual...26

1.4. Do Ideal Ascético à Prática Ascética...37

Capítulo II É Possível um Mundo Sem Deus?...63

2.1.O Ateísmo Antropológico...73

2.2. Deus Continua Morto?...93

2.3. Uma Espiritualidade Sem Deus...99

2.4. O Mal-Estar na Teologia...116

2.5. Os Efeitos Silenciosos da Secularização...122

Capítulo III Uma Nova Metafísica, Demasiadamente Humana...134

3.1. Um Profeta Sem Deus...140

3.2. A Metafísica da Vontade de Poder...149

3.3. O Eterno Retorno na Metafísica Nietzschiana...156

3.4. Uma Religiosidade Transvalorada...165

Capítulo IV Novos Rumos Epistemológicos Para as Ciências da Religião..181

4.1. Análise Funcional em Nietzsche...187

4.2. Análise Crítica em Nietzsche...197

4.3. A Operacionalidade da Suspeita...207

Considerações Finais...213

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Resumo

A presente dissertação visa analisar a estrutura hermenêutica por detrás do anúncio Nietzschiano da morte de Deus. Objetivamos examinar como esta síntese enunciativa prenunciou o nascimento de uma nova era valorativa e, a partir de tal exame, buscaremos revelar as raízes histórico-filosóficas que favoreceram a angustiante constatação da morte de Deus. Nas páginas que se seguem, além de estudarmos o fim do predomínio universal da moral religiosa no mundo ocidental, intentamos evidenciar uma possível religiosidade "não-teológica" em Nietzsche, ao fazermos isto, visamos mostrar como o filósofo alemão ressignificou a noção de "sagrado" no âmbito de sua transvaloração de todos os valores. Acreditamos que, ao contextualizar e ao mensurar razoavelmente as consequências do anúncio da morte de Deus, perceberemos que a síntese Nietzschiana vai muito além de um ateísmo vulgar. Na verdade, mais do que uma mera negação, Nietzsche sempre ambicionou a criação de uma nova maneira de interpretar o mundo e, de certa forma, isto implica no surgimento de uma nova metafísica demasiadamente humana. Em suma, ao contrário do anúncio da morte de Deus nascer de um desejo vingativo, em Nietzsche ele é apenas a constatação de que o homem contemporâneo precisa superar o declínio moral de nossa época às custas de novos valores baseados em seus interesses terrestres.

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Abstract

The actual dissertation aims to analyse the hermeneutic structure behind the Nietzsche‟s announcement of God‟s death. We aim to exam how this enunciative synthesis

foreshadowed the birth of a new evaluative time and, from this exam, we aim to revel the

historic and philosophical roots which favored the distressing finding of God‟s death. In the

sequential pages, we study the ending of the universal dominance of religious morality in the Western world, and we aim to evidence the possibility of a “not theological” morality into

Nietzsche‟s thinking. In doing so, we aim to show how the German philosopher “re-meant”

the “holy” definition in the scope of his transvaloration of all morality values. We believe

contextualizing and measuring reasonable the consequences from the announcement of

God‟s death the Nietzsche‟s synthesis goes beyond a low atheism. Really, more than a

simple denial, Nietzsche always aimed to create a new way to understand world and, in a

certain meaning, it implies the birth of a new metaphysics “too human”. In short, the God‟s death isn‟t the birth of a vindictive desire. In Nietzsche‟s knowledge it‟s only the meaning that

contemporary man needs to overcome the moral decline of our time trying new moral values based on his world interests.

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Introdução

Depois de mais de cem anos do anúncio da morte de Deus, ainda nos é necessário discutir o que tal evento significou para o mundo moderno. Segundo o viés interpretativo resumido neste polêmico enunciado, a própria noção de nascimento da modernidade só é possível de ser pensada após a morte de uma “época caduca” e, em sentido puramente nietzschiano, “Deus” era sinteticamente a representação de tudo aquilo que devia perecer, para só então um “novo mundo” nascer.

Em Nietzsche, o verdadeiro nascimento do mundo não é precedido pelo nascimento mítico de um salvador, mas sim pela morte agonizante de um Deus atacado violentamente pelos seus antigos adoradores; através desta metáfora funesta o filósofo alemão marca a reviravolta do pensamento ocidental, com ele aprendemos a suspeitar profundamente de nossas sagradas “certezas metafísicas”.

O filósofo alemão representou no universo filosófico uma espécie de desbravador, alguém destinado a conquistar novas terras nunca antes alcançadas; com Nietzsche ingressamos em uma nova fase de pensamento, semelhante ao viajante que ao se distanciar muito de seu ponto de saída, vê-se obrigado a continuar a caminhar sempre para frente, em busca de novos territórios, o homem moderno não pode mas regressar ao seu passado, com o anúncio da morte de Deus o pensador alemão conduziu-nos aos confins do nada, essa nova senda indicada por Nietzsche representou historicamente um momento de ultrapassagem, momento este que recorrentemente ele chamou de: Niilismo.

Porém, ao estudarmos a noção de niilismo em Nietzsche, e especialmente no contexto histórico do final do século XIX, quando ocorreu aquilo que o filósofo chamou de “Morte de Deus”, percebemos diversas implicações oriundas desta “simples palavra”, muitos dos interpretes e comentadores como Martin Heidegger, Gianni Vattimo, Gilles Deleuze, entre outros, destacaram a grande complexidade da questão polissêmica do uso deste vocábulo no universo conceitual do pensador alemão, muitas vezes uma ambiguidade desconcertante costuma acompanhá-lo.

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Ainda neste capítulo destacaremos como a crítica nietzschiana estendeu-se para além de um mero ateísmo; embora a ilusão religiosa seja usada pelo filósofo de forma emblemática, sua crítica visa atingir todo nosso universo valorativo ocidental, portanto, não só a religião, como também toda nossa maneira de conceber o mundo é questionada. Analisaremos no primeiro capítulo as principais críticas feitas ao cristianismo por Nietzsche e, ao realizarmos tal exame, logo perceberemos a amplitude multifocal da empreitada nietzschiana.

Sua maneira ácida de tratar a religião e, entre essas, de forma toda especial o cristianismo, é uma verdadeira desconstrução do edifício teorético da metafísica; seu ateísmo é usado como uma “lente” focalizadora no exame meticuloso do sagrado. Esta nova postura em relação a religião (isso incluí todos os nossos ideais civilizatórios considerados sagrados), é considerada a marca definitiva da chamada “modernidade”; com Nietzsche o vazio de sentido que pairava sobre a humanidade, pôde enfim manifestar seu terrível rosto anômico.

No segundo capítulo de nossa dissertação, visamos mensurar como a “Morte de Deus”, ou seja, o declínio de todos nossos maiores valores civilizatórios, ainda repercute no chamado mundo “pós-moderno”; neste capítulo tentaremos entender como num mundo laico, paradoxalmente abriu-se campo a uma certa persistência do sagrado, ou em outros termos: se Deus está morto, procuraremos entender como a religião ainda se sustenta, visto que sua essência foi aparentemente esvaziada.

Objetivamos neste capítulo examinar três tendências básicas oriundas reativamente do evento simbólico chamado por Nietzsche de “Morte de Deus”: a superação positivista pensada pelo materialismo clássico, a reinterpretação do fenômeno religioso em termos laicos, promovida pelo materialismo humanista e a tentativa de reconstrução teológica em termos mais adaptados ao pensamento pós-moderno.

