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Capítulo II – É Possível um Mundo Sem Deus?

2.5. Os Efeitos Silenciosos da Secularização

Como último tópico deste capítulo, devemos ainda analisar brevemente como o “Anúncio da Morte de Deus” (anúncio que se manifesta mais evidentemente, como vimos, na laicização do mundo), pode ser sentido de uma forma mais sutil e menos explícita fora do próprio discurso ateísta, muitas vezes, até mesmo embutido, subterraneamente nos diversos discursos religiosos contemporâneos, bem como, na prática destes novos grupos “religiosos”.

No Brasil, o fenômeno da secularização é bem ambíguo, normalmente o discurso secularizado não ganha “ares” de uma escola bem sistematizada, ao contrário de uma “mensagem laicizante” que faça prosélitos entre os crentes, podemos sentir o efeito da laicização na “prática” religiosa cotidiana.

Citando os dados estatísticos de uma conhecida revista evangélica, o reverendo presbiteriano Augustus Nicodemus, em seu livro O Ateísmo Cristão e Outras Ameaças à Igreja, diz que após uma entrevista realizada entre jovens evangélicos de 22 denominações, sendo grande parte dos entrevistados solteiros e freqüentadores assíduos dos ofícios religiosos (muitos nascidos em lar evangélico), foi constatado que 52% dos entrevistados já haviam tido relações sexuais e, entre estes, cerca de metade confessaram ter uma vida sexual ativa (Nicodemos, 2011, p. 99).

O reverendo em questão se mostrou estarrecido com o resultado desta pesquisa e, em tom de preocupação acaba por dizer que, se essa pesquisa fosse atualizada (a reportagem que ele usa como fonte tinha sido publicada, em setembro de 2002), ele acreditava que teríamos números últimos ainda mais elevados (Ibid., p. 99).

Baseados nos dados oferecidos pelo reverendo protestante, podemos vislumbrar a grande alteração pela qual passa o cenário do tradicionalismo evangélico no país, aquilo que antes era considerado pela grande maioria dos praticantes um “grave pecado”, modernamente passa a ser tolerado como “pecado menor” e, em alguns casos específicos, as relações sexuais fora de casamento são interpretadas com fase normal do amadurecimento humano.

Entre os católicos essa mudança de cenário é também evidente. Numa pesquisa realizada pelo ibope, onde o questionamento visava revelar o número de religiosos que apoiavam o “casamento homossexual”, 50% dos católicos se mostraram favoráveis a união homoafetiva (Globo, 2011).

Nesta pesquisa realizada pelo ibope os evangélicos são citados como o grupo religioso mais resistente no que toca a união homoafetiva, só 23% dos mesmos é favorável a união entre homossexuais. Porém, esse número pode ser considerado alto se considerarmos que num passado recente, tal número de aceitação seria impossível e, é preciso lembrar que recentemente o pastor Marcos

Gladstone, fundador da igreja contemporânea, institucionalizou a união homoafetiva em sua denominação religiosa (Época, 2007).

No entanto, a prática sexual não é a única esfera da vida humana afetada pela secularização, na realidade até mesmo a maneira habitual de pensar a religião e o sagrado sofre radical alteração. Não é incomum hoje situarmos as variadas igrejas da contemporaneidade no setor social de “prestadoras de serviço”, ou seja, a secularização leva-nos a encarar as diversas denominações religiosas como empresas.

Tratando em seu livro Bispo S/A: a igreja universal do reino de Deus e o exercício do poder, o cientista da religião Odêmio Antônio Ferrari, descreve algumas das mudanças iniciadas pelos chamados movimentos neopentecostais no cenário religioso brasileiro:

… no Brasil, na década de 1970, a caminhada pentecostal, sob influência de novas correntes pentecostais norte-americanas e da teologia da prosperidade, originou um novo pentecostalismo. O ícone desse movimento é a igreja universal do reino de Deus [...] a igreja universal distanciou-se do pentecostalismo clássico ao construir um „novo jeito de ser crente‟, o qual não mais se pautou no isolamento e na espiritualidade da privação. [...] O neopentecostalismo percebeu que não é mais possível estabelecer uma religião de proibição aos frutos do progresso tecnológico e comercial. A teologia da prosperidade foi absorvida e vivida intensamente pelos neopentencostais, vivência que se refletiu no culto e no agir do “novo crente”. Sua clientela foi instigada a viver inserida no mundo globalizado, assumindo os valores do mercado (Ferrari, 2007, p. 11).

