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Análise histórica como método comparativo: aparando as arestas do

No documento : a escrita de si na era digital (páginas 39-42)

2 DA TEORIA À PRÁTICA: OPÇÕES TEÓRICAS, PERCURSOS E

2.3 Análise histórica como método comparativo: aparando as arestas do

Não custa deixar claro. Postular a superação dos preconceitos oriundos de um positivismo objetivista não implica incorrer na armadilha oposta, em que o pesquisador está de tal modo aprisionado ao seu próprio ponto de vista, que é incapaz de discernir onde termina o seu umbigo e onde começa o Outro. Para limar o excesso de subjetivismo, de modo a não comprometer os ganhos conquistados pela revalidação da subjetividade na pesquisa social, devemos pensar a nossa prática por meio de uma postura auto-reflexiva, não nos furtando às questões epistemológicas que a disciplina nos impõe.

É preciso estar atento e forte.33 Como já dissemos alhures, os obstáculos epistemológicos que desafiam a pesquisa sociológica derivam em grande parte da dificuldade do sociólogo de - sendo também ele parte da realidade social que estuda – desvencilhar-se de pré-noções grosseiramente formadas, de modo a evitar o falseamento de sua percepção acerca dessa mesma realidade. Para Lenoir, cabe ao sociólogo descortinar o véu das falsas evidências forjadas pelo senso comum.34

Mas como expurgar o excessivo subjetivismo sem ter de abrir mão de nossa própria subjetividade na interpretação da realidade social? Parece-nos que o meio mais seguro de não olharmos o outro apenas como uma projeção de nós mesmos consiste em evitar, tanto quanto possível, uma postura etnocêntrica. E nos parece que esse resultado só pode ser obtido à custa de um trabalho constante de “desnaturalização” do real. Por meio desse exercício, treinamos o olhar para percebermos que a realidade é fruto de uma construção social.

Ao fixarmos o olhar na construção do real enquanto processo, conquistamos a capacidade de enxergar muitos outros modos de existência do real, que permanecem como possibilidades latentes. A atualização hipotética dessas

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Cf. trecho da canção “Divino Maravilhoso”, da autoria de Caetano Veloso.

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Essa já era uma preocupação em Durkheim, retomada a posteriori por LENOIR, Remi. Objeto sociológico e problema social. In: Iniciação à prática sociológica. Petrópólis: Vozes, s.d., p. 61-62.

realidades potenciais contribui para afastar o fatalismo determinista que nos leva a impor ao outro o nosso ponto de vista. Assim, quando passamos a compreender a realidade como processo, percebemos que o nosso modo de sentir e pensar poderia ter se construído de muitas outras formas. Essa descoberta facilita a distensão necessária para acolher o outro em sua alteridade.

Para Remi Lenoir, há uma tendência do senso comum (vulgar e douto) de “naturalizar” certas tipologias, tratando-as como categorias biológicas, naturais ou deterministas, quando, na verdade, até mesmo as categorias com as quais classificamos e sistematizamos a realidade também são o fruto de uma construção social. 35

De nossa parte, procuramos combater essa tendência de naturalização dos comportamentos sociais - ainda mais intensa quando estamos muito rentes ao nosso objeto, pela própria atualidade de sua ocorrência - buscando colocar o problema da escrita intimista e dos seus impactos sobre o público e o privado em perspectiva com outras formas de concepção dessas mesmas categorias. Para viabilizar o método comparativo, nos valemos, sempre que possível, dos diversos contextos histórico-sociais que deram ensejo às categorias com as quais lidamos durante a pesquisa. Assim, ao longo do trabalho, sentimos a necessidade de fazer alguns recuos históricos que nos permitissem perspectivar a evolução de categorias importantes para a nossa pesquisa, demonstrando os vários estágios de seu desenvolvimento.

Cremos que essas sucessivas retrospectivas (a que somos levados cada vez que introduzimos novos elementos na discussão) não chegam a suscitar uma crise de labirintite, mesmo nos leitores mais propensos. Na verdade, elas nos ajudam a situar historicamente cada uma das categorias trabalhadas, demonstrando que o social é uma realidade inventada; passível, portanto, de transformações que o reinventam ao longo do tempo.

A análise histórico-comparativa constitui um recurso metodológico que fortalece a nossa capacidade de desnaturalizar e relativizar instituições sociais importantíssimas, tais como a família, as relações conjugais, a maternidade, a

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infância, o papel da mulher, e, em especial, a invenção da intimidade, pelos modernos, e a revolução desse conceito, pelos pós-modernos, alterando (para sempre?) as tradicionais concepções acerca do público e do privado.

Ressaltamos que a tarefa do sociólogo não se resume à simples identificação de um “problema social”. Fosse assim, bastaria que identificássemos a escrita intimista na era digital como um fator de subversão do público e do privado, tal como os concebíamos desde a modernidade. Sabemos, no entanto, que o ofício do sociólogo lhe remete à complexa tarefa de analisar o processo mesmo pelo qual o problema social se constitui e se institucionaliza como tal, em determinado contexto.

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Para Remi Lenoir, a “construção social da realidade” leva a que certos fenômenos possam ser considerados “problemas sociais” em determinados contextos, e não em outros, a depender de inúmeras variáveis relevantes – as quais também constituem objeto de estudo do sociólogo. Assim, a própria forma de construção social da realidade é, ela mesma, objeto da pesquisa sociológica.37

Ao fazermos largo uso do método comparativo por meio da análise histórica, relativizamos as conclusões, evitando as armadilhas do pensamento substancialista, segundo o qual, os objetos de estudo são tomados como realidades em si. Para romper com essa tradição de pensamento, Bourdieu propõe um enfoque relacional. Para o autor, o objeto de estudo deve ser investigado no próprio contexto de suas relações sociais, pois é por meio delas que se apreende o essencial de suas propriedades.38 “Se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição acerca da qual eu jugo saber tudo, porque ela nada é fora das suas relações com o todo”. 39

Nesse quadrante, resta mais que justificada a opção da análise histórica como recurso metodológico, uma vez que o seu emprego favorece o uso do raciocínio analógico (cuja natureza é essencialmente relacional), ao tomarmos como base as

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Para ulteriores desenvolvimentos, vide: BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção

social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópólis: Vozes, 1991. 37

LENOIR, op. cit., p.73-76.

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BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.152.

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homologias estruturais entre os vários estados das categorias que buscamos investigar.

2.4 Triangulação metodológica: o emprego combinado de análise histórica, análise

No documento : a escrita de si na era digital (páginas 39-42)