Para o exame das duas primeiras tendências, usaremos as perspectivas multifacetadas de autores contemporâneos como Luc Ferry, Marcel Gauchet, Michel Onfray, André Comte-Sponville e Richard Dawkins. No pólo contrário dos “novos materialistas”, usaremos a “nova teologia” de autores como Paul Ricoeur, Karen Armstrong, René Girard e Gianni Vattimo.

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pós-modernidade, bem como, tentaremos mensurar, quais as consequências mais evidentes da grande crise espiritual iniciada no final do século XIX.

No terceiro capítulo da presente dissertação, visamos analisar uma possível teoria da religião em Nietzsche, ou, para sermos mais exatos, como o filósofo alemão reinterpretou em termos terrenos as antigas promessas e expectativas supra-terrenais da religião. Neste momento de nosso trabalho, deverá ficar evidente toda positividade da teoria nietzschiana, analisando essencialmente o “Zaratustra” de Nietzsche, esperamos demonstrar que a destruição à base de marteladas, tão bem executada pelo pensador anticristão, não visava apenas demolir o antigo, muito mais do que isso, visava facultar o nascimento do novo. Ao contrário de aprisionar o homem no pessimismo, a tese nietzschiana surgiu como opção filosófica positiva, por isso, semelhante ao filósofo Heidegger, cremos que mais do que uma destruição metafísica sem propósito, Nietzsche inaugurou uma nova vertente metafísica, porém no lugar de um ilusório mundo supraempírico, colocou o mundo humano e sua principal base de sustentação: a vontade de poder.

Como último capítulo de nossa dissertação, esperamos abrir espaço para uma discussão sobre o papel da tese da morte de Deus no âmbito das ciências da religião, com isso, tentaremos analisar as diferentes compreensões neste novo campo de estudo, ao fazermos isso, buscaremos apontar novos rumos epistemológicos que favoreçam o estudo científico deste instigante tema.

O objetivo direto deste último capítulo não é outro senão o de avaliar como a tese nietzschiana favoreceu o estudo multidisciplinar do fenômeno religioso, tentaremos demonstrar que ciências como a antropologia, a psicanálise, a sociologia, a linguística, entre outras disciplinas mais recentes, foram beneficiadas e influenciadas pelas polêmicas ideias do filósofo alemão.

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Capítulo I

Para Muito Além do Ateísmo

"Por uma Autópsia do Sagrado: O Anúncio da Morte de Deus

como Princípio Hermenêutico de uma Possível Teoria da Religião

em Nietzsche"

Aqueles que pensam conhecer Nietzsche, segundo a faceta mais óbvia de sua ácida gnosiologia: o ateísmo, correm o grave risco, por causa do estreitamento monocular desta visão reducionista, de não entenderem as valiosas contribuições oferecidas pelo seu método histórico-genealógico, ao campo multifacetado das ciências da religião. Em sentindo real, ao estudarmos mais profundamente a vasta e complexa obra nietzschiana, logo desenvolvemos a impressão de que seu ateísmo é um meio e nunca um fim em si; ao contrário até deste enclausuramento ideológico determinista, o projeto nietzschiano se constrói como algo muito maior e ambicioso, seu viés ateísta, é, portanto, apenas um aspecto hermenêutico usado como pano de fundo, para entender uma disposição histórica que levaria a civilização ocidental a uma drástica alteração valorativa.

Mas afinal, o que teria levado o senso comum e, até mesmo grande parte de nossos acadêmicos, a vincularem emblematicamente toda proposta nietzschiana a mero ateísmo?

Provavelmente, parte deste preconceito, se deve ao fato do “anúncio da morte de Deus” ter sido precipitadamente interpretado como uma fala direta do próprio Nietzsche, quando na verdade, o filósofo é apenas o organizador de um enunciado que já se fazia ouvir subterraneamente em seu tempo.

A fim de constatar como a interpretação errônea de um dos mais conhecidos fragmentos nietzschianos, gerou um danoso truncamento interpretativo, é vital visitarmos diretamente o famoso aforismo intitulado “o homem louco”, texto este, onde Nietzsche expõe poeticamente o anúncio fatídico da morte de Deus. Sobre tal acontecimento ele escreveu:

– Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado e pôs-se a gritar

incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus”? – e como lá se

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navio? Emigrou? – gritavam e riam uns outros. (Nietzsche, 2001, p.147)

O homem louco pensado por Nietzsche lembra muito o filósofo cínico Diôgenes e, provavelmente inspirado em tal figura polêmica, Nietzsche quis evidenciar um clima de grande hipocrisia vivenciado por seus contemporâneos.

A semelhança entre os dois personagens pode ser facilmente evidenciada no fragmento onde o primeiro doxógrafo grego, Diôgenes Laêrtios, ao comentar sobre o filósofo cínico, escreveu: “Durante o dia Diôgenes andava com uma lanterna acesa dizendo: “Procuro um homem!”(Diôgenes Laêrtios, 2008,160). E ainda sobre sua maneira de clarificar a pouca disposição intelectual de seus patrícios, lemos o seguinte comportamento do cínico: [...] certa vez Diôgenes gritou: “atenção homens‟, e quando muita gente acorreu ele brandiu o seu bastão dizendo: “chamei homens, e não canalhas!” (Diogênes Laêrtios, 2008, p. 160)

O questionamento filosófico feito pelo cínico Diôgenes, semelhante ao questionamento estridente proposto pelo louco elucubrado por Nietzsche, visa uma resposta ”Moral” em ambos os casos, porém, no segundo caso, os canalhas são expostos superlativamente, afinal, se Diôgenes não conseguia achar nenhuma moral nobre entre os seus, a segunda personagem nem mesmo conseguiu encontrar o pretenso criador divino da moral.

Assim, embora os dois personagens análogos tenham um questionamento de teor moral, a razão de tal questionamento é em certo nível, bem diferenciada. Se Diôgenes foi capaz de revelar um grande vazio moral em seu tempo, o homem louco revelou o próprio vazio na qual a ideia de moral se assentava.

Essa diferenciação é a tônica da sequência do famoso aforismo sobre o anúncio da morte de Deus; não se deixando intimidar pelo evidente sarcasmo dos apáticos frequentadores do mercado, o homem insano prosseguiu em sua missão:

O homem louco se lançou para o meio deles e transpassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, "já lhes direi. Nós o

matamos – vocês e eu - somos todos seus assassinos” Mas como

fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as

direções? Existem ainda „em cima‟ e „embaixo‟? Não vagamos como

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temos que ascender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – Também os Deuses apodrecem” Deus está morto! Deus

continua morto! E nós o matamos! (Nietzsche, 2007, pp. 147, 148)

Segundo a lógica interna deste conhecido aforismo, a morte de Deus representava um momento singular na história humana. Em certo sentido, a mesma inaugurava uma época no mundo dos homens, aliás, deste momento em diante os homens se viram sós e desamparados no mundo. Desta forma, a morte de Deus reclamava necessariamente o nascimento de um novo homem.

A grandeza e, ao mesmo tempo, o grande risco envolvido nesta nova epopéia humana são descritos poeticamente na continuidade do aforismo em questão, onde lemos:

Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuía sagrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiratórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer digno deles? Nunca houve um ato maior- e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então! (Nietzsche, 2007, p. 148)

Muito mais do que um mero e vulgar protesto ateísta, o homem louco ambicionava ser o anunciador de um novo momento histórico vivenciado pelos homens, sua voz perturbadora indicava um movimento simbólico de ultrapassagem; ao falar de “uma história mais elevada que toda a história até então”, seu interesse era enfatizar quão singular era a experiência insólita da morte de Deus; nesta encruzilhada histórica, o homem poderia decidir ocupar positivamente a vacância da divindade, ou negativamente, sucumbir ao vazio criado pela morte da divindade.