O autor supracitado revela no trecho colhido de seu livro, que a nova teologia do neopentecostalismo é uma teologia de mercado, a fé é reduzida a mais uma das variadas mercadorias do sistema de consumo, o membro ou adepto, das antigas comunidades religiosas, é substituído por um “ávido cliente” disposto a “investir na fé”.

A figura do pastor carismático e sedento por “ganhar almas” é gradualmente apagada pelo perfil ideal. Hoje em dia, mais do que o “profeta carismático” do passado, o líder religioso converteu-se numa espécie de empresário da fé, assim, suas metas se tornam cada vez mais “econômicas”, os projetos organizacionais não visam espiritualizar o grupo de religiosos, ao contrário, o ambição desmedida por

acúmulo de bens materiais é abertamente defendida como a verdadeira intenção dos “novos e prósperos filhos de Deus”.

Segundo o ponto de vista de Ferrari, a expansão e popularização do modelo capitalista favorece muitissimamente o crescimento dessas novas igrejas, bem como, num progresso inverso de retroalimentação, o próprio crescimento das novas denominações favorece a solidificação da visão de consumo do capitalismo, sobre isso ele escreveu mais especificamente:

Estamos numa época de transição e crise de projetos entre a modernidade é a pós – modernidade. A economia e política mundial estão regidas por um novo “avivamento” do capitalismo em escala planetária, interferindo em todos os aspectos do viver dos povos. O fenômeno religioso tem uma presença marcante nesse contexto. O sagrado volta a receber atenção da humanidade, visto que as filosofias iluminista e o tecnicismo econômico não conseguem responder ás grandes questões humanas. A secularização em declínio dá lugar à “dessecularização”, tornando o sagrado fonte de legitimações ideológicas na sociedade globalizada (Ferrari, 2007, p.p 13,14).

Para Ferrari, as religiões nesse novo contexto globalizado são um importante instrumento mercadológico para fortalecimento do capitalismo, suas bases teológicas refletem não mais o anseio pós-morte de uma vida espiritual melhor, o novo crente quer a sua recompensa neste mundo material e, o fato de prosperar economicamente é interpretado teologicamente como prova visível do beneplácito divino.

Ainda sobre a opinião defendida por Ferrari, embora concordemos com a maior parte de sua argumentação, só não podemos aceitar a ideia de que o mundo passa por um processo de “dessecularização”, afinal, é mais fácil observarmos uma espécie de sacralização do antigo profano, ou, em outras palavras, a secularização do mundo contemporâneo impõe silenciosamente uma nova configuração ao campo religioso. Também, é importante ressaltarmos que a secularização que vem acontecendo no Brasil tem suas características próprias. Diferente de um discurso teoreticamente forte intelectualmente, como o difundido por toda Europa, aqui no Brasil a discursividade laica esconde-se atrás de uma religiosidade pragmática e pouco reflexiva, assim, paradoxalmente pode-se viver como um ateu, apenas

interessado na materialidade da vida cotidiana e, ao mesmo tempo, preservar certas crenças místicas ou religiosas.

Essa postura um tanto anômala de uma “secularização mística” do povo brasileiro, provavelmente tem como fonte de inspiração o que acontece nos Estados Unidos da América. O filósofo Theodor adorno, em seu livro As Estrelas Descem à Terra, depois de analisar a coluna de astrologia do Los Angeles Times, observou como essas superstições aparentemente inócuas, favorecem o recrudescimento do capitalismo e, ao mesmo tempo, produzem uma secularização saturada de elementos místicos. Ele explicou o sucesso de tal superstição da seguinte maneira:

A astrologia, embora às vezes aspire a uma intimidade com a teologia, é basicamente diferente da religião. A irracionalidade na sua fonte não é apenas mantida remota, como envolve um tratamento impessoal e coisificado [...] a filosofia subjacente à astrologia está na linha do que poderia ser chamado de sobrenaturalismo naturalista. [...] na mesma medida em que o sistema social é o “destino” da maioria dos indivíduos, independentemente de sua vontade e interesses, ele é projetado nas estrelas de modo a, assim, obter um grau maior de dignidade e justificação, do qual os indivíduos esperam eles mesmos participar. [...] O envolvimento com a astrologia pode oferecer àqueles que se deixam levar por ela um substituto para o prazer sexual de natureza passiva. Em primeira instância, isso significa a submissão à força desenfreada do poder absoluto. Entretanto, esta força e este poder que, em última análise, derivam da imago do pai são completamente despersonalizados pela astrologia. (Adorno, 2007, p.45)

Muito diferente do que ocorre com a religião institucionalizada, o discurso relativamente secularizado das novas religiosidades místicas, tomando o exemplo emblemático oferecido por adorno em seu estudo sobre a astrologia, abrem mão até certo ponto da imagem tradicional de um Deus. O sentido da vida não estaria mais ligado a leis fixadas por um “senhor do universo”, agora o próprio universo é personalizado como senhor, cabe aos humanos apenas descobrirem as melhores influências cósmicas para seu destino. O termo “sobrenaturalismo naturalista”, criado por Adorno, é bem ilustrativo. Na astrologia, o próprio sobrenatural é reduzido à noção de uma natureza oculta que se revela tecnicamente pela arte do conhecimento astrológico, sem a necessidade de rezas, orações ou qualquer outra mediação especial.

Ao mesmo tempo em que esta forma autônoma de religiosidade secular confere um sentido para o universo (humanização), este sentido não é pensado como “obrigação moral” para um Deus, mais sim um processo de atomização do seu próprio destino pessoal.

Ainda falando sobre a forte ilusão de liberdade ocasionada por esta nova religiosidade autônoma, e, como essa bela fachada esconde a intenção oculta de nivelamento instrumental das consciências individuais, Adorno escreveu:

… a ideia de que a liberdade do indivíduo resulta em agir da melhor maneira possível, com a base no que uma determinada constelação permite, implica a ideia de ajustamento, com a qual a astrologia está alinhada [...] de acordo com esse conceito, a liberdade consiste em que o indivíduo tome voluntariamente como seu aquilo que, de qualquer maneira, é inevitável. Desse modo, a casca vazia da liberdade é zelosamente preservada. Se o indivíduo age de acordo com dada conjuntura, tudo dará certo; se não, tudo dará errado. [...] talvez se pudesse dizer que, na astrologia, há uma metafísica implícita de ajustamento por atrás do conselho concreto de ajustamento na vida cotidiana (Adorno, 2007, p. 50).

O filósofo de Frankfurt, no trecho apresentado, está afirmando que esta metafísica de ajustamento é mais um instrumento ideológico em prol da hegemonia capitalista. A ideia abstrata de ajustar-se a determinadas influências astrais, seria apenas um disfarce para lógica mercadológica imposta a todos.

Isso explica muito bem, em sentido análogo, o espantoso sucesso dos “romances espíritas” e outros “livros místicos” aqui no Brasil; na verdade tal literatura oferece uma religiosidade descompromissada e profundamente individualizada. O Deus da teologia é substituído por um “destino cármico despersonalizado” e, como foi muito bem observado por Adorno, o indivíduo só deve buscar o “ajuste”, afinal, seu destino não é escolhido por uma divindade, mas sim pela adaptação as leis cósmicas que normalmente reproduzem a sua própria vontade egocêntrica.

Adorno, ao examinar a necessidade que, as ditas sociedades civilizadas apresentam em usar certos esquemas que possibilitem instrumentalmente o uso favorável da irracionalidade para apoiar o “sistema”, comentou o seguinte sobre esse propósito alienante:

Para o indivíduo, a crença astrológica não é uma expressão espontânea de sua vida mental, não é “algo seu” da mesma forma que o conteúdo do sonho, mas sim algo que ele encontra pronto,

uma irracionalidade cuidadosamente preparada e pré-digerida. Nessa medida, o termo “fábrica de sonhos” aplicado aos filmes aplica-se também à astrologia. É precisamente esse caráter pré- digerido da astrologia que produz sua aparência de normalidade e sua aceitação social, e tende a diluir a fronteira entre o racional e irracional que é geralmente bem demarcada quando se trata do sonho e da vigília. De forma muito semelhante à indústria cultural, a astrologia tende a eliminar a distinção entre fato e ficção: seu conteúdo é muitas vezes exageradamente realista, ao mesmo tempo em que sugere atitudes baseadas em fontes inteiramente irracionais… (Adorno, 2007, p. 59).