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nova consciência que apontava para um vazio moral deixado paulatinamente pelo declínio religioso.

Porém, como já dissemos anteriormente, embora Nietzsche use uma metáfora ateísta para falar da crise moral que seu tempo vivenciava, seu objetivo não era demonstrar a fraqueza do “sentido religioso”, com a ideia da morte de Deus, ele anunciava uma nova época em que nenhum sentido se sustentava por si, ao questionar a razão da crença em Deus, praticamente todo céu de ideais sustentado pela nossa civilização desabou.

Certa ruptura com o passado se deu a partir da morte de Deus e, aplicando os princípios de seu método histórico genealógico, Nietzsche foi o primeiro filósofo contemporâneo a perceber que o homem nunca mais seria o mesmo; uma desconfiança crônica se implantou definitivamente em sua nova natureza mundana.

Comentando em seu trabalho Niilismo, Criação, Aniquilamento - Nietzsche e

a Filosofia dos Extremos, Araldi escreveu o seguinte sobre a postura desveladora do

filósofo alemão:

O evento decisivo da modernidade é a morte de Deus, que em sua conotação niilista, guia à ruína os valores da tradição que davam um sentido ao mundo. Para o filósofo alemão, esse tema não possui nem o significado de um enunciado metafísico sobre a existência ou não de um ser superior, nem é uma mera expressão literária ou uma figura estética. A morte de Deus é um evento longamente preparado e necessário no processo de moralização do mundo, que, por fim, ocasiona a derrocada da interpretação moral, que é assumida pelos homens modernos como perda total de sentido, abrindo um vazio em suas vidas desmundanizadas (Araldi, 2004, p.68)

Segundo o ponto de vista defendido por Araldi, o niilismo em seu aspecto positivo, surge na obra nietzschiana como uma singular abertura à modernidade. A metáfora sonora da morte de Deus foi um “evento longamente preparado e necessário”, assim, a quebra de um sentido metafísico absoluto para o mundo era um acontecimento inevitável. O mérito de Nietzsche não se apoiava portando, em uma mera negação da religião, mas sim, na aguda percepção de que o declínio da religião era um sintoma do declínio de nossas muitas certezas tradicionais.

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coisas não possuem valor algum em si próprias; a falta de fé no sobrenatural era um reflexo distorcido desta nova maneira de se conceber o mundo.

Diferente das velhas cartilhas doutrinais, que ensinavam que o maior de todos os pecados era a descrença em Deus, em Assim Falava Zaratustra, Nietzsche colocava na boca do protagonista os seguintes ensinamentos:

Exorto-vos, ó meus irmãos, a permanecerdes fiéis à Terra, e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças supraterrestre. São eles envenenadores, conscientemente ou não. São meros prezadores da vida, moribundos intoxicados de um cansaço da terra [...] Blasfemar contra Deus era outrora a maior das blasfêmias, mas Deus morreu [...] Agora o crime mais espantoso é blasfemar da terra e dar mais valor às estranhas do insondável do que ao sentido da terra. (Nietzsche, 2007, p.19)

Através destas belas palavras poéticas, Nietzsche diz que nesta nova época inaugurada pela constatação da morte de Deus, a verdadeira blasfêmia não é vociferar impropérios contra os céus, a nova e mais aviltante heresia é a revolta contra a terra; por isso, o cansaço dos menosprezadores representa neste contexto, um niilismo reativo onde o evento dramático na morte de Deus permanece inconsciente, essa nova percepção acha-se abafada pela apatia dos que fingem que ainda crêem em Deus. Tais indivíduos são “envenenadores” da vida autêntica. O filósofo alemão Heidegger, em seu famoso comentário sobre Nietzsche, escreveu o seguinte sobre a necessidade de positivação do niilismo deletério que rondava toda civilização ocidental:

A destruição dos valores supremos até aqui não emerge de mera busca de uma destruição cega e de uma vã renovação. Ela emerge de uma penúria e de uma necessidade de dar ao mundo o sentido que não o degrada a uma mera passagem para um além. É preciso surgir um mundo que torne possível aquele homem que desdobra a sua essência a partir de sua própria plenitude valorativa. Para tanto, contudo, carece-se uma transição, da travessia de uma conjuntura na qual o mundo parece desprovido de valor, mas que exige ao mesmo tempo um novo valor. A travessia do estado intermediário precisa perceber esse estado como tal da maneira mais consciente possível: Para isso é necessário reconhecer a proveniência desse estado intermediário e trazer à luz a causa primeira do niilismo. É somente a partir dessa consciência no estado intermediário que emerge a vontade decisiva de sua superação” (Heidegger, 2007

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De acordo com Heidegger, a superação do ambiente de penúria que se abateu sobre o homem, a partir da clara percepção da derrocada de nossos mais nobres valores, só seria possível ao nos tornarmos plenamente conscientes de sua verdadeira causa. Como é dito no texto supracitado, o niilismo, ou seja, a “destituição dos valores supremos”, não precisa ser o fim da linha, ao contrário, Heidegger ressaltava que o anúncio da morte de Deus em Nietzsche representava mais uma transição de que propriamente um fim, o mundo agora desprovido de um valor transcendental ganha novos contornos valorativos, sobrando só o homem, neste novo cenário inicialmente lúgubre, o mesmo precisa agora se reinventar, segundo uma lógica soberanamente humana.

Dentro desse contexto singular, tomar consciência do vazio deixado pela morte de Deus, segundo a crítica nietzschiana, é a condição básica para reorganização do mundo nessa nova fase histórica, afinal o próprio Nietzsche deixa claro a amplitude nesta vacuidade moral ao levantar a questão: O que significa o niilismo? Como resposta temos: “–Que os valores supremos desvalorizam-se. Falta o fim; falta a resposta ao “por quê?”‟ (Nietzsche, 2008, p.29)

Segundo a lógica interna deste fragmento, com o niilismo radical pensado a partir do século XIX, o valor teleológico dado à metafísica religiosa cessa, com isso, o novo homem, ainda um tanto acabrunhado pela atormentadora notícia da morte de Deus, precisa reunir forças para executar sua nova e pesada tarefa.

1.1. O Declínio da Moral Cristã e a Verdadeira Face do Mundo

Sob o título O Niilismo Europeu, Nietzsche tenta descrever sucintamente o avanço histórico de uma nova consciência mundana e, no âmbito deste novo cenário desprovido de essencialidade metafísica, começa seu trajeto literário através de dois pólos epistemológicos, o primeiro aparece em tom de alerta e, o segundo é retoricamente construído como uma oportuna pergunta: “O niilismo está à porta: de onde nos vem esse mais inquietante de todos os hóspedes?” (Nietzsche, 2008, p.27).

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metafísica que serviam até então como bússola moral; fazendo uso da bela figura de linguagem usada pelo filósofo, o niilismo não tardaria, como um hóspede perturbador, em logo se infiltrar no mais profundo de nossas mentes.

Explicando o uso amplo do termo niilismo em Nietzsche, Heidegger tece os seguintes comentários esclarecedores:

Para Nietzsche [...] O nome “niilismo” significa essencialmente “mais”. Nietzsche fala do “niilismo europeu”. Ele não tem em vista,

com isso, o positivismo emergente por uma volta da metade do século XIX e a sua propagação geográfica sobre a Europa;

“europeu” tem aqui uma significação histórica e diz tanto quanto “ocidental”, no sentido da história ocidental. Nietzsche emprega a

palavra “niilismo” como o nome para o movimento histórico por ele

reconhecido pela primeira vez que já transpassava de maneira determinante os séculos precedentes e que determina o seu próximo século, um movimento cuja interpretação essencial ele concentra na

sentença resumida “Deus está morto”. (Heidegger, 2007, p. 22).

Diferente de um ateísmo positivista, que coloca a ciência no lugar do Deus morto, o termo niilismo tem uma conotação muito mais radical; mesmo a razão científica, com todas as suas vantagens metodológicas, não poderia ser usada como uma nova metafísica do sentido. Por isso, ao interpretar Nietzsche, o filósofo Heidegger salienta que o termo niilismo nos textos nietzschianos implica na noção dinâmica de “mais”, ou seja, está palavra é a denúncia de uma nova postura existencial sempre aberta. O homem niilista é aquele que deve se habituar a um necessário vazio de sentido, assim, o niilismo é o indicativo de um “ir-além” que não tem compromisso com uma moldura final para existência.

Ainda neste contexto das implicações do termo niilismo em Nietzsche, em seu valioso comentário, Heidegger continua a esclarecer o que significa teoreticamente à fórmula Deus está morto; lemos:

Essa sentença quer dizer: O “Deus Cristão” perdeu o seu poder

sobre o ente e sobre a definição do homem. O “Deus Cristão” é ao

mesmo tempo a representação diretriz para o “supra-sensível” em

geral e para as suas diversas interpretações, para os ideais e para

as normas, para os “princípios” e as “regras”, para as “finalidades” e os “valores” que são erigidos “sobre” o ente a fim de “dar” ao ente na

totalidade uma meta, uma ordem e – como se diz de maneira sucinta

–um “sentido”. Niilismo é aquele processo histórico por meio do qual

o domínio “supra-sensível” se torna nulo e caduco, de tal modo que o

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do próprio ente: uma história por meio da qual a morte do Deus Cristão vem à tona de maneira lenta, mas irremediável. (Heidegger, 2007, p.22)

Para o filósofo alemão, a constatação ateísta de que o Deus Cristão estava morto era muito mais que um mero questionamento teológico. Na verdade, a morte de Deus era uma síntese enunciativa que visava declarar o quanto o homem estava distante do paradigma outrora oferecido pela religião.

Morte de Deus, neste contexto nietzschiano é sinônimo de “desorientação moral” que o mundo vivencia como o declínio do sagrado tradicional. É por isso que Heidegger sobre tal acabrunhamento existencial escreveu:

Se Deus morreu, enquanto fundamento supra-sensível e enquanto meta de tudo que é efetivamente real, seu mundo supra-sensível das ideias perdeu a sua força vinculativa, e sobre tudo a sua força que desperta e edifica, então nada mais permanece aqui o homem se possa agarrar, e segundo o qual se possa orientar (Heidegger, 1998, p. 251).

Como esclareceu Heidegger, a morte de Deus significa o fim do fundamento metafísico que apontava para o “supra-sensível” como foco organizador do “sensível terreno”, sem essa referência transcendental última, que, servia como medida para todas as coisas, o homem agora não pode apelar para nada maior que a sua própria capacidade valorativa.

No livro Nietzsche e a Escrita Moral, Mauro C. Simões, analisando a frase “Deus está morto”, a partir de um viés heideggiano, contextualiza da seguinte forma, o enunciado em questão:

A frase de Nietzsche “Deus está morto” afirma Heidegger, não deve

ser tomada como uma postura pessoal, atéia [...] A morte de Deus pode ser interpretada então, como o desaparecimento da noção de além. Ela é a supressão da crença em outro mundo, transcendente ao nosso, esse dualismo constitui um traço essencial e fundamental de nossa cultura. Essa depreciação do aqui e a valorização de um alhures podem se caracterizar naquilo que Nietzsche chamava de platonismo. (Simões, 2003, pp. 64-65)

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maneira de pensar a realidade, o mundo supra-sensível foi radicalmente abandonado como o referencial maior da “verdadeira existência”.

No final de seu comentário, Simões toca em uma questão muito importante para o entendimento de uma teoria da religião em Nietzsche. Na realidade, o pressuposto crítico que Nietzsche adota em relação à religião só é possível de ser entendido mais profundamente se levarmos em conta o dualismo referencial no qual a religião sustenta-se e, de maneira especial, a religião cristã.

No pensamento nietzschiano, o termo “Deus” é quase sempre um sinônimo de auto-engano, uma espécie de obnubilação intelectual, isso pode ser visto claramente num fragmento de O Anticristo, onde o filósofo alemão diz:

O conceito cristão de Céus [...] Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! Deus como fórmula para toda

difamação do “aquém”, para toda mentira sobre o “além”! Em Deus o

nada divinizado, a vontade de nada canonizada!... (Nietzsche, 2007, p. 23)

A canonização da vontade de nada, para Nietzsche, foi o cimento oculto usado pelo cristianismo na formatação de nossa cultura ocidental. Para ele, quando a religião apontava para o além, como meta maior de nossa existência, isso era na verdade um atentado vulgar contra o lado forte da vida. Portanto, em sentido nietzschiano, Deus era apenas uma bela máscara para o nada, no fundo, outro nome dado a tudo que é fraco e nos distancia da verdadeira vida.

Mas afinal, por que o homem, ou, em sentindo mais correto, toda a civilização ocidental, aceitou por tanto tempo esta terrível mentira sobre um ilusório além-mundo? É isso que Nietzsche visa responder ao analisar o ganho subterrâneo produzido fantasisticamente, no âmbito da dualidade criada pela religião:

Que vantagens ofereceu a hipótese moral cristã?

1. Ela empresta ao homem um valor absoluto, em contrapartida à sua pequenez e contingência na torrente do devir e do passar; 2. Serve aos advogados de Deus, à medida que ele deixou ao mundo, apesar do sofrimento e do mal, o caráter de perfeição, –

computada aquela “liberdade” – o mal apareceu cheio de sentido;

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4. Preveniu que o homem se desprezasse como homem, que tomasse partido contra a vida, que desesperasse do conhecer: ela foi um meio de conservação.

Insumma: A moral foi o grande antídoto contra o niilismo prático e teorético (Nietzsche, 2008, p.29)

O aspecto mais importante destacado por Nietzsche na enumeração das vantagens produzidas pela metafísica cristã, sem dúvida nenhuma é a potente ilusão de “permanência” das coisas, entre as tais, o próprio homem pode se ver como um ser eterno e, a partir desta organização epistemológica, acabou por criar um além imutável que ocultava razoavelmente o enorme buraco do eterno vir-a-ser anômico.

Ao dividir dualisticamente o mundo, o próprio sofrimento, sempre muito presente em nossa vivência ordinária, foi transformado em “mal” e, por meio deste ato moralizante, pôde-se dizer que o mal só existe nesta esfera imperfeita do mundo, afinal, se o sofrimento e, sua consequência mais próxima, o mal, eram “efeitos morais” de um mundo sensível ilusório, logo tudo seria aplacado no mundo perfeito do além, evidentemente, se aceitássemos a justa “liberdade” ensinada pelos sacerdotes.

Nietzsche, em resumo, considerou a moral religiosa um antídoto usado contra a face brutal da existência; não aceitando a sua pura naturalização, o homem humanizou todo seu entorno; para o filósofo alemão, essa estratégia foi a única forma de não sucumbir frente ao chamado niilismo prático.

Logicamente, com isso, Nietzsche não está justificando positivamente os recursos fraudulentos usados pelas religiões, apenas está admitindo que, o discurso moral arquitetado tradicionalmente, serviu a um propósito útil de conservação, dentro de sua visão genealógica, a morte de Deus, não podia ser pensada antes do tempo certo e propício para o surgimento do “niilismo teorético”.