O fenômeno da secularização aumenta a razoabilidade das mensagens vindas dessa grande “mídia mística” que de forma bastante sutil acabam assumindo o papel antes ocupado pelas instituições religiosas tradicionais. Adorno compara a alienação produzida pela astrologia aos sonhos vividos de forma automática ao dormirmos; da mesma forma que o conteúdo onírico é produzido espontaneamente pelo “inconsciente”, certo “inconsciente social” é produzido para que possamos “sonhar acordados”, assim, a irracionalidade das mensagens místicas recebe uma camuflagem montada a partir de variados elementos cotidianos. Novamente, devemos lembrar como aqui no Brasil o realismo de certos romances espíritas, bem como, mais recentemente, produções cinematográficas caríssimas, vem empolgando um número cada vez maior de consumidores sedentos por histórias que misturem ficção e realidade de forma mais plausível. Como foi dito por Adorno, o apelo realista da indústria cultural, visa certo entorpecimento cognitivo que deve abafar de forma ilusória as nítidas diferenças entre o “real” e “imaginado”, assim, de forma subliminar, ideais como “destino”, “carma”, “reencarnação”, entre outras ideias que nos levam a um ajuste com as leis cósmicas, são introduzidas ocultamente com as novas bússolas teleológicas da contemporaneidade.

Essa “religiosidade secularizada”, embora aconteça modernamente fora das instituições religiosas tradicionais, acaba por estabelecer um quadro de referência societária comum, por isso, mesmo não acreditando nas referências simbólicas das religiões do passado, essa nova experiência de uma religiosidade autônoma, faz com que esse novo homem transcenda sua finitude individual e sinta-se acolhido num novo universo simbólico onde o individualismo e o subjetivismo das crenças ganha ares e status de “sagrado”.

O já citado reverendo presbiteriano, Augusto Nicodemus, na sexta parte de seu livro sobre o ateísmo cristão, fala desses religiosos autônomos como os

“desigrejados”, e explicando os possíveis motivos para o surgimento desta nova e crescente conjunção de pessoas, escreveu:

O surgimento de milhares de denominações evangélicas, o poderio apostólico de igrejas e seitas neopentencostais, a institucionalização e secularização das denominações históricas, a profissionalização do ministério pastoral, a busca de diplomas teológicos reconhecidos pelo Estado, a variedade infindável de métodos de crescimento de igrejas, a falta de crescimento das igrejas tradicionais, o fracasso das igrejas emergentes - tudo isso tem levado muitos a se desencantarem com a igreja institucional e organizada (Nicodemus, 2011, p.153).

Interessantemente, aqui no Brasil a secularização não é produzida reflexivamente como resultado de uma “filosofia do desencanto”, na verdade, como escreveu Nicodemus ela é mais culpa dos “teólogos” de que dos “filósofos”, ela nasce do mesmo terreno que antes se cultivava a “fé”.

Porém, o afastamento religioso não é somente um subproduto do fracasso institucional das religiões, o próprio reverendo (sendo este um tradicional), acaba por confessar que tal fenômeno também se liga ao “espírito da época”, sobre isso lemos:

Mas esse tipo de atitude anti-instituição, antidisciplina, antirregras, antiautoridade, antilimites de todo tipo se encaixa perfeitamente na mentalidade secular e revolucionária de nosso tempo, que entra nas igrejas travestida de cristianismo (Nicodemus, 2011, p. 156).

Segundo o ponto de vista do reverendo protestante, no Brasil o verdadeiro inimigo do cristianismo não é o ateísmo (pelo menos não neste momento histórico), mas sim os próprios cristãos.

A mentalidade secular que cada vez mais invade às fileiras religiosas produz uma criticidade pouco compatível com o pensamento dogmático e, como disse o reverendo Nicodemus, a busca por uma adequação formal com o espaço público, cada vez mais secularizado, acaba por “implodir” reativamente as últimas colunas do tradicionalismo religioso.

O antropólogo católico René Girard semelhante ao reverendo Nicodemus, atesta o movimento aparentemente irreversível de secularização pela qual a religião institucionalizada passa, porém, aponta para possíveis perigos trazidos no bojo de laicização radical, ele escreveu:

Hoje devemos perguntar-nos o que significa viver em um mundo onde se pretende menosprezar a religião. Não é isso um perigo, em particular o perigo de um desencadear da violência? Em um mundo onde, como sabemos, estamos movendo-nos em uma direção que leva verdadeiramente à possibilidade de chegar ao fim do mundo como nós o conhecemos, não é que o desaparecimento da religião nos expõe a perigo do desencadear-se de uma dimensão “apocalíptica”? [...] nós hoje nos movemos como se fôssemos os donos do mundo, como se fôssemos os senhores da natureza sem qualquer mediação ou arbitramento, como se tudo o que fazemos não pudesse ter repercussões negativas. Mas sabemos todos, muito bem como esses tabus arcaicos tinham um valor e um significado. Os seres humanos, assim como as nações, não podem viver sem uma ética (Girard e Vattimo, 2010, p.32).