Em seu livro Genealogia da Moral, o filósofo ratificando a ideia de que o ideal metafísico da religião age como antídoto, explica a eficiência de tal recurso dizendo que:

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Embora seja uma deturpação da vida real, que se manifesta como vontade de potência, o que Nietzsche confessa no fragmento acima, é que a vontade de nada, sustentada às expensas do ideal ascético, que nega a realidade substancial do mundo terreno, ainda é melhor que o vazio acachapante que revela a efemeridade da existência humana.

O autor de Nietzsche e a Liberdade, Miguel Angel de Barrenechea, avaliando em seu trabalho o forte efeito apaziguador do discurso ascético da religião, disse:

O sacerdote “salvador” manterá os crentes “vivos” na expectativa de

uma existência após a morte. O ideal ascético, com toda a sua feição antivital, ajuda a sustentar a existência; existência exangue, de moribundos. Esse ideal faz parte das grandes potências conservadoras da vida. (Barrenecha, 2008, p. 38)

Porém, o mesmo autor ressaltou o alto valor pago por tal lenitivo:

O ônus dessa “salvação” – prolongamento de existências

destruídas – será muito alto: o sacerdote se outorgará o direito de

“colocar vinagre” nas feridas que ele mesmo “cura”. A manutenção

das doenças será o preço que os crentes devem pagar para ter uma sobrevida. O sacerdote será um intermediário do além, um porta voz dos imperativos divinos e, por este serviço, se considerará habilitado para conduzir a vida de todos os fiéis. [...] o estudo genealógico nos levou a detectar os sentimentos de ódio e vingança que fracos têm contra a vida; sentimentos que serão aproveitados pelo sacerdote para instaurar seu poder. (Barrenechea, 2008, p.38)

Como foi muito bem dito por Barrenechea, a vontade de nada, o querer desvirtuado do homem fraco, são sentimentos extraviados que facilitam a instrumentalidade religiosa, em nome de Deus e dos mais divinos ideais, uma moral do ressentimento se sustenta, ou, em outros termos, os mesmos que prometem a “cura“, são os verdadeiros criadores da maior de todas às doenças: nossa profunda e histórica covardia em relação à vida.

Certamente foi pensando nesta qualidade desvitalizante de certas crenças, que Nietzsche concluiu dizendo que: “o cristianismo é a revolta de tudo o que rasteja no chão contra aquilo que tem altura: o evangelho dos “pequenos” torna pequeno...” (Nietzsche, 2007, p.51)

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filósofo diz que o evangelho torna o homem pequeno, o evangelho em questão, não é apenas o discurso proselitista da religião, “evangelho” significa, neste contexto, toda a tradição judaico-cristã que deu causa à nossa civilização ocidental, assim, o termo genérico “cristianismo” se refere a tudo aquilo que entesouramos como “verdadeiro” e “nobre” em nossa cultura.

O anúncio da morte de Deus, dentro deste contexto Nietzschiano, representa a falência crônica de todos os nossos maiores ideais e, em sentido sintomático, a crise religiosa vivida desde o século XIX, é indício da exaustão plena de tudo aquilo que se arrogava “certo” e “essencialmente verdadeiro”. Embora a fala do homem louco de Nietzsche, seja também, um enunciado ateísta, por meio deste enunciado metafórico Nietzsche colocou em xeque não só à essencialidade da religião, como também, indo muito além do questionamento teológico, o filósofo questionou a essencialidade de tudo que considerávamos “essencial” em nossa cultura.

1.2. Transvaloração e Morte de Deus

Nietzsche acreditava que sua mensagem teria uma enorme repercussão no futuro e que o conteúdo de sua ácida doutrina, serviria como base de uma mudança gnosiológica universal, por isso lemos: “[...] dentro em pouco devo dirigir-me à humanidade com a mais séria exigência que jamais lhe foi colocada [...]” (Nietzsche, 1995, p.17)

Mas afinal, qual seria o núcleo desta revolucionária mensagem, que o próprio Nietzsche considerava capaz de sacudir nossos velhos valores?

Na realidade, Nietzsche, a partir de sua genialidade, radicalizou as velhas inquirições que perguntavam o que é “bom” ou “mau” e, indo muito além, buscou o próprio momento de criação destas tradicionais noções díspares. Ele próprio conta como se deu esse processo:

Já quando era um garoto de treze anos me perseguia o problema da origem do bem e do mal [...] por fortuna logo aprendi a separar o preconceito teológico do moral, e não mais busquei a origem do mal por trás do mundo. Alguma educação histórica e filológica, justamente com um inato senso seletivo em questões psicológicas, em breve transformou meu problema em outro: Sob que condições o

homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? E que

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do homem? São indício de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se nele a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro? – para isso encontrei e arrisquei respostas diversas, diferenciei épocas, povos, hierarquias dos indivíduos, especializei meu problema, das respostas nasceram novas perguntas, indagações, suposições, probabilidades: até que finalmente eu possuía um país meu, um chão próprio, um mundo silente, o próspero, florescente, como um jardim secreto do qual ninguém suspeitasse... Oh, como somos felizes, nós, homens do conhecimento, desde que saibamos manter silêncio, por algum tempo!... (Nietzsche, 2004, pp. 9-10)

Nesta interessante descrição, o filósofo enuncia seu método histórico-genealógico e, frente à novidade introduzida por esta profunda metodologia, Nietzsche intenta se desprender da visão moral dualística na qual toda nossa cultura se estriba. Fazer uma genealogia do “valor” é mais que buscar sua raiz histórica, promovendo uma notável ultrapassagem em relação aos outros métodos existentes, o filósofo alemão busca a raiz humana de todos os nobres ideais construídos historicamente.

Pontuando os aspectos originais do método histórico-genealógico inventado por Nietzsche, Vânia Dutra de Azevedo, em seu livro Nietzsche e a Dissolução da

Moral, escreveu oportunamente:

Primeiramente, pode-se dizer que bom e mau ou bom e ruim não são propriamente conceitos, mas expressões do modo de ser daqueles que avaliam. [...] Nietzsche introduz na filosofia os conceitos de sentido e de valor, promovendo com isso a exclusão de fenômenos morais e afirmando existir uma interpretação moral dos fenômenos. Ora, se não existem fenômenos morais e sim uma interpretação moral dos fenômenos, então deve haver alguém que interpreta e alguém que avalia. [...] analisar a procedência de um valor remete necessariamente às suas condições de criação, por

isso a pergunta „quem? ‟ fundamental em Nietzsche, por introduzir a

genealogia como procedimento norteador, que permite desvendar as perspectivas implicadas nas avaliações e, portanto, estabelecer o valor dos próprios valores. (Azevedo, 2003, p. 38)

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Azevedo, no recorte a pouco apresentado, diz que Nietzsche, diferente de tantos outros filósofos, que encaravam o conhecimento como o conjunto das idéias humanas, muitas vezes ideias inatas, sem nenhuma mácula de historicidade, nega-se ruidosamente a fazer esnega-se tipo de análinega-se. Para o filósofo alemão, toda “idéia” ou “conceito” são epifenômenos de uma maneira específica de vida, portanto, a leitura genealógica que fazemos de um conceito, sempre nos leva a um tipo forte ou fraco de homem que lhe deu causa.

O valor não é uma coisa concreta como costumamos pensar, bem cedo, em um de seus primeiros escritos, Nietzsche enfatiza isso da seguinte maneira:

Pensemos ainda, em particular na formação dos conceitos. Toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais. Todo conceito nasce da igualação do não-igual [...] o que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que são, metáforas que se tornaram gastas e sem forças sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (Nietzsche, 2005, pp. 56-57)

Neste texto fica ainda mais clara a proposta genealógica de Nietzsche, dentro desta nova concepção metodológica, há sempre a necessidade de executarmos uma radical desconstrução epistemológica, fazendo isso, escancara-se o caráter mutável e impermanente das coisas, aliás, sem o filtro invisível da linguagem, as palavras se separam das coisas e, sem esse princípio ordenador sutil, percebemos que o “idêntico” é apenas um termo vazio.

Como revela o texto Nietzschiano, à medida que o homem foi criando um universo sígnico estável, passou a não apenas designar as coisas, como também, passou a acreditar que conhecia de fato as coisas, procedendo assim, acabou por criar a ideia de verdade, pretensão epistemofílica (amor inato pelo conhecimento), oriunda inicialmente, da naturalização ingênua de seu próprio conhecimento.

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Para Nietzsche [...] precisamente a dita objetividade dos valores não passa de uma criação: criada pela existência, mas esquecida enquanto tal. A vida humana e estabelecimento de valores. Mas ela ignora-o quase sempre. O que a própria vida estabeleceu afigura-se-lhe como exterior, como força constringente da lei moral. Ao criar valores, o homem transcende-se e coloca diante de si a própria criação como um objeto estranho dotado de todas as características mais veneráveis do ser em si. O que Nietzsche pretende fundamentalmente abolir é o dogmatismo axiológico. (Fink, 1983, p. 131)

A revolta axiológica citada por Fink é o núcleo de toda teoria nietzschiana: “transvalorar a estrutura ficcional na qual baseia-se o conhecimento humano”, a partir deste novo paradigma, todo saber é reduzido ao status de ilusão; uma falsificação útil que cooperou com o ímpeto inato de conservação.

Mesmo sendo um ser naturalmente imanente, como observou Fink, o mesmo ganhou ares de transcendência ao projetar-se artificialmente no mundo através do conhecimento que criou, sua vontade de duração e identidade, foi razoalmente satisfeita no âmbito desta potente ficção teleológica.

Porém, diante da idéia que ensina que todo valor é uma “ficção”, daí não existir nenhuma verdade transcendental fora dos critérios valorativos humanos, uma aparente aporia parece surgir como conseqüência lógica deste pressuposto: como justificar a crítica nietzschiana em relação à religião, se o máximo que atingimos são aparentes verdades sobre a vida?

Esta aparente contradição é facilmente superada, se entendermos que, para Nietzsche, o verdadeiro problema em relação à religião não reside no fato de tal constructo basear-se em ficções, mas sim, no tipo de ficção que sustenta o edifício metafísico da religião.

Em sentido puramente sociológico, o discurso religioso é o único que reivindica uma origem supra-terrena e, por causa desta pretensão epistemológica, é exatamente dentro deste setor social que a ilusão de duração mais potentemente tenta se mostrar confiável.

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A moral antinatural, ou seja, quase toda moral até hoje ensinada, venerada e pregada, volta-se pelo contrário, justamente contra os instintos da vida - é uma condenação, ora secreta, ora ruidosa e

insolente, desses instintos. Quando diz que “Deus vê nos corações”,

ela diz não aos mais baixos e mais elevados desejos da vida, e toma Deus como inimigo da vida... O santo no qual Deus se compraz é o

castrado ideal... A vida acaba onde o “reino de Deus” começa...

(Nietzsche, 2006, p. 36)

Ao afirmar que “a vida acaba onde o reino de Deus começa”, o filósofo deseja revelar a superlatividade da negação promovida pela ilusão religiosa, segundo o seu ponto de vista, a vivência religiosa se constrói sob uma imensa negatividade; o religioso ideal ou o moralista é sempre um “castrado”, ou seja, torna-se “santo” ao negar suas mais prementes necessidades instituais, só pode ter como meta o espírito, ao negar sua óbvia materialidade.

Em sentido mais direto, para Nietzsche a religião é uma espécie de rebelião contra a natureza, assim, o sobrenatural não é uma superação do natural, pelo contrário, é uma degeneração dos melhores instintos, daí o motivo do seguinte comentário:

[...] não há sentido em fabular acerca de um “outro” mundo, a menos

que um instinto de calúnia, apequenamento e suspeição da vida seja poderoso em nós: nesse caso, vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de uma vida “outra”, melhor. [...] dividir o mundo em um “verdadeiro” e um aparente”, seja à maneira do cristianismo, seja

à maneira de Kant (um cristão insidioso, afinal de contas), é apenas uma sugestão da décadence – um sintoma da vida que declina... (Nietzsche, 2006, p.29)

A promessa cristã de uma vida celestial é interpretada por Nietzsche como uma “vingança”, ao falarmos das delícias do porvir, nos contentamos ideativamente com “fantasmagorias” e, procedendo assim, desprezamos e aviltamos tudo aquilo que de fato existe.

A estratégia de negação do cristianismo baseia-se num vulgar dualismo, como foi muito bem colocado por Nietzsche, o cristianismo (pelo menos, como explicaremos a diante, o cristianismo fabricado após a morte de Jesus), conceitua de “aparente” tudo aquilo que verdadeiramente existe no mundo e, numa interessante inversão, lê como “verdadeiro” tudo àquilo que é ilusório.

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decadência, segundo seu viés interpretativo, logo o cristianismo percebeu: “[...] que necessitava da fé na imortalidade para tirar o valor do „mundo‟ [...] que com o „além‟ se mata a vida”... (Nietzsche, 2007, p.75), E, frente a essa percepção crítica, o filósofo alemão em tom de desabafo ironiza: “niilista e cristão: duas coisas que rimam, e não apenas rimam...” (Nietzsche, 2007, p.75).

Mais do que uma mera rima, para Nietzsche, ser cristão é o mesmo que ser niilista, mas não o niilismo positivo que se abre como possibilidade com a aceitação da morte de Deus, não, um niilismo reativo que se vincula ao ódio e desprezo contra a vida; ao atribuir ao mundo imaginário o valor de verdade, o cristão desmerece automaticamente o valor do mundo sensível, torna-se assim, segundo a interpretação nietzschiana, um amigo de Deus e, reativamente um inimigo do mundo.

É exatamente dentro deste contexto que o anúncio da morte de Deus é pensado por Nietzsche, como um momento singular da história humana, aquilo que se achava encoberto pela bela máscara do niilismo religioso tornou-se abruptamente visível aos homens. Araldi fez notar a importância deste acontecimento nas seguintes palavras:

[...] a investigação genealógica da moral significa também a tentativa de caracterizar o niilismo em suas formas e em sua lógica intrínseca. A longa história da moralização surge de uma vontade que se volta contra a vida e contra si mesma, tendo como conseqüência a doença, a perda de sentido, o niilismo. [...] A claridade surge quando o niilismo se radicaliza, após o vazio deixado pela morte de Deus, por meio de um radical questionamento: ou o homem é sadio em seus instintos mais profundos e nega o mundo de suas venerações, ou ele será vitimado pelo niilismo. (Araldi, 2004, p.77).

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“instintos fortes” significa aceitar a vida como ela é, ou de outra forma, não tentar buscar um sentindo além do próprio ato imanente de viver.