O “Apocalipse” como imagem metafórica usada neste contexto por Girard não é aquele apocalipse protestante onde Deus usa sua “violência sagrada” para acabar com o mal, ao contrário, para o antropólogo é o “mundo tornado mal” por uma secularização absoluta, onde nem mesmo uma ética humana se sustente. Isso é que pode levar a um desastroso fim.

Como já dissemos antes em nosso estudo, o que é dito pelo antropólogo René Girard em essência, é o maior de todos os pontos de convergência entre ateus humanistas e religiosos liberais, o homem moderno até pode passar sem Deus, no entanto, não pode passar sem uma nova representação valorativa que assuma algumas das qualidades universalizantes da antiga divindade, ou em termos mais diretos: não podemos viver sem uma moral.

No entanto, alguns religiosos não enxergam na secularização um “perigo apocalíptico”, ao contrário disto vêem alguns pontos positivos nesse processo de desencantamento do mundo. O filósofo católico Gianni Vattimo está entre esses pensadores mais otimistas e, num debate que tinha como tema o cristianismo e o relativismo, disse o seguinte sobre a secularização:

A palavra-chave que comecei a empregar [...] é precisamente secularização, como efetiva realização do cristianismo como religião não sacrifical. E nessa direção eu avanço, vendo como positivo muitos fenômenos aparentemente escandalosos e “dissolutos” da modernidade. A secularização não seria o abandono do sagrado, mas a integral aplicação da tradição sacra a determinados fenômenos humanos. [...] nesse sentido, tenho uma teoria positiva da secularização, que parte da reinterpretação não-vitimaria das escrituras, por parte da igreja. O cristianismo é finalmente a religião

que abre o caminho para uma existência não estritamente religiosa, no sentido dos laços, da imposição, da autoridade… (Girard e Vattimo, 2010, pp. 28-29).

Para Vattimo, a secularização é de certa maneira a própria essência do cristianismo, afinal, a laicização pressupõe o enfraquecimento da autoridade eclesiástica e uma maior autonomia do crente leigo, segundo sua interpretação, a religião sacrifical, que exigia abusivamente a fidelidade do adepto, é que está com seus dias contados, já o sagrado, diferente do perigo de extinção, passa por uma redefinição positiva no âmbito da secularização.

Em certo sentido Vattimo está afirmando que a verdadeira religiosidade não deve temer a modernidade, apenas deve encontrar o seu novo papel no mundo secularizado. Para o filósofo nunca teremos a superação total dos antigos referenciais religiosos, apenas aprenderemos a conviver melhor com o “diferente”.

Numa linha de raciocínio semelhante à Vattimo, a escritora inglesa e ex-freira católica Karen Armstrong, em seu livro Em Defesa de Deus, escreveu o seguinte sobre o ambiente ambíguo inaugurado pela secularização do mundo:

Achamos que a religião deve nos fornecer informações. Existe um Deus? Como o mundo surgiu? Mas essa é uma aberração moderna. Não compete à religião dar respostas para perguntas que ultrapassam a capacidade da razão humana. Esse é o papel do logos. O papel da religião, estreitamente relacionado com o da arte, consiste em nós ajudar a ter uma convivência criativa, pacífica e até prazerosa com realidades que não são facilmente explicáveis e com problemas que não conseguimos resolver: mortalidade, sofrimento, desespero, indignação em face a injustiça e da crueldade da vida. [...] A racionalidade científica pode nos explicar por que temos câncer, pode até curar nossa doença. Mas não pode aplacar o pavor, a decepção e a tristeza que sentimos ao receber o diagnóstico, nem pode nos ajudar a ter uma boa morte. No entanto, a religião não funciona automaticamente requer muito esforço e não leva a nada se é fácil, falsa, idólatra ou autocomplacente (Armstrong, 2011, p.313).

A escritora inglesa compara a racionalidade religiosa à do artista, para ela ao fazermos questionamentos científicos ou filosóficos, no âmbito da religiosidade, cedemos a uma tendência deturpada da modernidade.

A ex-freira fazendo uma espécie de “análise funcional”, diz que a cientificidade de um mundo secularizado não pede necessariamente a obliteração da religião, apenas a obriga a enxergar uma setorização societária que antes não

era tão evidente. A religião e, por conseqüência a crença em Deus, pode subsistir