Segundo o que podemos perceber mais profundamente nas letras nietzschianas, o projeto de transvaloração de todos os valores, embora não possa ser reduzido a um mero ateísmo, não pode começar bem se não for pelo pressuposto da morte de Deus, segundo a percepção do próprio Nietzsche. Certa consciência atéia já seria o indício de um fluir normal dos instintos fortes, isso é assumido por ele nas seguintes palavras:

[...] “Deus”, “imortalidade da alma”, “salvação”, “além”, puras noções,

às quais não dediquei atenção nenhuma, tempo algum, mesmo quando criança – talvez não fosse infantil bastante para isso. – Não conheço em absoluto o ateísmo como resultado, menos ainda como acontecimento: em mim ele é óbvio ainda por instinto. Sou muito inquiridor, muito duvidoso, muito altivo para me satisfazer com uma resposta grosseira. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para conosco, pensadores [...] (Nietzsche, 1995, p.35)

Baseados no que foi dito pelo filósofo alemão, poderíamos dizer, que embora o ateísmo como filosofia não seja o suficiente para que ocorra à transvaloração, parece ser uma condição básica para que a mesma se efetive, como ele muito bem esclareceu em suas palavras, a morte de Deus não pode gerar um impacto negativo no sujeito inquiridor, em seu ponto de vista instintualmente ateísta, Deus não passa de uma “resposta grosseira”, certa “indelicadeza” com a razão.

Mas afinal, se esta interpretação nietzschiana estiver certa, como pôde se sustentar por tanto tempo uma mentira tão evidente? Ainda mais, por que, mesmo hoje, o dualismo de certo tipo de cristianismo, parece não ter sido abandonado por grande parte dos viventes?

Essas são as questões que tentaremos responder no próximo subtítulo.

1.3. Metafísica Cristã Como Modelo de Degeneração Instintual

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Até porque, em Nietzsche os termos “cristianismo”, “cristão”, “moral cristã” ou mesmo “Cristo”, são termos que ganham certa elasticidade literária incomum, grande parte das vezes que tais termos são usados, representam bem mais do que um simples apontamento histórico, no universo Nietzschiano, essas palavras são “portas” de entrada para sistemas extremamente complexos.

Emblematicamente, o termo genérico “cristianismo”, é muitas vezes usado em Nietzsche como sinônimo de cultura ocidental, daí o cristão muitas vezes significar o “homem ocidental”. Isso pode ser comprovado facilmente com o seguinte fragmento:

[...] e nós, homens do conhecimento de hoje, nós, ateus e antimetafísicos, também nós tiramos ainda nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina... mas como, se precisamente isso se torna cada vez mais incrível, se nada mais se revela divino, exceto o erro, a cegueira, a mentira – se Deus mesmo se revela como nossa mais longa mentira? – neste ponto é necessário parar e refletir longamente. (Nietzsche, 2004, p. 140)

Os termos “Deus”, ”crença cristã” e mesmo a alusão feita a “Platão”, significam a fé que depositamos, muitas vezes até de uma forma inconsciente, nas categorias racionais de nossa cultura ocidental, mesmo duvidando das metafísicas das variadas religiões, muitas vezes não nos apercebemos quão “metafísica” é a nossa crença racional na “verdade”.

O próprio termo “metafísica” ganha uma conotação muito ampla nos escritos nietzschianos, genericamente tal termo não fica restrito às comovisões religiosas, para Nietzsche, todo elemento cultural é de certa maneira metafísico, isso é claramente demonstrável quando o filósofo fala das qualidades “misteriosas” da linguagem, lemos:

A linguagem pertence, por sua origem, à época da mais rudimentar forma de psicologia: penetramos um âmbito de cru fetichismo, ao trazermos à consciência os pressupostos básicos da metafísica da

linguagem, isso é, da razão. [...] A “razão” na linguagem: Oh, que

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Ao usar palavras, pensamos manipular “coisas”, e, ao dar nome às mesmas, fazemos uso da função valorativa implícita na linguagem; ao se referir ao “cru fetichismo”, no âmbito da metafísica da linguagem, Nietzsche tenta mostrar como levamos a sério o valor implicado nos nomes dados às coisas, no fundo, sem que nos apercebamos, a operacionalidade linguística é a verdadeira responsável pela crença primitiva da identidade das coisas. Talvez, por isso, tenhamos que admitir uma impossibilidade estruturalmente humana de se relacionar com o mundo sem nominá-lo, todo e qualquer conceito que venhamos a criar, não importa em que cultura estejamos inseridos, sempre se sustentará na crença racional em “coisas idênticas”.

Como já dissemos anteriormente, o grande mal não está no fato de criarmos certas ficções para viver, e sim, no fato de que certas ficções nos impedem exatamente de viver, pelo menos viver, no sentido mais positivo.

Evidentemente, foi pensando neste tipo de ficção mais deletéria, que Nietzsche afirmou: ... “O conceito de „Deus‟ foi, até agora, a maior obstáculo à existência. [...]” (Nietzsche, 2006, p.47)

Logicamente o “Deus” aqui em questão, não era o Deus morto da religião cristã, pelo menos não se refere mais amplamente a essa figura desvitalizada, o que o filósofo diz nas entrelinhas é que o conceito de “algo absoluto”, aplicando-se tal crença superlativa as noções tradicionais de “verdade e razão”, se configura na verdadeira causa do niilismo negativo.

Mas quando propriamente esta metafísica da negação começou a ser arquitetada? Viviane Mosé, ensaiando uma resposta a essa intrigante inquirição histórica escreveu:

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O mundo moral, construído por filósofos e religiosos, foi pregado a toda gente e, em praticamente todos os cantos de nosso mundo civilizado, ouviu-se o anúncio do reluzente mundo verdadeiro da razão. A escritora e filósofa Viviane Mosé, de certa forma dando ressonância às palavras do próprio Nietzsche, afirma inteligentemente que uma das causas do niilismo que corrói o homem contemporâneo tem a sua raiz no próprio pressuposto que originou nossa civilização ocidental, a saber: “é possível através da razão encontrar a verdadeira essência das coisas”.

Um mundo clivado surgiu em consequência desta teoria dual e, mesmo após o acontecimento da morte de Deus, no século XIX, o “esclarecido” positivista continuou, bem ao estilo dos velhos teólogos, a buscar desesperadamente o mundo verdadeiro que se ilumina diante das novas luzes da razão científica. Mesmo neste niilismo reativo, que nasce como desdobramento necessário do vazio deixado pela morte de Deus, ainda encontramos a idéia metafísica de um “ser primordial”, uma “coisa” irredutivelmente verdadeira em si mesma. Segundo o filósofo Nietzsche, como bem esclareceu Viviane Mosé, nossa razão científica ocultamente ainda se fundamenta num “outro mundo”, assim sendo, um pouco do primeiro niilismo negativo, iniciado por Sócrates, anima silenciosamente nossa pretensa “razão emancipadora”.

Toda negatividade que se esconde, nos porões milenares, da crença em um mundo verdadeiro, é exposta da seguinte forma por Nietzsche:

[...] Sócrates foi um mal-entendido: Toda a moral do aperfeiçoamento, também a cristã, foi um mal-entendido... A mais crua luz do dia, a racionalidade a todo custo, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos, foi ela mesma doença, uma outra doença – e de modo algum um

caminho de volta à “virtude”, à “saúde”, à “felicidade”... Ter de

combater os instintos – eis a fórmula da décadence enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto. (Nietzsche, 2006, p. 22)

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O mundo móvel e transitório dos filósofos jônicos, bem como, as imensuráveis fissuras dos atomistas, por onde todo vazio cósmico jorrava, foram lentamente cedendo lugar à idéia de um mundo estável e plenamente inteligível.

É exatamente esta vontade de colocar o universo dentro de nossas categorias racionais que Nietzsche chama de “doença”; ideativamente esta postura melindrosa, diante do vir-a-ser, é encarada pelo ácido filósofo alemão como verdadeira rebelião contra os instintos.

De fato, ao ensinar um de seus discípulos, chamado Eutidemo, Sócrates revela nitidamente sua postura moralizante em relação à vida, dizendo:

– Qual é a diferença, Eutidemo, entre o homem imoderado e o animal mais estúpido? Em que se diferencia o bruto que jamais toma o bem por guia e vive apenas para o prazer? Só os moderados podem examinar o que existe de melhor em todas as coisas, distríbui-las por gênero na prática e na teoria, escolher o bem e recusar o mal.(Xenofonte, 2004, p. 254)

Subentende-se, de acordo com a lógica interna deste curto fragmento, que o avanço racional de um indivíduo deve habilitá-lo ao autocontrole instintual. Para Sócrates, o homem moderado, consequentemente, aquele que se sacrifica para alcançar o autodomínio, era o único que mereceria o epíteto de “animal racional”.

É por causa deste moralismo intrinsecamente aplicado à razão, que Nietzsche reconheceu na figura de Sócrates um dos pais ideológicos da doutrina cristã. Afinal, o mesmo viés moralizante e contrário aos instintos mais fortes, forma a essência da metafísica cristã. Por isso o filósofo alemão afirmou: “[...] A fé cristã é, desde o princípio, sacrifício: Sacrifício de toda segurança do espírito – é, ao mesmo tempo, servilismo, auto-escarnecimento, automutilação”. (Nietzsche, 2005, p.65)

Toda moral que nega a primazia do corpo é em Nietzsche automutilação, toda leitura que fazemos do real, que considere a “alma” mais importante do que o fluir instintual é auto-escarnecimento, no fundo, toda metafísica que não se revele, apenas como um recurso ficcional, mas sim, como pura representação do “mundo verdadeiro”, não passa de um servilismo.

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indicou uma grande similitude entre o socratismo platônico e as metafísicas religiosas.

Mais até do que Sócrates, pois não sabemos exatamente quem foi essa figura, visto que tudo que se atribui a ele nos chegou através de seus discípulos, Platão foi o verdadeiro sistematizador do dualismo metafísico, que posteriormente veio a se solidificar como cristianismo.

Seu desprezo pelo corpo e, consequente valorização de um ideal desencarnado como meta humana, é muito bem ilustrado em seu Fédon, texto este, onde o filósofo idealista considera o copo a verdadeira fonte de todos os nossos males.

Para Platão, a alma, o elemento racional que se achava encarcerado no corpo, só atingiria o mundo real após a morte: “[...] enquanto tivermos corpo e nossa alma estiver absorvida nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de nossos desejos, isto é, a verdade”. (Platão, 2004, p.127)

Aqui neste mundo ilusório não nos relacionamos com as “coisas” verdadeiras, só com as às sombras: “... é impossível conhecer alguma coisa pura, enquanto temos corpo [...]” (Platão, 2004, p.128) Enfim, temos que negar nossa corporeidade para afirmar a alma:

Enquanto estivermos nesta vida não nos aproximaremos da verdade a não ser afastando-se do corpo e tendo relação com ele apenas o estritamente necessário, sem deixar que nos atinja com as suas imundices [...] (Platão, 2004, p.128)

Interessantemente, em nome de uma alma imortal, aparentemente tendo como objetivo real uma vontade de duração ou, de permanência da identidade, o homem aprendeu a cultivar invertidamente uma vontade de negação. Em outras palavras, o homem trocou a vida por uma “metáfora” e, fazendo isso, começou a cultuar a própria morte: “[...] os verdadeiros filósofos trabalham com o objetivo de se preparar para a morte e esta não lhes afigura horrível”. (Platão, 2004, p.129)

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transcendental chamada “alma”. Evidentemente, a mesma nada mais é que a promessa sedutora de uma “eterna imobilidade”.

Comentando sobre essa grande antagonia entre o corpo e alma, no pensamento platônico, o escritor Barrenechea tece a seguinte argumentação:

[...] o corpo é considerado uma natureza deficiente – “essa coisa má”- o que submete o homem a caprichosas emoções e sentimentos, sendo responsável pelas doenças, confusões e desorganização mental. A libertação só será possível pela ação racional da alma, que consegue reprimir esse caos corporal. O equilíbrio moral-racional prepara o homem para uma futura vida ultra-mundana, quando irá viver em harmonia, sem padecer as limitações da Terra. Platão é, assim, o precursor do “filósofo

-sacerdotal” que põe a filosofia a serviço de uma moral, - a correção

do homem – e, no fundo, de uma visão teológica: atingir o reino das idéias, na proximidade de Deus. (Barrenechea, 2008, p.31)

Os conceitos que servem como base de sustentação da metafísica socrático-platônica se opõem visceralmente à vida, como foi muito bem ressaltado por Barrenechea, essa aviltante tese acaba por se configurar como uma espécie de “teologia filosófica” e, segundo o viés nietzschiano, foi exatamente está estrutura teorética que embasou intelectualmente o cristianismo em sua origem.

Semelhante ao Platonismo, o Cristianismo abriga em seu núcleo certo rancor contra a vida, para Nietzsche, as lógicas do ressentimento e do desdém, em relação a tudo que é mundano e, portando efêmero, são os pilares ocultos de toda edificação cristã.

O filósofo alemão viu no Deus dos cristãos a pura personificação da atrofia e degeneração instintual, seu ponto de vista era que: “O conceito cristão de Deus - Deus como Deus dos doentes, [...] Deus como espírito – é um dos mais corruptos conceitos de Deus que já foi alcançado na Terra [...]” (Nietzsche, 2007, p.23). Para ele, a idéia cristã sobre Deus era sinteticamente a própria representação do estado doentio dos cristãos:

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afogam, quando se torna Deus-de-gente-pobre, Deus-de-pecadores, Deus-de-doentes par excellence [por exelência] [...] Talvez represente o nadir da evolução descendente dos tipos divinos. Deus degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração e eterna afirmação desta! Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! (Nietzsche, 2007, pp. 22-23)

A racionalidade desencarnada nascida com Sócrates, sistematizada por Platão e popularizada pelo Cristianismo, em Nietzsche representava sempre um sinal de doença e, em sentido mais profundo, como foi este arcabouço ético-religioso a base de nosso projeto civilizatório, o filósofo da transvaloração acreditava que mesmo depois da “morte de Deus”, muito dos nossos valores racionais ocultavam os “restos mortais” do Deus Cristão.

A negatividade que se esconde atrás de termos como “verdadeiro”, “racional”, “eterno”, entre tantos outros termos fabricados inicialmente pela moral socrático -platônico-cristã, é encarada como um recurso de domínio que se executa sobre os “fracos e degenerados”, Roberto Machado em seu livro sobre Nietzsche e a

Verdade, frisa muito bem esse aspecto manipulativo da moral cristã:

Desde o início, a investigação nietzschiana sobre o conhecimento não se limita ao interior da questão do conhecimento, mas o articula com um nível propriamente político ou social com o objetivo de mostrar que a oposição entre a verdade e a mentira tem uma origem moral. Articulação do conhecimento com o social que neste momento pretende sobretudo elucidar como a exigência de verdade surge da existência da coexistência pacífica entre os homens, da exigência da vida gregária. Paz, segurança e lógica estão intrinsecamente ligadas. (Machado, 2002, p.38)

Em consonância com que foi dito por Machado, Nietzsche intuitivamente, mesmo em seus primeiros escritos, sempre relacionou a questão do conhecimento com a vida social, consequentemente, o tipo de conhecimento produzido por um grupo social é sempre a expressão indireta de sua própria vitalidade ou, ao contrário disso, de sua degeneração.

Referências

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